PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA BÍBLIA E MORAL RAÍZES BÍBLICAS DO AGIR CRISTÃO
0.1. Um mundo que procura respostas PRIMEIRA PARTE 1. O dom da criação e suas implicações morais 1.1. O dom da criação
1.1.1.
No início do Gênesis
1.2. O ser humano criado como imagem de Deus e sua responsabilidade moral
1.2.1.
Segundo os relatos da criação
2. O dom da aliança no Antigo Testamento e as normas para o agir humano 2.1. A progressiva percepção da aliança (abordagem histórica)
2.1.1
Uma primeira experiência fundamental e fundadora: caminho comum para a liberdade
2.2. As diversas expressões da aliança (abordagem canônica)
2.2.1.
A aliança com Noé e com “toda carne”
2.2.3.1.
O decálogo
2.2.4.
A aliança com Davi
3. A nova aliança em Jesus Cristo como último dom de Deus e suas implicações morais 3.1. A vinda do Reino de Deus e suas implicações morais
3.1.1.
O Reino de Deus: tema principal da pregação de Jesus nos sinóticos
3.2. O dom do Filho e suas implicações morais, segundo João
3.2.1.
O dom do Filho, expressão do amor salvador de Deus
3.3. O dom do Filho e suas implicações morais, segundo as cartas paulinas e outras cartas
3.3.1.
O dom de Deus, segundo Paulo
3.4. A nova aliança e suas implicações morais, segundo a carta aos hebreus.
3.4.1.
Cristo, mediador da nova aliança
3.5. Aliança e compromisso dos cristãos: a perspectiva do Apocalipse
3.5.1.
Uma aliança que se move na história
3.6. A Eucaristia, síntese da nova aliança
3.6.1.
O dom da Eucaristia
4.1.
O perdão de Deus segundo o Antigo Testamento
5. A meta escatológica, horizonte inspirador do agir moral
5.1.
O reino realizado e Deus tudo em todos: a mensagem de Paulo
5.3. Conclusão
SEGUNDA PARTE
1.1. Primeiro critério fundamental: Conformidade com a visão bíblica do ser humano
1.1.1.
Explicação
1.2. Segundo critério fundamental: Conformidade com o exemplo de Jesus
1.2.1.
Explicação do critério
1.3. Conclusão sobre os critérios fundamentais 2. Critérios específicos 2.1. Primeiro critério específico: a Convergência
2.1.1.
Dados bíblicos
2.2. Segundo critério específico: a Contraposição
2.2.1.
Dados bíblicos
2.3. Terceiro critério específico: a Progressão
2.3.1.
Dados bíblicos
2.4. Quarto critério específico: a Dimensão comunitária
2.4.1.
Dados bíblicos
2.5. Quinto critério específico: a Finalidade
2.5.1.
Dados bíblicos
2.6. Sexto critério específico: o Discernimento
2.6.1.
Dados bíblicos
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA BÍBLIA E MORAL RAÍZES BÍBLICAS DO AGIR CRISTÃO
O anelo de felicidade, ou seja, o desejo de obter uma vida plenamente satisfatória, está desde sempre enraizado no coração humano. A realização desse desejo depende em grande parte do próprio agir, o qual encontra-se, e freqüentemente desencontra-se, com o dos outros. Como é possível conseguir determinar o justo agir que conduz cada pessoa, as comunidades, as nações inteiras para uma vida bem sucedida ou, em outras palavras, para a felicidade? Para os cristãos, a Sagrada Escritura não é somente a fonte da revelação, a base da fé, mas também o imprescindível ponto de referência da moral. Os cristãos estão convencidos de que, na Bíblia, se pode encontrar indicações e normas para agir retamente e para atingir a vida plena. A essa convicção opõem-se diversas objeções. Uma primeira dificuldade é a recusa de normas, obrigações e mandamentos, recusa instintiva na pessoa humana e hoje particularmente aguda. Na sociedade de hoje, apresentam-se como igualmente fortes o desejo de uma plena felicidade e o desejo de uma ilimitada liberdade, ou seja, de poder agir segundo o próprio arbítrio, sem vínculo com qualquer norma. Para alguns, essa ilimitada liberdade é mesmo essencial para atingir a plena e verdadeira felicidade. Segundo essa mentalidade, a dignidade da pessoa humana exigiria que ela não deva aceitar norma alguma que lhe venha imposta de fora, mas que seja ela mesma a determinar livremente e autonomamente o que considera justo e válido. Por conseguinte, o complexo normativo presente na Bíblia, o desenvolvimento da Tradição e o Magistério da Igreja que interpreta e concretiza essas normas, aparecem como obstáculos que se opõem à felicidade e dos quais é necessário livrar-se. Uma segunda dificuldade é devida à própria Sagrada Escritura: os escritos bíblicos foram redigidos ao menos há mil e novecentos anos. Pertencem, portanto, a épocas remotas, cujas condições de vida eram muito diversas das de hoje. Muitíssimas situações e problemas atuais são completamente ignorados nos escritos bíblicos e, por isso, retém-se que não se pode encontrar neles respostas apropriadas a esses problemas. Por conseguinte, mesmo quando se reconhece o valor fundamental da Bíblia como texto inspirado e normativo, em alguns permanece uma atitude fortemente cética. Pois estão convencidos de que a Bíblia não pode servir para encontrar as soluções para os inúmeros problemas de hoje. O ser humano de hoje se confronta diariamente com problemas morais delicados que o desenvolvimento das ciências humanas e a globalização colocam constantemente em questão, a ponto de que mesmo crentes convictos têm a impressão de que algumas certezas de outrora estejam anuladas. Pense-se tão só nos temas da violência, do terrorismo, da guerra, da imigração, da partilha das riquezas, do respeito aos recursos naturais, da vida, do trabalho, da sexualidade, das pesquisas no campo genético, da família ou da vida comunitária. Frente a essa complexa problemática tem vindo a tentação de marginalizar, em todo ou em parte, a Sagrada Escritura. Também nesse caso, embora com motivação diversa, prescinde-se mais ou menos do texto sagrado e procuram-se com outros meios soluções para os grandes e urgentes problemas de hoje. A Pontifícia Comissão Bíblica, desde 2002, por encargo do então Presidente Cardeal Joseph Ratzinger, quis por isso enfrentar a relação entre Bíblia e moral, pondo-se de frente à seguinte pergunta: qual é o valor e o significado do texto inspirado para a moral no nosso tempo, no qual não se pode ignorar as mencionadas dificuldades? Na Bíblia encontram-se muitas normas, mandamentos, leis, coleções de códigos etc. Uma atenta leitura faz ressaltar, porém, que tais normas não são jamais isoladas, valendo por si mesmas, antes pertencem sempre a um determinado contexto. Pode-se dizer que, na antropologia bíblica, o que é primário e fundamental é o agir de Deus, que antecede o do ser humano, os seus dons de graça, o seu convite à comunhão: o complexo normativo é uma conseqüência para indicar ao ser humano qual seja o modo adequado de acolher o dom de Deus e de vivê-lo. Na base dessa concepção bíblica está a visão da pessoa humana assim como foi criada por Deus: ela não é jamais um ser isolado, autônomo, desvinculado de tudo e de todos, mas se encontra num relacionamento radical e essencial com Deus e com a comunidade dos irmãos e irmãs. Deus criou o ser humano segundo a sua própria imagem: a própria existência do ser humano é o primeiro e fundamental dom que ele recebeu de Deus. Na perspectiva bíblica, um discurso sobre as normas morais não pode ser restrito a elas, tomadas de modo isolado, mas deve ser sempre inserido no contexto da visão bíblica da existência humana. A primeira parte do documento propõe-se apresentar essa característica concepção bíblica na qual antropologia e teologia se compenetram mutuamente. Seguindo a ordem canônica da Bíblia, a pessoa humana aparece primeiro como criatura à qual Deus concedeu a própria vida, e depois como membro do povo escolhido com o qual Deus estipulou uma particular aliança e, finalmente, como irmão e irmã de Jesus, o Filho encarnado de Deus. Na segunda parte do documento põe-se em evidência que, na Sagrada Escritura, não se pode encontrar diretamente soluções aos numerosos problemas de hoje. Mesmo assim a Bíblia, embora não ofereça soluções pré-fabricadas, apresenta critérios cuja aplicação ajuda a encontrar soluções válidas para o agir humano. São indicados, antes de tudo, dois critérios fundamentais: a conformidade com a visão bíblica do ser humano e a conformidade com o exemplo de Jesus, seguindo-se outros critérios particulares. Do conjunto da Sagrada Escritura, com efeito, pode-se deduzir ao menos seis linhas de força para chegar a tomadas de posição morais sólidas, que se apóiem sobre a revelação bíblica: 1) uma abertura às diversas culturas e portanto um certo universalismo ético (critério da convergência); 2) uma tomada de posição firme contra os valores incompatíveis (critério da contraposição); 3) um processo de refinamento da consciência moral, que se encontra no interior de cada um dos dois Testamentos (critério da progressão); 4) uma retificação da tendência a relegar as decisões morais apenas à esfera subjetiva, individual (critério da dimensão comunitária); 5) uma abertura a um futuro absoluto do mundo e da história, susceptível de assinalar em profundidade o objetivo e a motivação do agir moral (critério da finalidade); 6) uma determinação atenta, segundo os casos, do valor relativo ou absoluto de princípios e preceitos morais (critério do discernimento). Todos esses critérios, cujo elenco é representativo mas não exaustivo, são profundamente radicados na Bíblia e a sua aplicação poderá ajudar o crente: trata-se de mostrar quais sejam os pontos que a revelação bíblica oferece para ajudar-nos, hoje, no processo delicado de um justo discernimento moral. Exprimo aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica o meu agradecimento pelo seu paciente e dedicado trabalho. Desejo que o presente texto ajude a descobrir sempre mais os valores fascinantes da vida genuinamente cristã e a considerar a Bíblia como tesouro inexaurível e sempre atual para a determinação do justo agir do qual depende o sucesso e a plena felicidade de cada pessoa e de toda a comunidade humana.
