CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ NOTIFICAÇÃO sobre as obras do P. Jon SOBRINO S.I.:
Introdução
1. Após um primeiro exame dos volumes Jesucristo liberador. Lectura histórico-teológica de Jesús de Nazaret (Jesucristo) e La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas (La fe), do Rev.do P. Jon Sobrino S.I., a Congregação para a Doutrina da Fé, dadas as inexactidões e erros neles encontrados, decidiu, em Outubro de 2001, proceder a um ulterior e mais aprofundado estudo das ditas obras. Dada a ampla divulgação desses escritos e a utilização dos mesmos em Seminários e outros centros de estudo, sobretudo da América Latina, a Congregação achou por bem aplicar a esse estudo o “procedimento urgente” previsto nos artigos 23-27 da Agendi Ratio in Doctrinarum Examine.
Como resultado desse exame, no mês de Julho de 2004 foi enviado ao Autor, através do Rev.do P. Peter Hans Kolvenbach S.I., Superior Geral da Companhia de Jesus, uma série de proposições erróneas ou perigosas encontradas nos referidos livros.
No mês de Março de 2005 o P. Jon Sobrino enviou à Congregação uma “Respuesta al texto de la Congregación para la Doutrina de la Fe”, que foi examinada na Sessão Ordinária de 23 de Novembro de 2005. Verificou-se que, embora o Autor tivesse parcialmente mitigado nalguns pontos o seu pensamento, a Respuesta não satisfez, já que, na substância, permaneciam os erros que tinham justificado o envio do elenco de proposições acima dito. A Congregação para a Doutrina da Fé, apreciando a preocupação do Autor com a sorte dos pobres, sente todavia o dever de advertir que as mencionadas obras do P. Sobrino apresentam, em certos pontos, notáveis divergências com a fé da Igreja.
Por isso, decidiu-se publicar a presente Notificação para poder oferecer aos fiéis um critério seguro de avaliação, baseado na doutrina da Igreja, sobre afirmações feitas nos livros citados ou noutras publicações do Autor. É verdade que, em certas ocasiões, as proposições erróneas se situam em contextos onde existem outras expressões que parecem contradizê-las [cf., por exemplo, a seguir, no n. 6], o que porém não permite justificá-las. Não pretendendo a Congregação julgar as intenções subjectivas do Autor, sente-se ela porém no dever de chamar a atenção para certas proposições que não são conformes à doutrina da Igreja. Tais proposições têm a ver com: 1) os pressupostos metodológicos enunciados pelo Autor, onde ele funda a sua reflexão teológica, 2) a divindade de Jesus Cristo, 3) a encarnação do Filho de Deus, 4) a relação entre Jesus Cristo e o Reino de Deus, 5) a auto-consciência de Jesus Cristo e 6) o valor salvífico da sua morte.
I. Pressupostos metodológicos.
2. No seu livro Jesucristo liberador, o P. Jon Sobrino afirma: “La cristología latinoamericana […] determina que su lugar, como realidad sustancial, son los pobres de este mundo, y esta realidad es la que debe estar presente y transir cualquier lugar categorial donde se lleva a cabo” (p. 47). E acrescenta: “Los pobres cuestionan dentro de la comunidad la fe cristológica y le ofrecen su dirección fundamental” (p. 50); a “Iglesia de los pobres es […] el lugar eclesial de la cristología, por ser una realidad configurada por los pobres” (p. 51). “El lugar social, es pues, el más decisivo para la fe, el más decisivo para configurar el modo de pensar cristológico y el que exige y facilita la ruptura epistemológica” (p. 52).
Reconhecendo o apreço que merece a preocupação pelos pobres e oprimidos, nas citadas frases, esta “Igreja dos pobres” situa-se no lugar que corresponde ao lugar teológico fundamental, que é só a fé da Igreja; é nela onde qualquer outro lugar teológico encontra a sua correcta colocação epistemológica.
O lugar eclesial da cristologia não pode ser a “Igreja dos pobres” mas a fé apostólica transmitida pela Igreja a todas as gerações. O teólogo, pela sua particular vocação na Igreja, deve ter constantemente presente que a teologia é ciência da fé. Outros pontos de partida para o trabalho teológico correm o risco da arbitrariedade, acabando por desvirtuar os conteúdos da própria fé[1].
3. A falta da devida atenção às fontes, apesar de o Autor afirmar que as considera “normativas”, leva aos problemas concretos da sua teologia, a que mais adiante nos referiremos. De facto, nem sempre se presta a devida atenção sobretudo às afirmações do Novo Testamento sobre a divindade de Cristo, a sua consciência filial e o valor salvífico da sua morte. Nos números a seguir abordaremos essas questões. Surpreende também o modo como o Autor trata os grandes Concílios da Igreja antiga, que, no seu entender, ter-se-iam afastado progressivamente dos conteúdos do Novo Testamento. Por exemplo, afirma-se: “Estos textos son útiles teológicamente, además de normativos, pero son también limitados y aun peligrosos, como hoy se reconoce sin dificultad” (La fe, 405-406). Há que reconhecer certamente o carácter limitado das fórmulas dogmáticas, que não exprimem nem podem exprimir tudo o que está contido nos mistérios da fé, e que devem ser interpretadas à luz da Sagrada Escritura e da Tradição. Não tem porém nenhum fundamento falar da periculosidade de tais fórmulas, enquanto interpretações autênticas do dado revelado.
O progresso dogmático dos primeiros séculos da Igreja, incluídos os grandes Concílios, é considerado pelo P. Sobrino como ambíguo e até negativo. Não é que ele negue o carácter normativo das formulações dogmáticas, mas, no conjunto, não lhes dá valor, a não ser no âmbito cultural em que surgiram. Para ele, não importa que o sujeito transtemporal da fé seja a Igreja crente e que os pronunciamentos dos primeiros Concílios tenham sido aceites e vividos por toda a comunidade eclesial. A Igreja continua a professar o Credo que vem dos Concílios de Niceia (ano de 325) e Constantinopolitano I (ano de 381). Os primeiros quatro Concílios ecuménicos foram aceites pela grande maioria das Igrejas e comunidades eclesiais do Oriente e do Ocidente. Se usaram os termos e conceitos da cultura do seu tempo não foi para se conformar com essa cultura; os Concílios não foram uma helenização do Cristianismo, mas precisamente o contrário. Com a inculturação da mensagem cristã, a própria cultura grega sofreu uma transformação a partir de dentro e pôde tornar-se um instrumento para a defesa da verdade bíblica.
II. A divindade de Jesus Cristo.
4. Diversas afirmações do Autor tendem a diminuir o alcance das passagens do Novo Testamento que afirmam que Jesus é Deus: “Jesús está íntimamente ligado a Dios, con lo cual su realidad habrá que expresarla de alguna forma como realidad que es de Dios (cf. Jn 20,28)” (La fe, 216). Em referência a Jo 1,1 afirma-se: “Con el texto de Juan […] de ese logos no se dice todavía, en sentido estricto, que sea Dios (consustancial al Padre), pero de él se afirma algo que será muy importante para llegar a esta conclusión, su preexistencia, la cual no connota algo puramente temporal, sino que dice relación con la creación y relaciona al logos con la acción específica de la divinidad” (La fe, 469). Segundo o Autor, no Novo Testamento não se afirma claramente a divindade de Jesus, mas apenas se estabelecem os seus pressupostos: “En el Nuevo Testamento […] hay expresiones que, en germen, llevarán a la confesión de fe en la divinidad de Jesús” (La fe, 468-469). “En los comienzos no se habló de Jesús como Dios ni menos de la divinidad de Jesús, lo cual sólo acaeció tras mucho tiempo de explicación creyente, casi con toda probabilidad después de la caída de Jerusalén” (La fe, 214).