William Cardeal Levada
11 de maio de 2008
1. Desde sempre o ser humano está à procura de felicidade e de sentido. Como diz finamente Santo Agostinho: “Ele quer ser feliz mesmo vivendo de tal modo que não o seja” (De civitate Dei, XIV, 4). Essa expressão já põe o problema da tensão entre o desejo profundo do ser humano e as suas opções morais mais ou menos conscientes. Pascal exprime de modo admirável a mesma tensão: “Se o homem não é feito para Deus, por que é feliz somente em Deus? Se o homem é feito para Deus, por que se revela tão oposto a Deus?” (Pensées, II, 169). Propondo uma reflexão, a mais articulada possível, sobre o assunto delicado das relações entre Bíblia e moral, a Comissão Bíblica parte intencionalmente de dois pressupostos determinantes: 1 – Deus é, para cada crente e para cada ser humano, a resposta última a esta busca de felicidade e de sentido, 2 – a Sagrada Escritura, una, isto é abrangendo ambos os Testamentos, é uma base (“lugar”) válida e útil de diálogo com o ser humano contemporâneo sobre as questões que tocam a moral. 0.1. Um mundo que procura respostas 2.Não é possível, enquanto se aborda este projeto, fazer abstração da conjuntura atual. Na era da mundialização, observa-se em muitas das nossas sociedades uma transformação rápida de escolhas éticas, sob o choque dos deslocamentos de populações, das relações sociais tornadas mais complexas e dos progressos da ciência, especialmente no campo da psicologia, da genética e das técnicas da comunicação. Tudo isso exerce uma influência profunda sobre a consciência moral de muitas pessoas e grupos, a tal ponto que tende a desenvolver-se uma cultura fundada sobre o relativismo, a tolerância e a abertura às novidades, nem sempre suficientemente alicerçada nos seus fundamentos filosóficos e teológicos. Também para um bom número de cristãos católicos essa cultura da tolerância tem como contrapartida uma crescente desconfiança, mesmo uma marcada intolerância diante de certos aspectos do ensinamento moral da Igreja solidamente radicados na Escritura. Como chegar ao equilíbrio? 0.2. Nossos objetivos 3. No presente documento o leitor não encontrará nem uma teologia bíblica completa em matéria de moralidade, nem, ainda menos, receitas ou respostas feitas para os problemas morais, antigos ou novos, que são discutidos em nossos dias sobre todas as tribunas, compreendidos os meios de comunicação de massa. Nosso trabalho não pretende substituir o dos filósofos e dos teólogos moralistas. Um tratamento adequado dos problemas concretos postos pela moral necessitaria de um aprofundamento racional e também de um tratamento das ciências humanas, o que sairia claramente do campo da nossa competência. O nosso objetivo, mais modesto, é duplo. 1 – Antes de tudo, situar a moral cristã no horizonte mais vasto da antropologia e das teologias bíblicas. Isso ajudará desde o início a fazer emergir mais claramente a sua especificidade e a sua originalidade em relação seja às éticas e às morais naturais, fundadas na experiência humana e na razão, seja às morais propostas por outras religiões. 2 – O outro objetivo é, de certa maneira, mais prático. Não é fácil utilizar a Bíblia com propriedade quando nela se buscam luzes para aprofundar uma reflexão moral ou elementos de resposta no confronto de problemáticas ou situações morais delicadas. Entretanto, a própria Bíblia fornece ao leitor alguns critérios metodológicos aptos a facilitar esse caminho. Esse duplo objetivo comanda e explica a estrutura bipartida do presente documento. Num primeiro tempo: “uma moral revelada: dom divino e resposta humana”; depois: “alguns critérios bíblicos para a reflexão moral”. Do ponto de vista do método, sem deixar de lado o método histórico-crítico, inevitável por vários motivos, pareceu-nos útil, para os fins da nossa exposição, privilegiar claramente a abordagem canônica das Escrituras (cf. Pontifícia Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, I, C, 1). 0.3. Linhas de fundo para compreender a orientação do documento 0.3.1. O conceito chave: “moral revelada” 4. Num primeiro tempo, por fidelidade ao movimento de fundo da Escritura na sua totalidade, introduziremos o conceito, talvez não habitual, de “moral revelada”. Para a nossa exposição, é um conceito chave. Para chegar a falar de “moral revelada” é preciso livrar-nos de algumas pré-compreensões correntes. Enquanto se reduzir a moral a um código de comportamento individual e coletivo, a um conjunto de virtudes a praticar ou também aos imperativos de uma lei natural considerada universal, não se pode perceber suficientemente toda a especificidade, a bondade e a atualidade permanente da moral bíblica. Seja-nos permitido introduzir logo duas idéias fundamentais, que teremos ocasião de desenvolver em seguida: 1 – a moral, sem ser secundária, é segunda. O que é primeiro e fundamental é a iniciativa de Deus, que exprimiremos teologicamente em termos de dom. Em perspectiva bíblica, a moral se enraíza no dom prévio da vida, da inteligência e de uma vontade livre (criação), e sobretudo na oferta totalmente gratuita de uma relação privilegiada, íntima, do ser humano com Deus (aliança). Esta não é primeiramente resposta do homem, mas sim desvelamento do projeto de Deus e dom de Deus. Em outros termos, para a Bíblia, a moral vem depois da experiência de Deus, mais precisamente depois da experiência que Deus concede ao ser humano por dom puramente gratuito; 2 – a partir daqui, a própria Lei, parte integrante do processo da aliança, é dom de Deus. Ela não é de partida uma noção jurídica, impostada sobre comportamentos e atitudes, mas um conceito teológico, que a própria Bíblia traduz, tentativamente, com o termo “caminho” (derek em hebraico, hodós em grego): um caminho proposto. No contexto presente, uma tal perspectiva de aproximação se impõe de modo todo particular. O ensinamento moral, por certo, faz parte da missão essencial da Igreja, mas em segunda instância, em relação à valorização do dom de Deus e da experiência espiritual, coisa que os homens do nosso tempo às vezes têm dificuldade de perceber e de examinar adequadamente. O termo “moral revelada” não é talvez clássico nem habitual. Contudo, ele se inscreve no horizonte traçado pelo concílio Vaticano II na Constituição dogmática sobre a Divina Revelação. O Deus da Bíblia não revela antes de tudo um código, mas “a si mesmo” no seu mistério e “o mistério da sua vontade”. “Essa economia da revelação acontece com eventos e palavras intimamente conexos entre si, de tal modo que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e reforçam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras, e as palavras proclamam as obras e iluminam o mistério nelas contido.” (Dei Verbum, I, 2). Portanto, todos os atos com os quais Deus se revela têm uma dimensão moral pelo fato de que interpelam os seres humanos a conformarem seu pensamento e sua ação ao modelo divino: “Sede santos, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2); “Sede, portanto, perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). 0.3.2. A unidade dos dois Testamentos 5. Toda a revelação – ou seja, o projeto de Deus que quer dar-se a conhecer e abrir a todos os caminho da salvação – converge para Cristo. No coração da Primeira Aliança, o “caminho” designa ao mesmo tempo um percurso de êxodo (o evento libertador primordial) e um conteúdo didático, a Torá. No coração da Nova Aliança, Jesus diz de si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Condensa, portanto, na sua pessoa e na sua missão toda a dinâmica libertadora de Deus e também, em certo sentido, toda a moral, concebida teologicamente como dom de Deus , isto é, caminho para chegar à vida eterna, à intimidade total com Ele. Percebe-se aí a unidade profunda dos dois Testamentos. Hugo de São Vítor exprimia essa intuição com uma fórmula incisiva: “Toda a Escritura é um livro somente, e esse único livro é Cristo” (De arca Noe, II, 8). Ter-se-á cuidado de não opor Antigo e Novo Testamento, em matéria de moral como em qualquer outro campo. Nesse caso, o documento precedente da Pontifícia Comissão Bíblica poderá fornecer balizas úteis, quando assinala as relações entre ambos os Testamentos em termos de continuidade, descontinuidade e progressão (O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã, nn. 40-42). 0.4. Os destinatários do documento 6. Estamos conscientes de que nosso discurso é recebido em primeiro lugar pelo crente, a quem é primariamente destinado. Todavia esperamos suscitar um diálogo mais amplo entre homens e mulheres de boa vontade, de diversas culturas e religiões, que procuram, para além das vicissitudes do cotidiano, um caminho autêntico de felicidade e de sentido.
UMA MORAL REVELADA: DOM DIVINO E RESPOSTA HUMANA
7. A relação entre dom divino e resposta humana, entre ação antecedente de Deus e tarefa do homem, é determinante para a Bíblia e para a moral nela revelada. Começando na criação, procuramos descrever os dons de Deus segundo as diversas fases do seu agir em favor da humanidade e do povo eleito, e acrescentamos sempre as tarefas que Deus ligou com os seus dons. Além da relação apenas descrita, dois outros fatores são fundamentais para a moral bíblica. Ela não é caracterizada por um moralismo rigoroso, pelo contrário, o perdão para as pessoas caídas faz parte do dom de Deus. E, como se manifesta claramente no Novo Testamento, o agir terreno desenvolve-se no horizonte inspirador da vida eterna, que é o cumprimento dos dons de Deus. 1. O dom da criação e suas implicações morais 1.1. O dom da criação 8. A Bíblia nos apresenta Deus como Criador de tudo o que existe, especialmente nos primeiros capítulos do Gênesis e numa série de salmos. 1.1.1. No início do Gênesis O grande ciclo narrativo que se desenvolve no Pentateuco é introduzido pelos dois relatos das origens (Gn 1-2). Segundo uma perspectiva canônica, o ato divino da criação é o primeiro do relato bíblico. Esta criação inicial compreende tudo, “o céu e a terra” (Gn 1,1). Com isso se afirma que tudo é devido à determinação de Deus e é livre dom de Deus Criador. Para Israel, o reconhecimento de Deus como Criador de tudo não é o início do conhecimento de Deus, mas é fruto da sua experiência com Deus e da história da sua fé. O dom específico do Criador para o homem consiste no fato de que Deus o criou à sua imagem: “Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança” (Gn 1,26). Segundo a ordem do relato (Gn 1,1-31), o homem aparece como a meta da criação de Deus. Em Gn 1,26-28 o homem é descrito como lugar-tenente de Deus, de modo que ele se reporta ao seu Criador e este último – invisível e sem imagem – se reporta à sua criatura, o ser humano. Apresenta-se aqui um programa de antropologia teológica no sentido estrito do termo, enquanto pode falar de Deus só aquele que fala do homem e, vice-versa, pode falar do homem somente aquele que fala de Deus. Querendo especificar, o homem é “imagem” de Deus por causa, ao menos, de seis características: 1. a racionalidade, isto é, a capacidade e a obrigação de conhecer e de compreender o mundo criado; 2. a liberdade, que implica a capacidade e o dever de decidir e a responsabilidade pelas decisões tomadas (Gn 2); 3. uma posição de comando, porém de modo algum absoluto, e sim sob o domínio de Deus; 4. a capacidade de agir em conformidade com Aquele do qual a pessoa humana é imagem, ou seja, de imitar Deus; 5. a dignidade de ser uma pessoa, um ser ‘relacional’, capaz de ter relações pessoais com Deus e com os outros seres humanos (Gn 2); 6. a santidade da vida humana. 1.1.2. Em alguns Salmos 9. A parte da Bíblia na qual se fala mais de Deus Criador é uma série de salmos, por exemplo: Sl 8; 19; 139; 145; 148. Os salmos manifestam uma compreensão soteriológica da criação, porque vêem uma ligação entre a atividade de Deus na criação e a sua atividade na história da salvação. Eles descrevem a criação não em linguagem científica mas simbólica; não apresentam nem mesmo reflexões pré-científicas sobre o mundo, mas exprimem o louvor do Criador da parte de Israel. É afirmada a transcendência e a preexistência do Criador, que existe antes de toda a criação: “Antes que nascessem os montes, e a terra e o mundo fossem gerados, desde sempre e para sempre tu és, Deus” (Sl 90,2). Por outro lado, o mundo é caracterizado pelo tempo e pela história, pelo começar e pelo passar. Deus não pertence ao mundo e não faz parte do mundo. Pelo contrário, o mundo existe só porque Deus o criou e continua a existir só porque Deus o conserva na existência a cada momento. Aquele que criou provê o necessário para cada criatura: “Os olhos de todos em ti esperam, e tu lhes forneces o alimento na hora certa. Abres a mão, e sacias o desejo de todo ser vivo” (Sl 145,15-16). O universo não é um todo fechado em si, que sustente a si mesmo. Pelo contrário, os seres humanos junto com todas as outras criaturas dependem continuamente e radicalmente do seu Criador. É Deus quem, numa creatio continua lhes dá a vitalidade e os mantém na existência. Enquanto Gn 1 fala de Deus e da obra da criação, o Sl 104 fala a Deus criador em uma prece baseada sobre a experiência da bondade maravilhosa da criação, constatando a dependência total de toda criatura: “Se escondes teu rosto, desfalecem. Se a respiração lhes tiras, morrem e voltam ao pó. Mandas teu espírito, são criados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104,29-30). Do mesmo Deus que tudo criou e mantém, Israel espera a ajuda: “Nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 124,8; cf. 121,2). A potência desse Deus, porém, não está restrita a Israel mas abrange todo o mundo, todos os povos: “Que toda a terra tema o Senhor, tremam diante dele todos os habitantes do mundo” (Sl 33,8). O convite ao louvor do Criador estende-se a toda a criação: céu e terra, sol e lua, monstros marinhos e feras, reis e povos, jovens e anciãos (Sl 148). O domínio de Deus estende-se a tudo o que existe. O Criador assinalou uma posição especial ao ser humano. Não obstante a fragilidade e a caducidade humanas, o salmista afirma com assombro: “Contudo, tu o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste. Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos, tudo puseste sob os seus pés (Sl 8, 6-7). “Glória” e “honra” são atributos do rei: mediante eles vem atribuída ao ser humano uma posição régia na criação de Deus. Esse “status” torna o ser humano próximo de Deus, o qual é sobremaneira caracterizado por “glória” e “honra” (cf. Sl 29,1: Sl 104, 1), e o coloca, ao homem, acima do restante da criação. Chama-o a governar sobre o mundo criado, mas com responsabilidade e de modo sábio e benévolo, características do reino do próprio Criador. 1.1.3. Dados fundamentais da existência humana 10. Ser criatura de Deus, ter recebido tudo da parte de Deus, ser essencialmente e intimamente um dom de Deus, isso é o dado fundamental da existência humana e portanto também do agir humano. Essa relação com Deus não se acrescenta como elemento secundário e transitório à existência humana, mas constitui-se como seu fundamento permanente e insubstituível. Segundo essa concepção bíblica, nada do que existe provém de si mesmo, numa espécie de auto-criação, nem é fruto do acaso, mas é fundamentalmente determinado pela vontade e potência criadora de Deus. Esse Deus é transcendente e não faz parte do mundo. Mas o mundo e o ser humano no mundo, não existem sem Deus, dependem radicalmente de Deus. O ser humano não pode adquirir uma verdadeira e real compreensão do mundo e de si mesmo sem Deus, sem reconhecer essa total dependência de Deus. Tal dom inicial é o dom fundamental que permanece e que não é cancelado mas aperfeiçoado pelas sucessivas intervenções e dons divinos. Esse dom é determinado pela vontade criadora de Deus, e por isso o homem não pode tratá-lo ou utilizá-lo de modo arbitrário, mas deve descobrir e respeitar as características e estruturas que o Criador concedeu à sua criatura. 1.2. O ser humano criado como imagem de Deus e a sua responsabilidade moral 11. Quando se compreende que todo o mundo é criado por Deus, é um dom intimamente e continuamente dependente de Deus, daí resulta o empenho sério para descobrir os modos de agir que o próprio Deus inseriu no ser humano e em toda a sua criação. 1.2.1. Segundo os relatos da criação Cada uma das características que tornam o ser humano “imagem de Deus” traz consigo importantes implicações morais. 1. O conhecimento e o discernimento fazem parte do dom de Deus. O ser humano é capaz e, como criatura, está obrigado a indagar o projeto de Deus e a procurar discernir a vontade divina para poder agir com justiça. 2. Por causa da liberdade que lhe é dada, o ser humano é chamado ao discernimento moral, à escolha, à decisão. Em Gn 3,22, depois do pecado de Adão e a sua sanção, Deus diz: “Eis que o homem tornou-se como um de nós, capaz de conhecer o bem e o mal.” O texto é difícil de explicar. Por um lado, tudo indica que a afirmação tem um sentido irônico, porque mediante as próprias forças, apesar da proibição, o homem procurou apoderar-se do fruto e não esperou que Deus lho desse no tempo oportuno. De outro lado, o significado da árvore do conhecimento total – assim deve entender-se a expressão bíblica ‘conhecer o bem e o mal’ – não se limita a uma perspectiva moral, mas significa também o conhecimento dos resultados bons e maus, isto é, do futuro e do destino: isso compreende o domínio do tempo, que é competência exclusiva de Deus. Quanto à liberdade moral dada ao ser humano, ela não se reduz a um simples auto-regulamento e auto-determinação, uma vez que o ponto de referência não é o eu nem o tu, mas o próprio Deus. 3. A posição de comando confiada ao ser humano implica responsabilidade, empenho de gestão e administração. Também ao homem compete a tarefa de formar de modo “criativo” o mundo feito por Deus. Ele deve aceitar essa responsabilidade, também porque a criação não deve ser conservada num estado determinado, mas está desenvolvendo-se, e o homem, como ser que une em si mesmo natureza e cultura, encontra-se junto a toda a criação. 4. Essa responsabilidade deve ser exercitada de um modo sábio e benévolo, imitando o domínio do próprio Deus sobre a sua criação. Os homens podem conquistar a natureza e explorar as amplidões do espaço. Os extraordinários progressos científicos e tecnológicos do nosso tempo podem ser considerados como realizações da tarefa dada pelo Criador à humanidade, a qual entretanto deve respeitar os limites fixados pelo Criador. Caso contrário, a terra torna-se lugar de exploração indevida, que pode destruir o delicado equilíbrio e a harmonia da natureza. Seria certamente ingênuo pensar que possamos encontrar uma solução da atual crise ecológica no Salmo 8; ele, porém, entendido no contexto de toda a teologia da criação em Israel, questiona praxes hodiernas e exige um novo sentido de responsabilidade pela terra. Deus, a humanidade e o mundo criado estão conexos entre si e por isso também teologia, antropologia e ecologia. Sem o reconhecimento do direito de Deus em relação a nós e em relação ao mundo, o domínio degenera facilmente em dominação desenfreada e em exploração que conduzem ao desastre ecológico. 5. A dignidade que as pessoas possuem como seres relacionais convida-as e as obriga a procurarem e viverem um relacionamento com Deus a quem devem tudo; fundamental para o relacionamento com Deus é a gratidão (cf. o parágrafo seguinte, n. 12, baseado nos salmos). Isso também implica entre as pessoas uma dinâmica das relações de responsabilidade comum, de respeito ao outro e uma contínua busca de equilíbrio, não somente entre os sexos mas também entre a pessoa e a comunidade (entre valores individuais e sociais). 6. A santidade da vida humana requer um respeito e tutela totalmente abrangentes, e veta o derramamento do sangue humano, “porque à imagem de Deus ele fez o ser humano” (Gn 9,6). 1.2.2. Segundo os Salmos 12. O reconhecimento de Deus como Criador conduz ao louvor e à adoração, pois a criação atesta a divina sabedoria, poder e fidelidade. Louvando a Deus, junto com o salmista, pelo esplendor, a ordem e a beleza da criação, somos incitados a um profundo respeito para com o mundo do qual os homens fazem parte. A pessoa humana constitui o cume da criação porque somente os homens podem ter um relacionamento pessoal com Deus e podem articular o seu louvor também como representantes das outras criaturas. Por meio dos homens e mediante o culto da comunidade, toda a criação exprime o louvor de Deus criador (cf. Sl 148). Os salmos da criação conduzem também a uma sã e positiva valorização do mundo atual, porque a vida neste mundo é fundamentalmente boa. No passado, pôde acontecer que a tradição cristã estivesse tão ocupada com a salvação eterna das pessoas, que ela deixava de dar a justa atenção ao mundo natural. Entretanto, a dimensão cósmica da fé na criação, articulada nos Salmos, exige que a atenção se volte para a natureza e a história, para o mundo humano e o sub-humano, envolvendo assim ao mesmo tempo a cosmologia como a antropologia e a teologia. O saltério se ocupa dos temas inevitáveis da existência humana num mundo de mistério, incerteza e ameaça (cf. os salmos de lamentação). Os salmistas mantêm a confiança num Criador benévolo que continuamente cuida de suas criaturas. Isto suscita um contínuo hino de louvor e de ação de graças: “Louvai o Senhor pois Ele é bom, pois eterno é o seu amor” (Sl 136,1). 1.2.3. Conclusão: nas pegadas de Jesus 13.O Novo Testamento assume plenamente a teologia da criação do Antigo Testamento, conferindo-lhe ainda uma dimensão cristológica determinante (p. ex. Jo 1,1-18; Cl 1,15-20). Isso implica evidentemente conseqüências morais. Jesus torna caducas as prescrições antigas sobre o puro e o impuro (Mc 7,18-19), assim aceitando, na esteira do Gênesis, que todas as coisas criadas são boas. Paulo vai exatamente no mesmo sentido (Rm 14,14; cf. 1Tm 4,4-5). Quanto à expressão-chave “imagem de Deus”, o córpus paulinoretoma-a para aplicá-la não só a Cristo, “primogênito da criação” (Cl 1,15), mas a cada ser humano (1Cor 11,7; Cl 3,10). Não causa admiração que nas cartas se reencontrem as características antropológicas sugeridas por aquela expressão, unida ao aspecto moral: racionalidade (“lei escrita nos corações”, “lei da razão”; Rm 2,15. 7,23), liberdade (1Cor 3,17; Gl 5,1.13), santidade (Rm 6,22; Ef 4,24), etc. Teremos mais tarde (cf. nn. 97, 99) ocasião de tratar da dimensão relacional, especialmente no que se refere ao instituto matrimonial (cf Gn 1,27: “homem e mulher ele os criou”). 2. O dom da aliança no Antigo Testamento e as normas para o agir humano 14. A criação e as suas implicações morais são o dom inicial e permanecem o dom fundamental de Deus, mas não são o seu único e último dom. Além de na criação, Deus manifestou sua infinita bondade e se dirigiu às suas criaturas humanas especialmente na eleição do povo de Israel e na aliança que Ele celebrou com esse povo, revelando ao mesmo tempo o caminho justo para o agir humano. Para apresentar a riqueza do tema bíblico da aliança, convém tomá-la em consideração por dois pontos de vista: a progressiva percepção dessa realidade na história de Israel, e a apresentação narrativa que se encontra na redação final da Bíblia canônica. 2.1. A progressiva percepção da aliança (abordagem histórica) 2.1.1. Uma primeira experiência fundamental e fundadora: um caminho comum para a liberdade 15. Geralmente há consenso em atribuir ao tempo de Moisés o nascimento de Israel como povo constituído. Mais precisamente, numa perspectiva de teologia bíblica, identifica-se na saída do Egito o evento histórico fundamental e fundador. Só mais tarde, e na base do elemento fundador, foram recuperadas e reinterpretadas as tradições orais que se referem aos antepassados da era patriarcal e foram apresentadas as origens da humanidade em relatos prevalentemente teológicos e simbólicos. Grosso modo, portanto, podem-se considerar os eventos narrados no Gênesis como pertencentes à pré-história de Israel como povo constituído. 2.1.2. Uma primeira intuição de interpretação teológica 16. Se a saída do Egito permitiu a aparição de Israel como povo constituído, esse fato deve-se a uma interpretação teológica do evento, como se encontra presente, ao menos de modo germinal, desde as origens. Tal interpretação teológica sumária se reduz a isto: a consciência da presença e da intervenção de um Deus que protege o grupo que está saindo sob a direção de Moisés, presença e intervenção perceptíveis de modo impressionante no evento primordial e fundador, a travessia do mar, que foi experimentada como um prodígio. Isso é atestado pelo nome simbólico que esse Deus protetor dá a si mesmo e revela (Ex 3,14). A Bíblia hebraica usará esse nome muitas vezes na forma YHWH ou na forma abreviada YH. Ambas são de difícil tradução mas filologicamente implicam uma presença dinâmica e atuante de Deus em meio ao seu povo. Os judeus não pronunciam esse nome, e os tradutores gregos do texto hebraico o verteram com a palavra Kyrios, “o Senhor”. Com a tradição cristã seguimos esse costume e, para relembrar a presença de YHWH no texto hebraico escreveremos com maiúsculas, o SENHOR. A intuição teológica inicial concretiza-se em quatro traços principais: o Deus de Israel acompanha, liberta, dá, e recolhe. 1. Acompanha: indica o caminho no deserto, em virtude de uma presença simbolizada, segundo as tradições, pelo anjo guia ou pela nuvem que evoca o mistério impenetrável (Ex 14,19-20 e passim). 2. Liberta: do jugo da opressão e da morte. 3. Dá, duplamente: de uma parte, Ele dá-se a si mesmo enquanto Deus do povo nascente; de outra parte, dá a esse povo o “caminho” (derek), isto é, o meio de entrar e permanecer em relação com Deus, e assim para doar-se a Deus em resposta. 4. Recolhe o povo nascente em torno a um projeto comum, um projeto de ‘viver junto’ (de formar um qahal, a que pode corresponder em grego a palavra ekklesía). 