Sustentar que em Jo 20,28 se afirma que Jesus é “de Deus” é um erro evidente, uma vez que, na mesma passagem, é chamado “Senhor” e “Deus”. Igualmente, em Jo 1,1, diz-se que o Logos é Deus. Em muitos outros textos, fala-se de Jesus como Filho e como Senhor[2]. A divindade de Jesus foi objecto da fé da Igreja desde o início, muito antes que no Concílio de Niceia se proclamasse a sua consubstancialidade ao Pai. O facto de não empregar este termo não significa que não se afirme a divindade de Jesus no sentido estrito, contrariamente a quanto o Autor parece insinuar. Ao asserir que a divindade de Jesus só teria sido afirmada após muito tempo de reflexão crente e que no Novo Testamento só se fala dela “em gérmen”, o Autor evidentemente não a nega, mas não a afirma com a devida clareza e leva a suspeitar que a evolução dogmática, que, segundo ele, assume características ambíguas, tenha chegado a essa formulação sem uma clara continuidade com o Novo Testamento.
A divindade de Jesus é, porém, claramente testemunhada nas passagens do Novo Testamento a que nos referimos. As numerosas declarações conciliares nesse sentido[3] estão em continuidade com quanto no Novo Testamento se afirma de maneira explícita e não apenas “em gérmen”. A confissão da divindade de Jesus Cristo é um ponto absolutamente essencial da fé da Igreja desde as suas origens e é testemunhada desde o Novo Testamento.
III. A encarnação do Filho de Deus.
5.O P. Sobrino escreve: “Desde una perspectiva dogmática debe afirmarse, y con toda radicalidad, que el Hijo (la segunda persona de la Trinidad) asume toda la realidad de Jesús, y aunque la fórmula dogmática nunca explica el hecho de ese ser afectado por lo humano, la tesis es radical. El Hijo experimenta la humanidad, la vida, el destino y la muerte de Jesús” (Jesucristo, 308). Nesta passagem, o Autor estabelece uma distinção entre o Filho e Jesus que leva o leitor a pensar na presença de dois sujeitos em Cristo: o Filho assume a realidade de Jesus; o Filho experimenta a humanidade, a vida, o destino e a morte de Jesus. Não resulta claro que o Filho é Jesus e que Jesus é o Filho. No teor literal destas frases, o P. Sobrino reflecte a chamada teologia do homo assumptus, que é incompatível com a fé católica, a qual afirma a unidade da pessoa de Jesus Cristo nas duas naturezas, divina e humana, segundo as formulações dos Concílios de Éfeso[4] e sobretudo de Calcedónia, que afirma: “... ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho e Senhor nosso Jesus Cristo: perfeito na divindade e perfeito na humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem de alma racional e corpo; consubstancial ao Pai segundo a divindade, e consubstancial a nós segundo a humanidade, em tudo semelhante a nós excepto no pecado (cf. Heb 4,15), gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a divindade e nos últimos dias, para nós e para a nossa salvação, no seio de Maria Virgem, a mãe de Deus, segundo a humanidade; que se deve reconhecer um só e mesmo Cristo Senhor, Filho unigénito em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”[5]. Da mesma maneira se exprimiu o Papa Pio XII na Encíclica Sempiternus Rex: “… o Concílio de Calcedónia, plenamente de acordo com o de Éfeso, afirma com meridiana clareza que ambas as naturezas do nosso Redentor estão unidas ‘em uma só pessoa e subsistência’ e proíbe pôr em Cristo dois indivíduos, de modo que se coloque junto ao Verbo um como ‘homem assumido’, dotado de inteira autonomia própria”[6].
6. Uma outra dificuldade na visão cristológica do P. Sobrino vem da sua insuficiente compreensão da communicatio idiomatum. Segundo ele, de facto, “la comprensión adecuada de la communicatio idiomatum sería la siguiente: lo humano limitado se predica de Dios, pero lo divino ilimitado no se predica de Jesús” (La fe, 408; cf. 500). Ora, a unidade da pessoa de Cristo “em duas naturezas”, que o Concílio de Calcedónia afirma, tem como consequência imediata a chamada communicatio idiomatum, ou seja, a possibilidade de atribuir as propriedades da divindade à humanidade e vice-versa. Graças a essa possibilidade, já o Concílio de Éfeso definiu que Maria era theotókos: “Se alguém não confessar que o Emanuel é verdadeiramente Deus e que, por isso, a santa Virgem é mãe de Deus, pois deu à luz segundo a carne o Verbo de Deus feito carne, seja anátema”[7]. “Se alguém atribui a duas pessoas ou a duas hipóstases as expressões contidas nos escritos evangélicos e apostólicos ou ditas pelos Santos sobre Cristo ou que Este atribui a Si mesmo, e atribui umas ao homem, considerado propriamente como distinto do Verbo de Deus, e outras, por serem dignas de Deus, somente ao Verbo de Deus Pai, seja anátema”[8]. Como facilmente se deduz destes textos, a communicatio idiomatum aplica-se nos dois sentidos, o humano é atribuído a Deus e o divino ao homem. Já o Novo Testamento afirma que Jesus é Senhor[9], e que todas as coisas foram criadas por meio d’Ele[10]. Na linguagem cristã, pode-se dizer e diz-se, por exemplo, que Jesus é Deus, que é criador e omnipotente. E o Concílio de Éfeso aprovou o costume de chamar Maria mãe de Deus. Não é portanto correcto dizer que não se atribui a Jesus o divino ilimitado. Tal afirmação do Autor só poderia compreender-se no contexto da cristologia do homo assumptus, em que não é clara a unidade da pessoa de Jesus: é evidente que não se poderiam atribuir a uma pessoa humana os atributos divinos. Ora, esta cristologia não é absolutamente compatível com a doutrina dos Concílios de Éfeso e de Calcedónia sobre a unidade da pessoa em duas naturezas. A compreensão da communicatio idiomatum que o Autor apresenta revela, por conseguinte, uma concepção errada do mistério da encarnação e da unidade da pessoa de Jesus Cristo.
IV. Jesus Cristo e o Reino de Deus
7. O P. Sobrino tem uma visão peculiar sobre a relação entre Jesus e o Reino de Deus. É um ponto de particular interesse nas suas obras. Segundo o Autor, a pessoa de Jesus, como mediador, não se pode absolutizar, mas há que contemplá-la na sua relacionalidade para o reino de Deus, considerado evidentemente como algo de distinto do próprio Jesus: “Esta relacionalidad histórica la analizaremos después en detalle, pero digamos ahora que este recordatorio es importante […] cuando se absolutiza al mediador Cristo y se ignora su relacionalidad constitutiva hacia la mediación, el reino de Dios” (Jesucristo, 32). “Ante todo, hay que distinguir entre mediador y mediación de Dios. El reino de Dios, formalmente hablando, no es otra cosa que la realización de la voluntad de Dios para este mundo, a lo cual llamamos mediación. A esa mediación […] está asociada una persona (o grupo) que la anuncia e inicia, y a ello llamamos mediador. En este sentido puede y debe decirse que, según la fe, ya ha aparecido el mediador definitivo, último y escatológico del reino de Dios, Jesús […]. Desde esta perspectiva pueden entenderse también las bellas palabras de Orígenes al llamar a Cristo la autobasileia de Dios, el reino de Dios en persona, palabras importantes que describen bien la ultimidad del mediador personal del reino, pero peligrosas si adecúan a Cristo con la realidad del reino” (Jesucristo, 147). “Mediador y mediación se relacionan, pues, esencialmente, pero no son lo mismo. Siempre hay un Moisés y una tierra prometida, un Monseñor Romero y una justicia anhelada. Ambas cosas, juntas, expresan la totalidad de la voluntad de Dios, pero no son lo mismo” (Jesucristo, 147). Por outro lado, a condição de mediador de Jesus vem-lhe só da sua humanidade: “La posibilidad de ser mediador no le viene, pues, a Cristo de una realidad añadida a lo humano sino que le viene del ejercicio de lo humano” (La fe, 253).