2.1.3. Um conceito teológico original que exprime a intuição: a aliança 17. De que maneira expressou Israel, na sua literatura sagrada, essa aliança única entre o povo e Deus, esse Deus que desde o início o acompanha, o liberta, se dá a ele e o recolhe? a. Das alianças humanas à aliança teológica Num dado momento, difícil de determinar com exatidão, um conceito interpretativo maior (abrangente) impôs-se aos teólogos de Israel: a noção de aliança. O tema tornou-se tão importante que determinou, desde o início, ao menos retrospectivamente, a concepção das relações entre Deus e o seu povo privilegiado. De fato, no relato bíblico, o evento histórico fundamental e fundador é quase imediatamente seguido por uma conclusão de aliança: “no terceiro mês depois da saída do Egito” (Ex 19,1), respectivamente símbolo de um tempo divino e símbolo de um início. Isso quer dizer: o evento fundamental e fundador inclui, no seu alcance meta-histórico, a estipulação da aliança no Sinai a tal ponto que, da perspectiva de uma teologia bíblica diacrônica, o evento primordial será descrito nos termos de êxodo-e-aliança. Além disso, esse conceito interpretativo, que vem aplicado aos eventos da saída do Egito, estende-se retrospectivamente ao passado em forma de etiologia. De fato, encontra-se no Gênesis. A idéia da aliança é utilizada para descrever o relacionamento entre o SENHOR Deus e Abraão, o antepassado (Gn 15; 17). Antes, num passado ainda mais longínquo e misterioso, entre o SENHOR Deus e os seres vivos que sobreviveram ao dilúvio no “tempo” de Noé, o patriarca (Gn 9, 8-17). No Antigo Próximo e Médio Oriente as alianças entre contraentes humanos existiam em forma de tratados, convenções, contratos, matrimônios, e até em pactos de amizade. E deuses protetores funcionavam como testemunhas e fiadores no processo da estipulação dessas alianças humanas. Também a Bíblia recorda alianças desse gênero. Porém, até prova em contrário – e nenhum documento arqueológico até agora encontrado torna inválida essa constatação – a transposição teológica da idéia da aliança é uma originalidade bíblica: só aí se encontra o conceito de uma aliança propriamente dita entre um contraente divino e um ou mais contraentes humanos. b. A aliança entre contraentes desiguais 18. É certo que Israel, nas origens, não podia sequer sonhar em exprimir a sua relação privilegiada com Deus, o Totalmente Outro, o Transcendente, o Onipotente, segundo um esquema de igualdade, horizontal: Deus ↔ Israel No momento em que se introduziu a idéia teológica da aliança, espontaneamente se pôde pensar só nas alianças entre contraentes desiguais, bem conhecidas na praxe diplomática e jurídica do antigo Próximo Oriente extra-bíblico: os famosos tratados de vassalagem. É difícil excluir completamente o influxo da ideologia política da vassalagem como ponto concreto de referência para a compreensão da aliança teológica. A intuição de um contraente divino que toma e preserva a iniciativa de um termo ao outro do processo da aliança constitui a perspectiva de fundo de quase todos os textos maiores da aliança no Antigo Testamento. Deus ↕ Israel Nesse tipo de relacionamento entre os contraentes, o soberano empenha-se para com o vassalo e empenha o vassalo para consigo. Noutras palavras, ele obriga-se para com o vassalo do mesmo modo como obriga o vassalo de sua parte. No processo das estipulações da aliança, Ele é o único que se exprime: o vassalo, nessa etapa, permanece calado. Esse duplo movimento exprime-se, em campo teológico, através de dois termos principais: a Graça (o SENHOR empenha-se a si mesmo) e a Lei (o SENHOR empenha o povo que se torna sua “propriedade”: Ex 19,5-6). Nessa moldura teológica, a graça pode ser definida como o dom (incondicionado, em certos textos) que Deus faz de si mesmo. E a Lei, como o dom que Deus faz à coletividade, de um meio, uma via, um “caminho” (derek) ético-cultual que permite ao ser humano entrar e permanecer “em situação de aliança”. Numa etapa posterior, essa dinâmica da aliança parece ter-se concentrado numa expressão estereotipada que normalmente se chama a “fórmula da aliança” (Bundesformel) – “eu serei o teu Deus e tu serás o meu povo” ou algo equivalente: ela difundiu-se um pouco por toda parte num e no outro Testamento, especialmente no contexto da “nova aliança” anunciada por Jeremias (31,31-34). Sinal bastante evidente que se trata de um tema principal, de uma constante de fundo. Esquema semelhante aplica-se a Davi e à sua descendência: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2Sm 7,14). c. O lugar da liberdade humana 19. Nessa moldura teológica, a liberdade moral do ser humano não entra como um sim necessário e constitutivo da aliança – nesse caso tratar-se-ia de uma aliança paritética, isto é, entre contraentes iguais. A liberdade intervém mais tarde, como uma conseqüência, quando todo o processo da aliança está completo. Todos os textos bíblicos pertinentes distinguem, de uma parte, o conteúdo da aliança, e de outra o rito ou a cerimônia que segue o dom da aliança. O empenho do povo, sob juramento, não faz parte das condições ou cláusulas, mas só dos elementos de garantia jurídica, na moldura de uma celebração cultual. Desse modo nasce a “moral revelada”, a “moral em situação de aliança”: um dom de Deus, totalmente gratuito, que, uma vez oferecido, interpela a liberdade do ser humano quanto a um sim completo, uma aceitação integral: a mínima derrogação séria é equivalente a uma recusa. Essa moral revelada, expressa em moldura teológica de aliança, representa uma novidade absoluta em relação aos códigos éticos e cultuais que regiam a vida dos povos vizinhos. Ela tem, por essência, um caráter de resposta, segue à graça, ao auto-empenho de Deus. d. Conseqüências para a moral 20. Vê-se, portanto, que a moral é muito mais que um código de comportamentos e atitudes. Ela apresenta-se como um “caminho” (derek) revelado, presenteado: leimotiv bem desenvolvido no Deuteronômio, junto aos profetas, na literatura sapiencial e nos salmos didáticos. Dois elementos de síntese devem ser especialmente considerados. 1º No sentido bíblico, esse “caminho” deve ser concebido desde o começo e antes de tudo de modo global, segundo o seu sentido teológico profundo: ele designa a Lei como um dom de Deus, como fruto da iniciativa exclusiva de um Deus soberano que se empenha a si mesmo numa aliança e empenha o seu contraente humano. Essa Lei distingue-se das muitas leis através das quais ela se exprime e se concretiza por escrito, sobre a pedra, sobre o pergaminho, sobre o papiro ou de outras maneiras. 2º Esse “caminho” moral não chega sem preparação. Na Bíblia ele pertence a um caminho histórico de salvação, de libertação, ao qual compete um caráter primordial, fundador. Dessa constatação devemos deduzir uma conseqüência extremamente importante: a moral revelada não ocupa o primeiro lugar, mas deriva de uma experiência de Deus, de um “conhecimento” no sentido bíblico, revelado através do evento primordial. A moral revelada continua, por assim dizer, o processo da libertação iniciado no arquétipo do êxodo: ela assegura-lhe, garante-lhe a estabilidade. Em poucas palavras: nascida de uma experiência do acesso à liberdade, a “moral em situação de aliança” procura preservar e desenvolver essa liberdade, seja exterior seja interior, na vida quotidiana. A opção moral do crente pressupõe uma experiência pessoal de Deus, mesmo se não assim chamada e só mais ou menos cônscia. 2.2. As diversas expressões da aliança (abordagem canônica) 21. Vejamos o tema da aliança, como se apresenta na ordem canônica da Bíblia. 2.2.1. A aliança com Noé e com “toda carne” a. Punição e aliança As primeiras ocorrências da palavra “aliança” no Antigo Testamento encontram-se no relato do dilúvio (Gn 6,18; 9,8-17). Nessa tradição teológica sublinha-se fortemente a gratuidade da iniciativa divina e seu alcance incondicionado. A punição, cósmica, responde ao estado de coisas que é de amplidão proporcional: “A terra se pervertera diante de Deus e se enchera de violência. E Deus viu que a terra estava pervertida: toda a humanidade tinha pervertido sua conduta na terra. Então, Deus disse a Noé: Decidi pôr fim a toda a humanidade” (Gn 6,11-13). Mas logo intervém o projeto da aliança. No que se refere aos contraentes, a aliança é estabelecida em círculos concêntricos, isto é, simultaneamente com o próprio Noé (6,18), com a sua família e com a sua futura descendência (9,9), com “toda carne”, isto é, com tudo o que é um “ser vivo” (cf 9,10-17), e até mesmo com “a terra” (9,13). Pode-se falar, portanto, de uma aliança cósmica, proporcional ao estado de perversidade e à punição. Dessa aliança Deus dá um “sinal”, obviamente um sinal cósmico: “Ponho meu arco nas nuvens...” (9,13-16). Tem-se a impressão, à primeira vista, que a imagem se refira simplesmente ao arco-íris como fenômeno meteorológico, que acontece depois da chuva. Mas, segundo toda probabilidade, a conotação militar não é de excluir-se, tendo em conta o fato de que Deus diz “o meu arco”. De fato, “arco”, com exceção de Ez 1,28, designa sempre a arma de guerra e não o arco-íris. Aqui, do ponto de vista simbólico, dois detalhes merecem ser considerados. Primeiro, a própria forma do arco, esticado para o céu e não mais para a terra, sugere a idéia da paz, fruto da iniciativa puramente gratuita de Deus: nessa posição, nenhuma flecha pode mais ser lançada contra a terra. Por outro lado, tocando o céu e apoiado sobre a terra como uma espécie de ponte vertical, o arco simboliza o contacto restabelecido entre Deus e a humanidade renascida, salva. b. Conseqüências para a moral 22. Ao leitor de hoje apresentam-se sobretudo três aspectos com evidência. 1º Do ponto de vista da ecologia: a corrupção e a violência humana têm graves repercussões sobre o hábitat, o ambiente (Gn 6,13). Elas arriscam levar ao caos a obra criadora de Deus (cf. Os 4,2-3). 2º Do ponto de vista da antropologia: também num mundo corrompido o ser humano preserva intacta a sua dignidade de “imagem de Deus” (9,6; cf. 1,26-27). Deve-se levantar um dique contra o mal, a fim de que o homem, experimentando a salvação de Deus, desenvolva a sua missão de fecundidade (9,1.7). 3º Do ponto de vista da administração dos recursos: ao ser humano é atribuído certo poder sobre a vida dos animais (confrontem-se 9,3 e 1,29). No entanto, ele deve respeitar qualquer vida como algo de misterioso (9,4). A extensão da aliança a todos os seres vivos e a toda a terra põe em relevo o estatuto do homem como companheiro de todos os seres da criação. Merece atenção nesse contexto a modificação da exortação dirigida a Noé, novo Adão. Em lugar de: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai...” (Gn 1,28), encontra-se apenas: “Sede fecundos e multiplicai-vos, povoai a terra e multiplicai-vos nela” (9,7). No máximo os animais são “entregues às mãos” do homem para lhe servirem de alimento (9,3). A experiência concreta do mal, da “violência”, parece ter colocado uma sombra na missão ideal confiada ao ser humano no ato inicial da criação: o papel de administração e de regência em relação ao ambiente encontra-se um pouco relativizado. Mas a referência explícita de Gn 9,1-2 a Gn 1,26-27 mostra que o horizonte moral de Gn 1 não é anulado. Permanece como ponto de referência principal para os leitores do livro do Gênesis. 2.2.2. A aliança com Abraão a. Relatos sobre Abraão-Isaac e sobre Jacó 23. O “ciclo de Abraão-Isaac” (Gn 12,1—25,18; 26,1-33) está, do ponto de vista literário, estreitamente ligado ao “ciclo de Jacó” (Gn 25,19-34; 26,34—37,1). Os relatos sobre Abraão-Isaac e os relatos sobre Jacó são semelhantes até nos detalhes. Abraão e Jacó percorrem os mesmos itinerários, atravessando o país do Norte ao Sul e seguindo a mesma cadeia de montanhas. Essas indicações topográficas fazem moldura ao complexo literário de Gn 12-36 (cf Gn 12,6-9 e Gn 33,18—35,27). Os fatos literários convidam a ler os relatos sobre Abraão no contexto mais amplo da seqüência que concerne Abraão-Isaac e Jacó. b. Aliança, bênção e lei A aliança dada pelo SENHOR tem três corolários: uma promessa, uma responsabilidade, e uma lei. 1º A promessa é a da terra (Gn 15,18; 17,8; 28,15) e de uma descendência – promessa dirigida a Abraão, depois a Isaac e em seguida a Jacó (cf. Gn 17,15-19; 26,24; 28,14). O tema é depois espiritualizado (cf. Pontifícia Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã, nn. 56-57). 2º A responsabilidade que é confiada a Abraão diz respeito não só ao próprio clã, mas ainda, mais largamente, a todas as nações. A expressão bíblica dessa responsabilidade utiliza o vocabulário da bênção: Abraão deve tornar-se uma nação grande e poderosa, e todas as nações da terra serão benditas [‘ brk’ ] nele (Gn 18,18). A intercessão em favor de Sodoma, que segue imediatamente no relato, ilustra essa função mediadora de Abraão. Assim, a aliança não conduz somente a herdar o dom de Deus (uma descendência, uma terra), mas confere ao mesmo tempo um encargo. 3º O empenho de Abraão na aliança passa através da obediência à lei: “De fato, eu o escolhi para que ensine seus filhos e sua casa a guardarem os caminhos do SENHOR, praticando a justiça e o direito” (Gn 18,19). c. Conseqüências para a moral 1º O nexo teológico constituído pelo ciclo de Abraão entre aliança e responsabilidade universal permite precisar a vocação particular do povo de Deus: posto à parte mediante uma aliança específica, ele herda por esse fato uma responsabilidade singular no confronto das nações, para as quais se torna o mediador da bênção divina. Uma tal pista teológica parece fecunda para articular a dimensão particular e a validade universal da moral bíblica. 