É verdade que o Autor afirma a existência de uma relação especial entre Jesus Cristo (mediador) e o Reino de Deus (mediação), enquanto Jesus é o mediador definitivo, último e escatológico do Reino. Porém, nas passagens citadas, Jesus e o Reino distinguem-se de tal maneira que o vínculo entre ambos fica destituído do seu conteúdo peculiar e da sua singularidade. Não se explica correctamente o nexo essencial que existe entre o mediador e a mediação, para usar as suas próprias palavras. Por outro lado, ao afirmar-se que Cristo recebe do exercício humano a possibilidade de ser mediador, exclui-se que a sua condição de Filho de Deus tenha relevância para a sua missão mediadora. Não basta falar de uma conexão íntima ou de uma relação constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma “ultimidade do mediador”, se este nos remete para algo que lhe é distinto. Jesus Cristo e o Reino, num certo sentido, identificam-se: na pessoa de Jesus, o Reino já se fez presente. Uma tal identidade foi posta em realce desde a época patrística[11]. O Papa João Paulo II afirma na Encíclica Redemptoris Missio: “Sobre o anúncio de Jesus Cristo, com o Qual o Reino de Deus se identifica, se concentra a pregação da Igreja primitiva”[12]. “Cristo não só anunciou o Reino, mas, n’Ele, o próprio Reino se tornou presente e plenamente se realizou”[13]. “O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa […], mas é, acima de tudo, uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível. Se separarmos o Reino, de Jesus, ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregado”[14]. Por outro lado, a singularidade e unicidade da mediação de Cristo foi sempre afirmada na Igreja. Graças à sua condição de “Filho unigénito de Deus”, Ele é a “auto-revelação definitiva de Deus”[15]. Por isso, a sua mediação é única, singular, universal e insuperável: “… pode e deve dizer-se que Jesus Cristo tem para o género humano e para a sua história um significado e um valor singulares e únicos, só a Ele próprios, exclusivos, universais e absolutos. Jesus é, de facto, o Verbo de Deus feito homem para a salvação de todos”[16].
V. A auto-consciência de Jesus Cristo.
8. O P. Sobrino afirma, citando L. Boff, que “Jesús fue un extraordinario creyente y tuvo fe. La fe fue el modo de existir de Jesús” (Jesucristo, 203). E, da sua parte, acrescenta: “Esta fe describe la totalidad de la vida de Jesús” (Jesucristo, 206). O Autor justifica a sua posição recorrendo ao texto de Heb 12,2: “En forma lapidaria la carta [a los Hebreos] dice con una claridad que no tiene paralelo en el Nuevo Testamento que Jesús se relacionó con el misterio de Dios en la fe. Jesús es el que ha vivido originariamente y en plenitud la fe (12,2)” (La fe, 256). Acrescenta porém: “Por lo que toca a la fe, Jesús es presentado, en vida, como un creyente como nosotros, hermano en lo teologal, pues no se le ahorró el tener que pasar por ella. Pero es presentado también como hermano mayor, porque vivió la fe originariamente y en plenitud (12,2). Y es el modelo, aquel en quien debemos tener los ojos fijos para vivir nuestra propia fe” (La fe, 258).
A relação filial de Jesus com o Pai, na sua singularidade irrepetível, não aparece com clareza nas passagens citadas. Pelo contrário, tais afirmações levam a excluí-la. Tendo presente o conjunto do Novo Testamento, não se pode dizer que Jesus seja “um crente como nós”. No evangelho de João, fala-se da “visão” que Jesus tem do Pai: “Aquele que veio de Deus, este viu o Pai”
A consciência filial e messiânica de Jesus é a consequência directa da sua ontologia de Filho de Deus feito homem. Se Jesus fosse um crente como nós, mesmo de maneira exemplar, não podia ser o revelador verdadeiro que nos mostra o rosto do Pai. São evidentes as ligações deste ponto com quanto se disse no n. IV sobre a relação de Jesus com o Reino, e se dirá depois no n. VI sobre o valor salvífico que Jesus atribuiu à sua morte. Na reflexão do Autor desaparece, de facto, o carácter único da mediação e da revelação de Jesus, que fica assim reduzido à condição de revelador, atribuível aos profetas ou aos místicos. Jesus, o Filho de Deus feito carne, tem um conhecimento íntimo e imediato do seu Pai, uma “visão” que certamente vai para além da fé. A união hipostática e a sua missão de revelação e redenção requerem a visão do Pai e o conhecimento do seu plano de salvação. É o que indicam os textos evangélicos já citados.
Esta doutrina já foi expressa em diversos textos do Magistério recente: “Esse amorosíssimo conhecimento que o divino Redentor de nós teve desde o primeiro instante da sua encarnação, excede tudo quanto a razão humana pode alcançar; pois que Ele, pela visão beatífica de que gozou apenas concebido no seio da Mãe Santíssima, tem continuamente presente todos os membros do seu Corpo Místico e a todos abraça com amor salvífico”[19]. Com uma terminologia algo diferente, também insiste na visão do Pai o Papa João Paulo II: “Os seus olhos [os de Jesus] permanecem fixos no Pai. Precisamente pelo conhecimento e experiência que só Ele tem de Deus, mesmo neste momento de obscuridade Jesus vê claramente a gravidade do pecado e isso mesmo fá-l’O sofrer. Só Ele, que vê o Pai e por isso rejubila plenamente, avalia profundamente o que significa resistir com o pecado ao seu amor”[20]. Também o Catecismo da Igreja Católica fala do conhecimento imediato que Jesus tem do Pai: “É o caso, em primeiro lugar, do conhecimento íntimo e imediato que o Filho de Deus feito homem tem do seu Pai”[21]. “Pela sua união com a Sabedoria divina na pessoa do Verbo Encarnado, o conhecimento humano de Cristo gozava, em plenitude, da ciência dos desígnios eternos que tinha vindo revelar”[22]. Não se exprime correctamente a relação de Jesus com Deus dizendo que era um crente como nós. Ao contrário, é precisamente a intimidade e o conhecimento directo e imediato que Ele tem do Pai que Lhe permitem revelar aos homens o mistério do amor divino. Só assim Ele nos pode introduzir nesse mistério.
VI. O valor salvífico da morte de Jesus.
9. Algumas afirmações do P. Sobrino levam a pensar que, segundo ele, Jesus não atribuiu à sua morte um valor salvífico: “Digamos desde el principio que el Jesús histórico no interpretó su muerte de manera salvífica, según los modelos soterilógicos que, después, elaboró el Nuevo Testamento: sacrificio expiatorio, satisfacción vicaria […]. En otras palabras, no hay datos para pensar que Jesús otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte, como hizo después el Nuevo Testamento” (Jesucristo, 261). “En los textos evangélicos no se puede encontrar inequívocamente el significado que Jesús otorgó a su propia muerte” (ibidem). “… puede decirse que Jesús va a la muerte con confianza y la ve como último acto de servicio, más bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvación para otros. Ser fiel hasta el final, eso es ser humano” (Jesucristo, 263).
Num primeiro momento, a afirmação do Autor parece limitada, no sentido que Jesus não teria atribuído um valor salvífico à sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois. A seguir, porém, se afirma que não há dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente à sua própria morte. Diz-se apenas que vai para a morte com confiança e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros. Assim sendo, as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salvífico da morte de Cristo[23] ficam destituídas de toda a ligação com a consciência de Cristo durante a sua vida mortal. Não se tomam devidamente em consideração as passagens evangélicas onde Jesus atribui à sua morte um significado em ordem à salvação; de modo especial Mc 10,45 (Mt 20,28): “o Filho do homem não veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos”; e as palavras da instituição da Eucaristia: “Este é o meu sangue da aliança, que será derramado por muitos”[24]. Mais uma vez aparece aqui a dificuldade, atrás mencionada, do uso que o P. Sobrino faz do Novo Testamento. Os dados neo-testamentários são substituídos por uma hipotética reconstrução histórica, que é errada.
10. O problema, porém, não se circunscreve à consciência com que Jesus teria enfrentado a sua morte e ao significado que lhe teria dado. O P. Sobrino expõe também o seu ponto de vista sobre o significado soteriológico a atribuir à morte de Cristo: “Lo salvífico consiste en que ha aparecido sobre la tierra lo que Dios quiere que sea el ser humano […]. El Jesús fiel hasta la cruz es salvación, entonces, al menos en este sentido: es revelación del homo verus, es decir, de un ser humano en el que resultaría que se cumplen tácticamente las características de una verdadera naturaleza humana […]. El hecho mismo de que se haya revelado lo humano verdadero contra toda expectativa, es ya buena noticia, y por ello, es ya en sí mismo salvación […]. Según esto, la cruz de Jesús como culminación de toda su vida puede ser comprendida salvíficamente. Esta eficacia salvífica se muestra más bien a la manera de la causa ejemplar que de la causa eficiente. Pero no quita esto que no sea eficaz […]. No se trata pues de causalidad eficiente, sino de causalidad ejemplar” (Jesucristo, 293-294).