2º O ciclo de Abraão e o de Jacó insistem na dimensão histórica da vida moral. Ambos, Abraão e Jacó, seguem um itinerário de conversão que o relato procura descrever com precisão. A aliança proposta por Deus embate-se nas resistências humanas. O relato bíblico leva em conta aqui a dimensão da temporalidade, na abordagem que propõe para a fidelidade à aliança e para a obediência a Deus. 2.2.3. A aliança com Moisés e o povo de Israel 24. Expondo a progressiva concepção da aliança, já pusemos em relevo alguns de seus traços essenciais. A experiência fundante da aliança verifica-se no Sinai. Ela é apresentada num evento histórico fundador. É completamente dom de Deus, fruto da sua iniciativa total, e empenha seja o próprio Deus (a Graça), seja os homens (a Lei). Confere a Israel recém-nascido o estatuto de povo com plenos direitos. Uma vez estipulada, exige a resposta livre do homem, a ser compreendida, num primeiro passo, como a aceitação de um “caminho de vida” (a Lei, no sentido teológico), e depois, a seguir, como a prática de determinações precisas (as leis). Queremos apresentar tal resposta não na sua globalidade teológica e imutável (a Lei), mas na sua expressão plural e detalhada, eventualmente adaptável às circunstâncias (as leis). Uma série de normas está ligada à estipulação da aliança sinaítica. Entre elas compete um estatuto especial ao Decálogo. Ocupamo-nos primeiro exatamente com o Decálogo, para depois voltar-nos aos códigos legislativos e ao ensinamento moral dos profetas. 2.2.3.1. O Decálogo 25. Cada povo novo deve dar a si mesmo, antes de tudo, uma constituição. A de Israel espelha a vida simples dos clãs semi-nômades que o formam em sua origem. Aproximativamente, prescindindo dos retoques e dos desenvolvimentos que foram acrescentados, “as dez palavras” atestam bastante bem o conteúdo substancial da lei fundamental do Sinai. A sua posição redacional (Ex 20,1-17), imediatamente antes do “Código da Aliança” (Ex 20,22—23,19) e a sua repetição (Dt 5,6-21), com algumas variantes, no início do “Código Deuteronômico” (Dt 4,44—26,19), já indicam a sua importância preponderante no conjunto da “Torá”. Em hebraico, esta última palavra quer dizer “instrução, ensinamento”; tem, portanto, um sentido muito mais amplo e profundo do que a nossa palavra “lei”, a qual porém é utilizada por quase todos os tradutores. Paradoxalmente, no seu teor original, o Decálogo reflete uma ética ao mesmo tempo inicial e potencialmente muito rica. a. Uma ética inicial 26. Os limites constatam-se de três pontos de vista: a exterioridade, o alcance essencialmente comunitário, a formulação mais vezes negativa da exigência moral. 1º A maioria dos exegetas, procurando o sentido literal, sublinha que originariamente cada proibição se referia a ações exteriores, observáveis e verificáveis, inclusive o “hamad” (desejo), que introduz os dois mandamentos finais (Ex 20,17); de fato, ele não exprime um pensamento ou desígnio ineficaz, totalmente interior (“desejar”), mas antes o estratagema concreto para realizar um mau desígnio (“desejo que se exprime em ações”, “mirar a”, “dispor-se a”). 2º Além disso, uma vez saído do Egito, o povo libertado tinha necessidade urgente de regras precisas para ordenar sua vida coletiva no deserto. O Decálogo responde em princípio a essa exigência, de maneira que nele se pode ver uma lei fundamental, uma primitiva carta nacional. 3º Oito dos dez mandamentos são formulados negativamente, constituem proibições, um pouco à maneira de balaustradas numa ponte. Só dois têm forma positiva, de preceitos a cumprir. O acento é posto, portanto, na abstenção de comportamentos socialmente danosos. Isso evidentemente não exaure todas as virtualidades da moral que em princípio tem como finalidade esclarecer e estimular o agir humano para a realização do bem. b. Uma ética potencialmente muito rica 27. Três outras características, ao contrário, fazem do Decálogo original o fundamento insubstituível de uma moral estimulante e bem adaptada à sensibilidade do nosso tempo: o seu alcance virtualmente universal, a sua pertença a um quadro teológico de aliança e também o seu enraizamento num contexto histórico de libertação. 1º Para uma consideração atenta, todos os mandamentos têm um alcance que ultrapassa decididamente os confins de uma nação particular, também os do povo eleito de Deus. Os valores por eles promovidos podem ser aplicados a toda a humanidade de todas as regiões e de todos os períodos da história. Veremos que até as duas primeiras proibições, além da aparente particularidade da denominação “o SENHOR Deus de Israel”, ilustram um valor universal. 2º A pertença do Decálogo a um quadro teológico de aliança causa a subordinação das dez leis, como vêm indicadas, à noção da própria Lei compreendida como um presente, um dom gratuito de Deus, um “caminho” global, uma estrada claramente traçada que torna possível e facilita a orientação fundamental da humanidade para Deus, para a intimidade, a comunicação com Ele, para a felicidade e não para a miséria, para a vida e não para a morte (cf. Dt 30,19s). 3º Na introdução ao Decálogo, o SENHOR resume no essencial a sua ação libertadora: ele fez sair os seus de uma “casa” na qual eram “escravos” (Ex 20,2). Ora, um povo que quer libertar-se de um jugo exterior sufocante e que acaba de o fazer, deve estar atento a não procurar um jugo interno que escravize e asfixie da mesma maneira. O Decálogo, de fato, abre largamente o caminho a uma moral de libertação social. Esse apreço à liberdade, em Israel, será tão expansivo que chegará a incluir até a terra, o solo cultivável: a cada sete anos (ano sabático) e, ainda mais, a cada quarenta e nove anos (ano jubilar), há obrigação de deixar a terra tranqüila, livre de toda violência, livre dos arados e das enxadas (cf. Lv 25,1-54). c. Conseqüências para a moral de hoje 28. Praticamente, o Decálogo pode servir como base para uma teologia e catequese moral adaptada às necessidades e às sensibilidades da humanidade de hoje? 1) Os aparentes inconvenientes A exterioridade, o alcance essencialmente comunitário, e a formulação quase sempre negativa da primitiva ética israelita fazem que o Decálogo, por si só, ao menos se reproduzido tal e qual, se torne menos adaptado a exprimir de modo adequado o ideal da vida moral que a Igreja propõe a seus contemporâneos. 1º O homem moderno, marcado pelas descobertas da psicologia, insiste muito sobre a origem interna, até inconsciente, dos seus atos exteriores, em forma de pensamentos, desejos, motivos escuros e também impulsos difíceis de controlar. 2º Por certo, é sabedor das exigências da vida coletiva, mas ao mesmo tempo tende a reagir contra os imperativos de uma globalização ilimitada, e descobre tanto mais o alcance do indivíduo, do eu, das aspirações ao desenvolvimento pessoal. 3º De resto, em muitas sociedades desenvolve-se há alguns decênios uma espécie de alergia contra toda forma de proibição: todas as proibições são interpretadas, mesmo se de modo equivocado, como limites e amarras da liberdade. 2) As vantagens reais 29. Por outro lado, o alcance virtualmente universal da moral bíblica, a sua pertença a um quadro teológico de aliança e o seu enraizamento no contexto histórico de libertação podem ter um certo atrativo no nosso tempo. 1º Quem não sonha com um sistema de valores que supere e reúna as nacionalidades e as culturas? 2º A insistência prioritária numa orientação de molde teológico, mais que numa quantidade de comportamentos a evitar ou a praticar, poderia suscitar um maior interesse pelos fundamentos da moral bíblica junto àqueles que são alérgicos às leis que parecem restringir a liberdade. 3º O conhecimento das circunstâncias concretas nas quais o Decálogo se formou na história mostra ainda mais até que ponto esse texto fundamental e fundador não é limitador e opressivo mas, ao contrário, está a serviço da liberdade do ser humano, seja individual seja coletiva. 3) A descoberta dos valores através das obrigações 30. De fato, o Decálogo esconde em si todos os elementos necessários para fundar uma reflexão moral bem equilibrada e adaptada ao nosso tempo. Todavia, não basta traduzi-lo do hebraico original para uma língua moderna. Na sua formulação canônica, ele tem a forma das leis apodícticas e pertence à linha de uma moral das obrigações (ou deontologia). Nada nos impede de traduzir de modo diverso, mas não menos fiel, o conteúdo da carta israelita em termos de uma moral dos valores (ou axiologia). Assim damo-nos conta de que, transcrito desse modo, o Decálogo adquire uma força de clarificação e de apelo maior para o nosso tempo. Na realidade, não só não se perde nada nessa mudança, mas há um ganho enorme de profundidade. Por si, a proibição concentra-se apenas sobre comportamentos a evitar e encoraja, no máximo, uma moral tipo freio de socorro (por exemplo, evita-se o adultério quando se abstém de cortejar a mulher do outro). O preceito positivo, de sua parte, pode contentar-se com qualquer gesto ou atitude para aquietar a consciência, encorajando, no máximo, uma moral de gestos mínimos (por exemplo, pensa-se em estar observando o sábado quando se dedica ao culto uma hora por semana). Ao contrário, o empenho por um valor corresponde a um canteiro de obras sempre aberto, onde não se chega nunca à meta e onde se é chamado sempre a um mais. Transpostos numa terminologia de valores, os preceitos do Decálogo conduzem ao elenco seguinte: o Absoluto, a reverência religiosa, o tempo, a família, a vida, a estabilidade do casal marido e esposa, a liberdade (aqui o verbo hebraico ‘gng’ refere-se provavelmente ao seqüestro de pessoas e não ao furto de objetos materiais), a reputação, a casa e as pessoas que aí vivem, a casa e os bens materiais. Cada um desses valores abre um “programa”, isto é, uma tarefa moral jamais completa. As afirmações seguintes, introduzidas por verbos, ilustram a dinâmica que é gerada pela seqüência de cada um desses valores. Três valores verticais (referindo-se às relações do ser humano com Deus): 1. prestar culto a um único Absoluto 2. respeitar a presença e a missão de Deus no mundo (é o que o “nome” simboliza) 3. valorizar a dimensão sagrada do tempo. Sete valores horizontais (referindo-se às relações entre as pessoas): 4. honrar a família 5. promover o direito à vida 6. manter a união do casal marido e esposa 7. defender o direito de cada um de ver a própria liberdade e dignidade respeitada por todos 8. preservar a reputação dos outros 9. respeitar as pessoas (que pertencem a uma casa, uma família, uma empresa) 10. deixar ao outro as suas propriedades materiais. Analisando os dez valores presentes no Decálogo, nota-se que eles seguem uma ordem de progressão decrescente (do valor prioritário ao menos importante), Deus em primeiro lugar e as coisas materiais por último; e, dentro das relações humanas, encontra-se no início da lista a família, a vida, o matrimônio estável. É assim oferecida, para uma humanidade que ansiosamente deseja aumentar a sua autonomia, uma base legal e moral que poderia comprovar-se fecunda e persistente. Ela porém é difícil de promover no contexto atual, dado que a escala dos valores mais seguidos no nosso mundo tem uma ordem de prioridade contrária ao da proposta bíblica: primeiro o homem, depois Deus: e mesmo, no início da lista, os bens materiais, isto é, num certo sentido, a economia. Quando, abertamente ou não, um sistema político e social se funda sobre valores supremos falsos (ou sobre uma concorrência entre valores supremos), quando o intercâmbio dos bens ou o consumo é mais importante que o equilíbrio entre as pessoas, esse sistema está falido desde o início e destinado cedo ou tarde à ruína. O Decálogo, ao invés, abre largamente a estrada a uma moral libertadora: deixar o primeiro lugar á soberania de Deus sobre o mundo (valores nr. 1 e 2), dar a cada um a possibilidade de ter tempo para Deus e de administrar o próprio tempo de modo construtivo (nr. 3), favorecer o espaço de vida da família (nr. 4), preservar a vida, mesmo enferma e aparentemente não produtiva, das decisões arbitrárias do sistema e das manipulações subtis da opinião pública (nr. 5), neutralizar os germes de divisão que tornam frágil, sobretudo em nosso tempo, a vida matrimonial (nr 6), deter todas as formas de exploração do corpo, do coração e do pensamento (nr 7), proteger a pessoa contra os ataques à reputação (nr 8) e contra todas as formas de engano, de exploração, de abuso e de coação (nr 9 e 10). 4) Uma conseqüência jurídica 31. Numa perspectiva prevalecente de atualização, esses dez valores que estão na base do Decálogo oferecem um fundamento claro para uma carta dos direitos e das liberdades, válida para toda a humanidade: 1. direito a um relacionamento religioso com Deus, 2. direito ao respeito das crenças e símbolos religiosos, 3. direito à liberdade da prática religiosa e, em segundo lugar, ao repouso, ao tempo livre, à qualidade de vida, 4. direito das famílias a políticas justas e favoráveis, direito dos filhos ao sustento por parte de seus progenitores, ao primeiro aprendizado da socialização, direito dos progenitores anciãos ao respeito e ao sustento por parte de seus filhos, 5. direito à vida (a nascer), ao respeito da vida (a crescer e morrer de modo natural), à educação, 6. direito da pessoa à livre escolha do cônjuge, direito do casal ao respeito, ao encorajamento e ao sustento por parte do Estado e da sociedade em geral, direito do filho à estabilidade (emocional, afetiva, financeira) dos progenitores, 7. direito ao respeito das liberdades civis (integridade corporal, escolha da vida e da carreira, liberdade de locomoção e de expressão), 8. direito à segurança e à tranqüilidade doméstica e profissional e, em segundo lugar, direito à livre empresa, 10. direito à propriedade privada (nele incluída a garantia de proteção civil dos bens materiais). Mas, na ótica de uma “moral revelada”, esses direitos humanos inalienáveis são absolutamente subordinados ao direito divino, isto é, à soberania universal de Deus. O Decálogo inicia assim: “Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirou do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2; Dt 5,6). Essa soberania divina, assim como se manifesta já no evento fundador do êxodo, exerce-se não segundo um esquema autoritário e despótico, que se encontra tantas vezes na gestão humana dos direitos e das liberdades, mas sim numa ótica de libertação da pessoa e das comunidades humanas. Ela implica, entre outras coisas, da parte do ser humano, um culto exclusivo, um tempo consagrado à oração pessoal e comunitária, o reconhecimento do poder último que Deus tem de regular a vida das suas criaturas, de governar as pessoas e os povos, de exercer o julgamento; enfim, o discurso bíblico da soberania divina sugere uma visão do mundo segundo a qual não só a Igreja mas o cosmo, o ambiente circundante e a totalidade dos bens da terra são, em última análise, propriedade de Deus (cf. Ex 19,5). Em poucas palavras, baseando-se sobre os valores fundamentais contidos no Decálogo, a teologia moral e também a catequese que dela deriva, pode propor à humanidade de hoje um ideal equilibrado que, de uma parte, não privilegia jamais os direitos em prejuízo das obrigações ou vice-versa e que, de outra parte, evita o escolho de uma ética puramente secular que não tenha em conta a relação do ser humano com Deus. 5) Conclusão: nas pegadas de Jesus 32. Apresentando o Decálogo como fundamento perene de uma moral universal, realizam-se três objetivos importantes: abrir o tesouro da Palavra, mostrar seu valor, encontrar uma linguagem que pode tocar as cordas sensíveis dos homens e das mulheres de hoje. Propondo uma leitura axiológica da lei fundamental do Sinai, segundo os valores nela implicados, não fazemos outra coisa senão caminhar nas pegadas de Jesus. Eis, a propósito, alguns indícios que chamam a atenção. 1. No Sermão da montanha, Jesus retoma certos preceitos do Decálogo mas estende seu sentido muito mais adiante, de um tríplice ponto de vista: aprofundamento, interiorização, superação de si até alcançar a perfeição quase divina (Mt 5,17-48). 2. Discutindo sobre puro e impuro, Jesus mostra que o ser humano se torna verdadeiramente impuro mediante aquilo que vem de dentro, do coração, e que o impele às ações que são contrárias ao Decálogo (Mt 15,19). 3. O episódio do jovem rico (Mt 19,16-22 e paralelos) faz entender bem esse “a mais” exigido por Jesus. De uma moral mínima, essencialmente comunitária e formulada sobretudo de modo negativo (v. 18-19), passa-se a uma moral personalizada, ‘programática’, que consiste principalmente em ‘seguir Jesus’, uma moral totalmente concentrada sobre o desapego, sobre a solidariedade com os pobres e sobre o dinamismo do amor cuja fonte está nos céus (v. 21). 4. Interrogado sobre “o maior mandamento’, o próprio Jesus pôs em relevo dois preceitos escriturísticos que são fundados sobre um valor – o mais importante, o amor – e abrem um programa moral sempre incompleto (Mt 22,34-40 e paralelos). Haurindo assim o melhor suco das maiores tradições legais do Antigo Testamento (deuteronômica e sacerdotal), Jesus sintetiza de modo admirável a pluralidade das leis simbolizadas pelo próprio número das “dez palavras”. No campo simbólico, ‘três’ evoca normalmente a totalidade na ordem do divino, do inobservável, e ‘sete’ na ordem do observável. O valor ‘amor de Deus’ resume sozinho os três primeiros mandamentos do Decálogo, e ‘amor do próximo’ resume os últimos sete. 5. No rasto de Jesus também Paulo, citando preceitos do Decálogo, vê no amor do próximo ‘o pleno cumprimento da Lei’ (cf Rm 13,8-10). Também citando o Decálogo (Rm 2,21-22), Paulo afirma numa vasta discussão que Deus julga segundo a mesma norma quer os judeus, instruídos na Lei, quer os pagãos, que “cumprem o que a Lei prescreve, guiados pelo bom senso natural” (Rm 2,14). 2.2.3.2. Os códigos legislativos 33. Habitualmente consideram-se como tais o Código da Aliança (Ex 21,1—23,33), a Lei de Santidade (Lv 17,1—26,46) e o Código Deuteronômico (Dt 4,44—26,19). Eles apresentam-se em estreita conexão com a estipulação da aliança no Sinai e constituem, junto com o Decálogo, uma concretização do “caminho de vida” aí revelado e oferecido. Exponhamos três temas morais que aparecem como especialmente relevantes nesses códigos. a. Os pobres e a justiça socialAs leis apodícticas do Código da Aliança, do Código Deuteronômico e da Lei de Santidade concordam em estabelecer medidas destinadas a evitar a escravidão dos mais pobres, tomando em consideração ainda a remissão periódica de suas dívidas. Essas disposições têm às vezes uma dimensão utópica, como a lei sobre o ano sabático (Ex 23,10-11), ou a lei sobre o ano jubilar (Lv 25,8-17). Todavia, apontando à sociedade israelita o objetivo de combater e de vencer a pobreza, permanecem realistas quanto à dificuldade dessa luta (c. Dt 15,4 e Dt 15,11). A luta contra a pobreza pressupõe a realização de uma justiça honesta e imparcial (cf. Ex 23,1-8; Dt 16,18-20). Ela se exerce em nome do próprio Deus. Diversas linhas teológicas empenham-se para fundamentá-la: as leis apodícticas do Código da Aliança retomam a intuição profética da proximidade de Deus em relação aos mais pobres. O Deuteronômio, por seu lado, insiste sobre o estatuto particular da terra confiada por Deus aos israelitas: Israel, beneficiário da bênção divina, não é o proprietário absoluto da terra, mas é seu usufrutuário (cf. Dt 6,10-11). Por isso, a realização da justiça social aparece como a resposta de fé de Israel ao dom de Deus (cf. Dt 15,1-11): a lei regula o uso do dom e recorda a soberania de Deus sobre a terra. b. O estrangeiro 34. A Bíblia hebraica utiliza um vocabulário diferenciado para denominar os estrangeiros: a palavra ger designa o estrangeiro residente que vive estavelmente junto a Israel. O termo nokri refere-se ao estrangeiro de passagem, enquanto os termos tôshab e sakir designam, na Lei de Santidade, assalariados estrangeiros. A solicitude para com o ger manifesta-se constantemente nos textos legislativos da Torá: solicitude puramente humanitária em Ex 22,20 e 23,9; solicitude fundada sobre a memória da escravidão no Egito e da libertação concedida por Deus em Dt 16,11-12. É a Lei de Santidade que, em relação ao estrangeiro, formula as regras mais audazes: o ger não é mais “objeto” da lei, mas torna-se seu “sujeito”, que é corresponsável com os habitantes do país pela sua santificação e pela sua pureza. “Habitantes” e “estrangeiros” são assim unidos por uma responsabilidade comum e por um vínculo descrito mediante o vocabulário do amor (cf. Lv 19,33-34). A Lei de Santidade prevê, ainda, processos para integrar os estrangeiros – ou ao menos os gerim – na comunidade dos filhos de Israel. c. Culto e ética 35. A literatura profética é sem dúvida a primeira que tomou em consideração a correlação entre o culto prestado a Deus e o respeito do direito e da justiça. A pregação de Amós (cf. Am 5,21) e a de Isaías (cf. Is 1,10-20) são particularmente representativas dessa intuição teológica. O Código Deuteronômico, de um lado, justapõe leis cultuais e prescrições de ética social: as leis que concernem à unicidade do santuário dedicado a Deus e à proibição da idolatria (cf Dt 12,13) precedem as leis sociais de Dt 14,22—15,18; por outro lado, une intimamente imperativos cultuais e imperativos éticos. Assim, o dízimo trienal, imposto originariamente cultual, recebe nova função pelo fato da centralização do culto em Jerusalém: a saber, prover ao sustento das viúvas, dos órfãos, dos estrangeiros e dos levitas (cf. Dt 14,28-29; 26,12-15). Enfim, as festas de peregrinação requerem a participação dos mais pobres (Dt 16,11-12.14): o culto prestado a Deus no templo de Jerusalém não adquire sua validade se não integrar uma preocupação ética fundada sobre a memória da escravidão no Egito, da libertação de Israel e do dom da terra por parte de Deus. As leis da Torá, portanto, chamam a atenção do leitor para as implicações éticas de cada celebração cultual, como também sobre a dimensão teologal da ética social. Os temas expostos neste parágrafo sobre os ‘ensinamentos morais’ mostram que os códigos legislativos da Torá são particularmente atentos à moral social. A compreensão que Israel tem do seu Deus, conduz a uma atenção particular aos mais pobres, aos estrangeiros, à justiça. Assim, culto e ética estão particularmente associados: oferecer culto a Deus e ter a preocupação para com o próximo são as duas expressões inseparáveis da mesma confissão de fé. 2.2.3.3. O ensinamento moral dos Profetas 36. O justo comportamento moral é um tema fundamental em todos os profetas, mas não o tratam jamais por si mesmo nem de modo sistemático. Eles ocupam-se da ética sempre em relação com o fato de que Deus conduz Israel através da história. Isso funciona de modo retrospectivo: tendo em conta o fato de que Deus libertou Israel da escravidão no Egito e o conduziu à sua própria terra, os israelitas devem viver segundo os mandamentos que Deus deu a Moisés no monte Sinai (cf. a moldura dos dez mandamentos em Dt 5,1-6.28-33). Entretanto, porque não procediam assim e adotavam os costumes das nações, Deus dispunha-se a mobilizar contra eles invasores estrangeiros para devastarem sua terra e levarem o povo ao exílio (Os 2; Jr 2,1—3,5). Funciona também de modo prospectivo: Deus salvará um resto do povo da dispersão entre as nações e o fará retornar à sua terra onde viverão, finalmente, como uma comunidade fiel em torno ao Templo e obedientes aos antigos mandamentos (Is 4; 43). Essa conexão fundamental entre ética e história, seja passada seja futura, é elaborada em Ez 20, que constitui a magna carta de Israel renascido. Sobre a base da presença de Deus na história de Israel os profetas confrontaram o povo com o seu efetivo modo de viver, que estava em plena contradição com a “Lei” de Deus (Is 1,10; 42,24; Jr 2,8; 6,19; Ez 22,26; Os 4,6; Am 2,4; Sf 3,4; Zc 7,12). Essa regra divina para a conduta de Israel continha toda sorte de normas e costumes, provenientes da jurisdição tribal e local, das tradições familiares, do ensinamento sacerdotal e da instrução sapiencial. A pregação moral dos profetas põe o acento sobre o conceito social de “justiça” (mishpath, tsedaqah): Is 1,27; 5.7; 28,17; 58,2; Jr 5,1; 22,3; 33,15; Ez 18,5; Os 5,1; Am 5,7. Os profetas confrontaram a sociedade israelita com esse modelo humano e divino em todos os aspectos: os diversos papéis no processo legal do rei ao juiz e da testemunha ao acusado (Is 59,1-15; Jr 5,26-31; 21,11—22,19; Am 5,7-17), a corrupção das classes dirigentes (Ez 34; Os 4; Ml 1,6—2,9), os direitos das classes sociais e dos indivíduos, especialmente os marginalizados (Is 58; Jr 34), a crescente fenda econômica entre os latifundiários e os lavradores agrícolas empobrecidos (Is 5,8.12; Am 8; Mq 2), a inconseqüência entre serviço cultual e comportamento comum (Is 1,2-20; Jr 7), e até a degradação da moralidade pública (Is 32,1-8; Jr 9,1-9). Enfim, para compreender de modo adequado a ética dos escritos proféticos, deve-se ter em conta o fato de que a moral, seja pública seja privada, deriva ultimamente do próprio Deus, da sua retidão (Is 30,18; 45,8; Jr 9,24; Sf 3,5) e da sua santidade (Ex 15,11; Is 6,3; 63,10-11; Ez 37,28; Os 11,9). 2.2.4. A aliança com Davi 37. Essa aliança de modo especial é puro dom de Deus, enquanto não depende da atitude humana, dura para sempre e encontra seu cumprimento na missão messiânica de Jesus (cf. Lc 1,32-33). Originariamente, essa aliança nasceu quando o povo pediu a Deus um rei, sem compreender que o próprio Deus era seu verdadeiro rei. Deus concedeu a instituição monárquica (1Sm 9; Dt 33,5); o rei, porém, não está fora da aliança estipulada por Deus com o seu povo, mas ao contrário é incluído nela e portanto deve comportar-se segundo as leis estabelecidas por Deus. O reino de Davi era concedido de modo a realizar um relacionamento diverso com o Senhor (1Sm 16,1-13; 2Sm 5,1-3; cf. Dt 17,14-20). No relato da fundação dessa dinastia não ocorre o termo “aliança”. O oráculo de Natã não contém condições explícitas e constitui uma forte promessa. O empenho do Senhor é absoluto (2Sm 7,1-17). No caso de uma falha dos sucessores de Davi, o que de fato começava já com Salomão, Deus os castigará, não tanto para puni-los mas para corrigi-los. O seu relacionamento paterno para com a descendência de Davi não cessará jamais (2Sm 7,14-15); cf Sl 2,6-7). Por conseguinte, o reino desse escolhido de Deus durará para sempre (2Sm 7,13-16) porque, segundo o salmista, Deus jurou de modo peremptório: “Não violarei jamais a minha aliança” (Sl 89,35). 