É verdade que se deve reconhecer todo o valor à eficácia do exemplo de Cristo, que o Novo Testamento explicitamente menciona[25]. É uma dimensão da soteriologia a não esquecer. Porém, não se pode reduzir a eficácia da morte de Jesus ao exemplo, ou, segundo as palavras do Autor, à aparição do homo verus, fiel a Deus até à cruz. O P. Sobrino usa, no texto citado, expressões como “al menos” e “más bien”, que parecem deixar a porta aberta a outras considerações. Mas, no fim, essa porta é fechada com uma negação explícita: não se trata de causalidade eficiente, mas de causalidade exemplar. A redenção parece reduzir-se à aparição do homo verus, manifestado na fidelidade até à morte. A morte de Cristo é exemplum e não sacramentum (dom). A redenção reduz-se ao moralismo. As dificuldades cristológicas já encontradas em relação ao mistério da encarnação e a relação com o Reino aparecem novamente aqui. Só a humanidade entra em causa, não o Filho de Deus feito homem por nós e por nossa salvação. As afirmações do Novo Testamento e da Tradição e o Magistério da Igreja sobre a eficácia da redenção e da salvação operadas por Cristo não podem reduzir-se ao bom exemplo que Ele nos deu. O mistério da encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, é a fonte única e inesgotável da redenção da humanidade, que se torna eficaz na Igreja mediante os sacramentos.
O Concílio de Trento afirma no Decreto sobre a justificação: “…o Pai celestial, ‘Pai de misericórdia e Deus de toda a consolação’ (2 Cor 1,3), quando chegou a feliz ‘plenitude dos tempos’ (Ef 1,10; Gál 4,4) enviou aos homens o seu Filho Cristo Jesus […], tanto para redimir os judeus ‘que estavam sob a lei’ (Gál 4,5), como para que ‘as nações que não seguiam a justiça aprendessem a justiça’ (Rom 9,30) e todos ‘recebessem a adopção de filhos’ (Gál 4,5). A Ele ‘propôs Deus como propiciador pela fé no seu sangue’ (Rom 3,25), ‘pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas pelos do mundo inteiro’ (1 Jo 2,2) ”[26]. Afirma-se no mesmo decreto que a causa meritória da justificação é Jesus, Filho unigénito de Deus, “o Qual, ‘quando éramos inimigos’ (Rom 5,10), ‘pelo excesso de caridade com que nos amou’ (Ef 2,4) mereceu-nos a justificação com a sua santíssima paixão no madeiro da cruz, e satisfez por nós a Deus Pai”[27]. O Concílio Vaticano II ensina: “O Filho de Deus, unindo a Si a natureza humana e vencendo a morte com a sua própria morte e ressurreição, remiu o homem, transformando-o numa nova criatura (cf. Gál 6,15; 2 Cor 5,17). E, pela comunicação do Espírito, constituiu com os seus irmãos, chamados de entre todas as gentes, o seu Corpo Místico. Neste Corpo, a vida de Cristo comunica-se aos crentes, que através dos Sacramentos se unem de modo misterioso e real a Cristo que sofreu e foi glorificado”[28]. O Catecismo da Igreja Católica diz por sua vez: “Este plano divino de salvação pela entrega à morte do ‘Servo, o Justo’, tinha sido de antemão anunciado na Escritura como um mistério de redenção universal, quer dizer, de resgate que liberta os homens da escravidão do pecado. São Paulo confessa, numa profissão de fé que diz ter ‘recebido’, que ‘Cristo morreu pelos nossos pecados segundo as Escrituras’ (1 Cor 15,3). A morte redentora de Jesus deu cumprimento sobretudo à profecia do Servo sofredor. O próprio Jesus apresentou o sentido da sua vida e da sua morte à luz do Servo sofredor”[29].
Conclusão
11. A teologia nasce da obediência ao impulso da verdade que tende a comunicar-se e do amor que deseja conhecer cada vez melhor aquele que ama, o próprio Deus, cuja bondade reconhecemos no acto de fé[30]. Por isso, a reflexão teológica não pode ter outra matriz senão a fé da Igreja. Só a partir da fé eclesial, o teólogo pode adquirir, em comunhão com o Magistério, uma inteligência mais profunda da palavra de Deus contida na Escritura e transmitida pela Tradição viva da Igreja[31].
A verdade revelada pelo próprio Deus em Jesus Cristo, e transmitida pela Igreja, constitui portanto o princípio normativo último da teologia[32], e nenhuma outra instância pode superá-la. Na sua referência a este manancial perene, a teologia é fonte de novidade autêntica e luz para os homens de boa vontade.
Por este motivo, a investigação teológica dará frutos tanto mais abundantes e maduros, para o bem de todo o povo de Deus e de toda a humanidade, quanto mais se inserir na corrente viva que, graças à acção do Espírito Santo, procede dos apóstolos e que foi enriquecida com a reflexão crente das gerações que nos precederam. É o Espírito Santo que introduz a Igreja na plenitude da verdade[33], e só na docilidade a esse “dom do Alto” a teologia é realmente eclesial e está ao serviço da verdade.
A finalidade da presente Notificação é, precisamente, a de mostrar a todos os fiéis a fecundidade de uma reflexão teológica que não teme desenvolver-se dentro do fluxo vital da Tradição eclesial.
O Sumo Pontífice Bento XVI, na Audiência concedida a 13 de Outubro de 2006 ao abaixo assinado Cardeal Prefeito, aprovou a presente Notificação, decidida na Sessão Ordinária do Dicastério, mandando que seja publicada.
Dado em Roma, na sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a 26 de Novembro de 2006, Festa de N. S. Jesus Cristo, Rei do Universo.
William Cardeal Levada
Angelo Amato, sdb
[1] Cf. Concílio Vaticano II, Decr. Optatam totius, 16; João Paulo II, Carta Enc. Fides et Ratio, 65: AAS 91 (1999), 5-88.
[2] Cf. 1 Tes 1,10; Fil 2,5-11; 1 Cor 12,3; Rom 1,3-4; 10,9; Col 2,9, etc. [3] Cf. Concílios de Niceia, DH 125; Constantinopla, DH 150; Éfeso, DH 250-263; Calcedónia DH 301-302. [4] Cf. DH 252-263. [5] DH 301. [6] Pio XII, Carta Enc. Sempiternus Rex, 34: AAS 43 (1951), 638; in DH 3.905. [7] DH 252. [8] DH 255. [9] 1 Cor 12,3; Fil 2,11. [10] Cf. 1 Cor 8,6. [11] Cf. Orígenes, In Mt. Hom., 14,7; Tertuliano, Adv. Marcionem, IV 8; Hilário de Poitiers, Com. in Mt. 12,17. [12]João Paulo II, Carta Enc. Redemptoris Missio, 16: AAS 83 (1991), 249-340. [13] Ibidem, 18. [14] Ibidem. [15] Ibidem, 5. [16] Congregação para a Doutrina da Fé, Decl. Dominus Iesus, 15: AAS 92 (2000), 742-765. [17]Jo 6,46; cf. também 1,18. [18]Cf. Mt 11, 25-27; Lc 10,21-22. [19] Pio XII, Carta Enc. Mystici Corporis, 75: AAS 35 (1943)230; in DH 3.812. [20] João Paulo II, Carta Apost. Novo Millennio Ineunte, 26: AAS 93 (2001), 266-309. [21] CIC 473. [22] CIC 474. [23] Cf. p. ex. Rom 3,25; 2 Cor 5,21; 1 Jo 2,2, etc. [24] Mc 14,24; cf. Mt 26,28; Lc 22,20. [25] Cf. Jo 13,15; 1 Pe 2,21. [26] DH 1.522. [27] DH 1.529, cf. DH 1.560. [28]Concílio Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, 7. [29] CIC 601. [30] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instr. Donum veritatis, 7: AAS 82 (1990), 1550-1570. [31] Cf. ibidem, 6. [32] Cf. ibidem, 10. [33] Cf. Jo 16,13.
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