2.2.5. A “nova aliança” segundo Jeremias 38. O texto de Jr 31,31-34 é o único que fala explicitamente de uma “nova aliança”: “Um dia chegará, oráculo do Senhor, quando hei de fazer uma nova aliança... Não será como a aliança que fiz com seus pais... que eles quebraram... Esta é a aliança que farei com a casa de Israel.... Colocarei a minha lei no seu íntimo, vou gravá-la em seu coração. Serei o seu Deus e eles, o meu povo. Ninguém mais precisará ensinar seu irmão... pois todos me conhecerão... Já terei perdoado as suas culpas, de seu pecado nunca mais me lembrarei.” São notáveis os pontos seguintes: 1. No início e no fim encontram-se duas afirmações sobre a intervenção do SENHOR em relação à aliança: essa moldura includente elabora a novidade da aliança no que se refere ao próprio Deus em termos de perdão e de não recordar-se mais do pecado. O próprio Israel não faz absolutamente nada: nenhuma confissão ou expiação da culpa, nenhuma iniciativa de retornar a Deus. Cabe exclusivamente ao SENHOR criar uma atitude nova da parte de Israel. 2. Acrescentam-se duas características da nova aliança. De agora em diante, a Torá é “infundida no seu íntimo”, e “gravada no coração” (cf. Ez 36,26-27). Por conseqüência, “todos conhecerão” Deus, isto é, terão com ele uma relação íntima, segundo o sentido forte do verbo hebraico, o que inclui a prática da justiça (cf. Jr 22,15-16). 3. Duas antíteses sublinham o caráter específico da aliança nova em relação àquela que foi concluída com os pais no deserto. Essa, escrita sobre a pedra, foi violada por eles e pelas gerações sucessivas; a outra é absolutamente nova enquanto estará escrita nos corações. Além disso, quem ensinará será o próprio SENHOR, e não mais mediadores humanos. 4. No centro do trecho emerge a fórmula da aliança, que afirma a pertença recíproca do SENHOR e do seu povo. Essa fórmula não é mudada, é ainda válida e constitui o coração da passagem. 5. Tudo somado, a nova aliança não é diversa da antiga no que se refere aos parceiros, à obrigação de observar a Torá e ao relacionamento com o SENHOR. A exegese acima conduz à conclusão de que há só o compromisso do SENHOR em relação a Israel, enquanto esse povo atravessa os séculos, embora seja verdade que a sua forma efetiva, a aliança, sofre modificações nas diversas épocas da história até à sua reforma fundamental durante o exílio. A mesma concepção da aliança, que é caracterizada pela incondicional fidelidade de Deus, pode ser encontrada também noutros textos (Lv 26,44-45; Ez 16,59-60) ou ainda no relato do bezerro de ouro (Ex 32-34) como num paralelo narrativo (em particular, Ex 34,1-10). 6. O conceito da nova aliança não implica uma oposição entre o Novo Testamento e o Antigo nem também entre cristãos e judeus (cf. “O povo judeu e as suas Santas Escrituras na Bíblia cristã”, nn. 39-42). Implica, ao contrário, uma renovação fundamental na história da própria aliança, enquanto o SENHOR dá ao seu povo a habilidade conatural de viver segundo a Torá na base do perdão da sua iniqüidade e do dom do Espírito Santo. Isso para os cristãos realizou-se na morte salvífica de Jesus pela remissão dos pecados (Mt 26,28). 2.2.6. O ensinamento moral dos Sábios 39. Escopo dos livros sapienciais é ensinar o justo comportamento às pessoas. Por isso, constituem uma manifestação importante da ética bíblica. Alguns são mais determinados pela experiência humana (por exemplo, o livro dos Provérbios) e pela reflexão sobre a condição humana, constituindo um nexo precioso com a sabedoria de outros povos, enquanto outros se encontram num relacionamento mais estreito com a Aliança e com a Torá. Ao primeiro grupo pertence o livro de Coélet; ao segundo, o livro do Sirácida. Destes dois livros nos ocupamos a título de exemplo. a. O livro de Coélet Coélet faz parte do movimento da sabedoria, mas é caracterizado pela sua abordagem crítica. Inicia com a constatação: “Vaidade das vaidades, diz Coélet, vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (1,2), e a repete na parte conclusiva (12,8). O termo “vaidade” (hebel) significa, literalmente, respiro, vapor, sopro, e é referido a tudo o que é efêmero, fugaz, instável, incompreensível, enigmático. Coélet caracteriza com esse termo todos os fenômenos da vida humana. As pessoas vivem num mundo do qual não têm nenhum controle, um mundo cheio de inconsistências, antes, de contradições. Nada do que se obtém neste mundo tem valor duradouro: sabedoria, riqueza, prazer, fadiga, juventude, a própria vida. Pode-se ou não receber o que se merece. Tudo é posto ante o espectro da morte, o único fator na vida que é inevitável e do qual ninguém escapa. Não obstante as inconsistências e as vicissitudes da vida, as pessoas devem aceitar o seu lugar no relacionamento com Deus. Esse é o significado da advertência de Coélet: “Tu, porém, teme a Deus” (5,6). Contra as várias tentativas e esforços humanos para dominar e compreender a vida, Coélet apresenta como única alternativa realista aceitar o fato de que um controle não é possível, e que se deve deixar que as coisas aconteçam. Só assim se verifica a possibilidade de encontrar alegria e satisfação em tudo o que se faz. Sete vezes Coélet explicitamente exorta as pessoas a se alegrarem, sempre que se lhes apresente a oportunidade (2,24-26; 3,12-13.22; 5,18-20; 8,15; 9,7-10; 11,7—12,1), porque essa é a sorte dada por Deus como remédio para as misérias da vida. Em nenhuma passagem, porém, se recomenda um estilo de vida hedonístico. Mesmo se a ética de Coélet não requer uma mudança radical das estruturas, ela comporta interessantes elementos de crítica política e social. O sábio fustiga certos escândalos e abusos inerentes ao sistema da monarquia: o caso do rei que envelhece e se torna teimoso e autocrata (4,13), a usurpação do poder por um criminoso ou arrivista (4,14-16), a corrupção dos funcionários à custa dos pobres e dos camponeses (3,16; 4,1; 5,7-8), o inútil multiplicar-se de administradores públicos, se lhes falta a sabedoria (7,19), a atribuição de promoções e responsabilidades a pessoas incapazes (10,5-7), a festança contínua na corte do rei menino (10,16). Do ponto de vista social, ele denuncia os seguintes comportamentos: inveja e competição, ociosidade e preguiça (4,5), sobrecarga e ativismo (4,6), individualismo e sede de lucro (4,7-12). Em suma, nesse escrito sapiencial, em certos aspectos quase moderno, encontra-se uma mina de reflexões utilíssimas para inspirar uma vida equilibrada, no plano pessoal como no coletivo. b. O livro do Sirácida 40. O Sirácida vê a sabedoria não só associada à experiência humana e derivada de Deus, mas também firmemente ligada à história da salvação e à Torá de Moisés (24,23). No Sirácida ambas as realidades, revelação e experiência, são conjuntas e integradas, sem eliminação de uma nem de outra. Conseqüentemente, o Sirácida pode apresentar os heróis de Israel (44-50) como exemplos de sabedoria e insistir na observância da Torá, ao mesmo tempo valorizando a beleza e harmonia da criação (42,15—43,33), tomando ensinamentos da natureza e aceitando as observações e máximas dos sábios que o precederam. O livro, em grande parte, é uma coleção de diversas instruções, exortações e máximas, que abrangem toda a gama de temas referentes à vida virtuosa e à conduta ética. Aí estão os deveres para com Deus, os deveres domésticos, as obrigações e responsabilidades sociais, virtudes a praticar e vícios a evitar para a formação do caráter moral. O livro constitui uma espécie de manual para o comportamento moral. Exalta a singular herança de Israel, em particular insiste na exigência de que o povo de Deus participe da sabedoria de Deus de modo singular, pois dispõe de ainda outra fonte de sabedoria na própria Torá. O início e a coroa, a perfeição e a raiz da sabedoria é “o temor do Senhor” (1,14.16.18. 20). Para o Sirácida, sabedoria e temor do Senhor são praticamente sinônimos e manifestam-se na obediência à lei de Moisés (24,22). A sabedoria é também ativa no desenvolvimento das relações no interior da família: deveres dos filhos para com os pais (3,1-16; 7,27-28); deveres dos pais para com os filhos (7,23-25; 16,1-14); relações com as mulheres: a esposa (7,19; 23,22-26; 25,12—26,18), as filhas (7,24-26; 22,4-5), a mulher em geral (9,1-9). A sabedoria refere-se também a diversos aspectos da vida social: distinção entre verdadeiros e falsos amigos (6,5-17; 12,8-18); cautela com estranhos (11,29-34); atitudes em relação à riqueza (10,30-31; 13,18-26); moderação e reflexão nos negócios (22,7-11; 26,29—27,3) e tantos outros assuntos. Para a sabedoria não há uma área da vida que não seja digna de atenção. A vida de cada dia compreende inúmeras situações que exigem determinadas atitudes, decisões e ações não reguladas pelas grandes leis. Desse campo se ocupa a sabedoria tradicional. Na convicção de que toda a vida está sob o controle de Deus, Israel encontra o seu Criador também na vida quotidiana. O Sirácida combina experiência pessoal e sabedoria tradicional com a revelação divina na Torá, a praxe litúrgica e a devoção pessoal. Os sábios ocupam-se do mundo que Deus criou e em cuja beleza, ordem e harmonia, revela-se algo do seu Criador. Mediante a sabedoria, Israel encontra seu Senhor numa relação vital que se abre também para os outros povos. A abertura da sabedoria israelita às nações e o caráter claramente internacional do movimento dos sábios pode propiciar uma base bíblica para o diálogo com outras religiões e para a busca de uma ética global. O Deus Salvador de judeus e cristãos é também o Criador que se revela no mundo por ele criado. 3. A nova aliança em Jesus Cristo como último dom de Deus e suas implicações morais 41. Como vimos nas exposições sobre o Antigo Testamento, a categoria de ‘aliança’ é dominante para conceber e descrever o relacionamento específico entre Deus e o povo de Israel. No Novo Testamento, esse termo não é muito freqüente: encontra-se trinta e três vezes, seis das quais com a especificação de ‘nova aliança’. Determinante e fundamental para o relacionamento entre Deus e o povo de Israel e todos os seres humanos é no Novo Testamento a pessoa de Jesus, a sua obra e seu destino. Vejamos como nos principais escritos do Novo testamento se manifesta esse dom que Deus fez no seu Filho, Jesus Cristo, e quais são as orientações para a vida moral que daí derivam. Concluiremos com os textos sobre a Eucaristia, nos quais Jesus estabelece uma íntima relação entre sua pessoa e seu caminho e a nova aliança. 3.1. A vinda do Reino de Deus e suas implicações morais 3.1.1. O Reino de Deus: tema principal da pregação de Jesus nos sinóticos 42. Jesus fez da expressão ‘reino de Deus’ uma metáfora central do seu ministério terreno e deu-lhe um significado e uma força nova, expressa mediante as qualidades do seu ensinamento e da sua missão. Compreendido como equivalente da presença soberana do próprio Deus que vem para vencer o mal e transformar o mundo, o reino de Deus é pura graça – descoberta como tesouro escondido num campo ou como pérola de grande valor que incita a ser adquirida (cf. Mt 13,44-46); portanto não se trata de um direito natural e nem sequer pode ser merecido. a. A expressão “o reino de Deus” Na raiz da expressão está a convicção fundamental da fé bíblica de que Deus é o senhor e rei soberano, idéia que é proclamada nos Salmos e em outros livros bíblicos (cf. Sl 93,1-2; 96,10; 97,1; 99,1; 103,19; 145,13; Is 52,7). Embora não fosse um tema comum ou prevalente, o ardente desejo do reino de Deus que vem, estava presente no Israel pós-exílico e equivalia ao desejo da vinda de Deus, que afasta as ameaças e injustiças sofridas pelo povo. A noção do reino de Deus tem um caráter essencialmente comunitário (derivado de um conceito político que dizia respeito a toda a comunidade de Israel), escatológico (como uma experiência definitiva da presença de Deus, que supera qualquer outra experiência de soberania) e soteriológico (pela convicção de que Deus vencerá o mal e transformará a vida de Israel). Enquanto o termo se encontra só de modo marginal e esporádico no Antigo Testamento e na literatura judaica, ele torna-se um motivo central no ensinamento e na missão de Jesus. b. A dimensão presente e futura do reino de Deus 43. Os intérpretes do Novo Testamento há muito tempo notaram que o ensinamento de Jesus sobre o reino de Deus tem um caráter tanto futuro como presente. Alguns ditos e parábolas de Jesus descrevem o reino de Deus como um evento futuro, ainda não realizado. Isso exprime-se, por exemplo, no pedido da oração do Senhor: “venha o teu reino” e encontra-se também no texto-chave de Mc 1,14-15 (Mt 4,17), que descreve o reino de Deus como “próximo” ou “aproximado”, mas ainda não presente. As próprias bem-aventuranças, com a sua promessa de futura bênção e justificação, apresentam o reino de Deus como um evento ainda futuro. Ao mesmo tempo, há ditos de Jesus que falam do reino de Deus como de algo de certo modo já presente. Um dito chave, tanto em Mateus como em Lucas, liga a experiência do reino de Deus com as curas e os exorcismos de Jesus: “Se eu, no entanto, expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é porque já chegou até vós o reino de Deus” (Mt 12,28; Lc 11,20). A famosa palavra de Lc 17,20-21 “O reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: ‘Está aqui’ ou ‘Está ali’, pois o reino de Deus está no meio de vós”, reafirma também o caráter presente e inesperado do reino de Deus. Manifesta-se aqui uma dinâmica importante com implicações para a vida moral cristã. A futura realidade do reino de Deus invade (e determina) a situação presente. O verdadeiro e definitivo destino da humanidade com Deus, quando o mal estará vencido, a justiça restabelecida e o anelo humano de vida e de paz plenamente realizado, continua uma esperança para o futuro. Mas os contornos desse futuro – um futuro que revela o pleno intento da vontade de Deus para a humanidade – ajudam a definir o que deveria ser a vida humana já no presente. Portanto, valores e virtudes, que nos tornam conformes à vontade de Deus e que serão plenamente afirmados e revelados no futuro reino de Deus, devem ser praticados agora na medida em que for possível nas circunstâncias pecaminosas e imperfeitas da vida no tempo atual, como ensinam as parábolas do joio e do trigo e da rede (Mt 13,24-30.36-43.47-50). Isso representa a dimensão também essencialmente escatológica da vida e da ética cristã. Jesus não só proclama a proximidade do reino de Deus (Mt 4,17) mas ensina também a pedir “venha o teu reino” e “seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra” (Mt 6,10). Tal anseio de que Deus venha e que a realidade humana seja formada pela vontade de Deus manifesta também a base estritamente teológica da ética cristã, dimensão que ressoa em toda a tradição bíblica: “Sede santos, porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). c.. O reino de Deus, a nova aliança e a pessoa de Jesus 44. O reino de Deus não vem nas manifestações habituais de realeza, mas só pode ser descoberto mediante a atenção a Jesus e à sua missão e mediante as virtudes características das quais ele dá exemplo no seu ministério. São as ações de Jesus, que nos ditos relembrados acima (Mt 12,28; Lc 11,20), estão ligadas com a atual experiência do reino de Deus. Seus exorcismos e suas curas operam uma genuína derrota do mal e do poder do Maligno sobre o corpo e sobre a pessoa humana e geram uma experiência de libertação relacionada com o reino de Deus. O ministério de Jesus exprime também a sua compaixão pelas multidões de doentes que vão ter com ele (cf Mt 9,35-36) e a acolhida desses míseros no reino de Deus (Mt 4,23-25; 15,29-31); ambas as perspectivas são apresentadas como típicas no ensinamento de Jesus sobre o reino de Deus (cf. por exemplo as parábolas sobre a misericórdia em Lc 15 e sobre o banquete em Lc 14). Embora o termo “nova aliança” seja raro nos sinóticos, ela encontra-se relacionada com o reino de Deus. Na instituição da eucaristia, Jesus diz: “Este é o meu sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos, para a remissão dos pecados”, e logo acrescenta: “Eu vos digo: de hoje em diante não beberei deste fruto da videira, até o dia em que, convosco, beberei o vinho novo no reino de meu Pai” (Mt 26,28-29). No banquete do reino, na perfeita comunhão com Jesus e com o Pai, a nova aliança alcança a sua plenitude e é inteiramente realizada a promessa: “Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33b; cf. Ap 21,3). Por meio de Jesus, Deus realiza também dois outros traços característicos da ‘nova aliança’, sem que o termo aí se encontre explicitamente. Trata-se do perdão dos pecados (iniqüidades) e do conhecimento de Deus (cf. Jr 31,34). Num episódio referido por todos os três sinóticos, Jesus apresenta a missão aos pecadores como parte essencial da tarefa que Deus lhe confiou (Mt 9,2-13 e paralelos): Jesus perdoa os pecados a um paralítico que com grande fé e esforço é trazido para junto dele, e provoca a indignação profunda de alguns escribas. Só num segundo momento cura o paralítico com a sua palavra e interpreta essa cura como confirmação da sua autoridade de poder perdoar os pecados. Reafirma a seguir o fato de que essa autoridade não está restrita a um único caso mas fundamenta a sua missão universal: “Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes. Ide, pois, aprender o que significa: Misericórdia eu quero, não sacrifícios. De fato, não são justos que vim chamar, mas pecadores” (Mt 9,12-13). É pela vontade de Deus que Jesus veio, e é Deus que quer misericórdia. Mediante Jesus, é Deus que manifesta a sua misericórdia e concede o perdão dos pecados, realizando uma característica fundamental da nova aliança (cf. Jr 31,34b). A outra promessa “Todos me conhecerão” (Jr 31,34a) é realizada em Jesus de modo eminente. Do seu relacionamento com Deus ele diz: “Tudo me foi entregue por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27; Lc 10,22; cf. Jr 22,16). Jesus, como Filho de Deus, é habilitado pelo Pai a um exclusivo conhecimento de Deus como Pai; ele também recebeu a exclusiva incumbência de revelá-lo, isto é, de fazer conhecer Deus como Pai. Assim, a promessa de Jr 31,34a é precisada e concretizada: através de Jesus, Filho de Deus e perfeito conhecedor do Pai, obtém-se acesso ao íntimo e perfeito conhecimento de Deus. Esse conhecimento é também necessário para uma adequada compreensão do ‘reino de Deus’, que constitui o conteúdo central do anúncio de Jesus e que Jesus às vezes chama também de “o reino do seu (ou ‘meu’) Pai” (Mt 13,43; 26,29). O perdão dos pecados, ou seja, a reconciliação com Deus, e depois o conhecimento de Deus e a comunhão com Deus, aparecem como os empenhos principais da atividade de Jesus segundo a apresentação sinótica. Estão inseridos no anúncio do reino de Deus mas correspondem também aos traços característicos da nova aliança de Jr 31,31-34. Jesus como Filho conhece o Pai de um modo completo e exclusivo e vive na mais íntima união com Ele. Este seu particular relacionamento com Deus está na base das suas principais tarefas. A sua atividade manifesta igualmente de que modo concreto Deus comunica o seu definitivo dom e cumpre a sua promessa da nova aliança: através do mediador Jesus, que de tais qualidades dispõe. A posição central de Jesus para o relacionamento do ser humano com Deus tem como conseqüência a sua posição central para a vida moral. Ele representa na sua pessoa não só o reino de Deus e a nova aliança, mas também a Lei, porque se deixa conduzir no modo mais perfeito pela vontade de seu Pai (Mt 26,39.42), até à manifestação máxima do seu amor, ao derramamento do seu sangue. Deve-se portanto agir no seu Espírito e seguir o seu exemplo, para andar sobre o caminho de Deus. 3.1.2. O anúncio do reino de Deus e suas implicações morais 45. Jesus anuncia o evangelho de Deus, dizendo: “Completou-se o tempo, e o reino de Deus está próximo”, e logo acrescenta a exortação para o nosso agir: “Convertei-vos e crede na boa-nova!” (Mc 1,15). Anuncia a proximidade do reino de Deus, a fim de que ele seja escutado e acolhido na conversão e na fé. É preciso uma mudança de mentalidade, um novo pensar e ver, determinado pelo reino de Deus, que numa fé consciente é reconhecido na sua plena realidade. Tarefa principal da missão de Jesus é revelar Deus, o Pai (Mt 11,27), e o seu reino, o seu modo de agir. Essa revelação verifica-se ao longo de toda a missão de Jesus, mediante o seu anúncio, as suas obras de poder, a sua paixão e a sua ressurreição. Fazendo isso, Jesus ao mesmo tempo revela as normas do justo agir humano. Afirma essa conexão em modo explícito e exemplar ao dizer: “Sede, portanto, perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48); conclui e fundamenta assim o seu ensinamento sobre o amor dos inimigos (Mt 5,43-48) e toda a secção das antíteses (Mt 5,21-48). Destaquemos alguns aspectos. a. Jesus como guia 46. Jesus manifesta a sua autoridade de mostrar o justo caminho para o agir humano, especificamente no chamado dos discípulos. Todos os quatro evangelhos relatam o chamado no início do ministério de Jesus (Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11; Jo 1,35-51). Com o convite-ordem “Segui-me!” (Mc 1,17) ele apresenta-se como guia que conhece tanto a meta como o caminho para aí chegar e oferece aos chamados a comunhão de vida consigo e o exemplo do caminho por ele percorrido. Concretiza assim o imperativo precedente “Convertei-vos e crede!” (1,15), e seus discípulos vivem a conversão e a fé aceitando seu convite e entregando-se à sua guia. O caminho traçado por Jesus não se apresenta como uma norma autoritária imposta de fora: o próprio Jesus percorre esse caminho e não pede outra coisa ao discípulo senão seguir o seu exemplo. Seu relacionamento com os discípulos, além disso, não consiste num adestramento asséptico e desinteressado: chama-os de “filhinhos” (Jo 13,33; 21,6), “amigos” (Jo 15,14-15), “irmãos” (Mt 12,50; 28,10; Jo 20,17); e não só a eles; pois convida todos os homens e todas as mulheres a virem a ele e a entrarem numa estreita e cordial comunhão de vida com ele (Mt 11,28-30). Nessa comunhão de vida eles aprendem o justo comportamento com Jesus, participam do seu Espírito, caminham juntamente com ele. O relacionamento Jesus-discípulos não é uma questão com prazo, mas antes é o modelo para todas as gerações. Quando Jesus manda os onze discípulos para a missão universal, refere-se à sua autoridade plenipotenciária e diz-lhes: “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,18-20). Todos os membros de todos os povos, até o fim dos tempos, estão destinados a tornarem-se discípulos de Jesus. O relacionamento e a experiência com a pessoa de Jesus, que os primeiros discípulos vivenciaram, e o ensinamento que Jesus lhes transmitiu, são válidos e exemplares para todos os tempos. b. As bem-aventuranças (atitudes particularmente sublinhadas) 47. Uma série de virtudes ou de atitudes fundamentais encontram-se nas bem-aventuranças. Mateus refere oito e Lucas quatro, no início do primeiro e mais longo discurso de Jesus (cf. Mt 5,3-10; Lc 6,20-22), apresentando-as como uma espécie de síntese do seu ensinamento. As bem-aventuranças são uma forma literária utilizada no Antigo Testamento e também em outras partes do Novo Testamento. Nelas, alegria e felicidade são atribuídas a certas pessoas e atitudes, normalmente em conexão com uma promessa de futura bênção. Em ambos os evangelhos a primeira bem-aventurança refere-se aos pobres e a última aos perseguidos: Jesus declara-os proprietários do reino de Deus, criando assim uma estreita conexão entre o tema central do seu anúncio e as atitudes por ele acentuadas. Em Mateus (5,3-10) as bem-aventuranças mencionam os ‘pobres no espírito’, isto é, aqueles que vivem numa situação precária e, sobretudo, sabem e reconhecem que nada têm por si mesmos e dependem em tudo de Deus; depois, os ‘aflitos’, que não se fecham em si mesmos mas participam, na compaixão, das necessidades e sofrimentos dos outros. Seguem os ‘mansos’, que não usam de violência mas respeitam o próximo assim como ele é. Os que têm ‘fome e sede da justiça’ desejam intensamente agir segundo a vontade de Deus na expectativa do reino. Os ‘misericordiosos’ ajudam ativamente os necessitados (cf. Mt 25,31-46) e estão prontos ao perdão (Mt 18,33). Os ‘puros de coração’ procuram a vontade de Deus com um empenho íntegro e indiviso. Os ‘promotores da paz’ fazem de tudo para manter e para restabelecer entre as pessoas a convivência inspirada no amor. Os ‘perseguidos por causa da justiça’ permanecem fiéis à vontade de Deus não obstante as graves dificuldades que essa atitude lhes traz. Tais virtudes e atitudes correspondem ao ensinamento de Jesus em todos os evangelhos e refletem igualmente o comportamento do próprio Jesus. Por isso, o fiel seguimento de Jesus conduz a uma vida animada por essas virtudes. Já recordamos a estreita conexão entre a atitude humana e o agir de Deus (reino de Deus) na primeira bem-aventurança e na última. Mas essa conexão encontra-se em todas as bem-aventuranças. Cada uma delas, talvez um pouco veladamente, na sua parte final, fala do ‘futuro agir’ de Deus: Deus os consolará, Deus os fará herdar a terra, Deus os saciará, Deus será misericordioso para com eles, Deus os admitirá à sua visão, Deus os reconhecerá como seus filhos. Nas bem-aventuranças Jesus não estabelece um código de normas e obrigações abstratas que se referem ao justo agir humano; mostrando o agir justo dos seres humanos, ele revela ao mesmo tempo o futuro agir de Deus. Por isso, as bem-aventuranças são uma das mais densas e explícitas revelações sobre Deus que se encontram nos evangelhos. Elas apresentam o futuro agir de Deus não só como recompensa do justo agir humano, mas também como base e motivo que torna possível e razoável o agir humano requerido. Ser ‘pobres no espírito’ ou fiéis na perseguição não são obrigações isoladas: quem aceita com fé a revelação de Jesus sobre o agir de Deus, condensada no anúncio do reino de Deus, torna-se capaz de não se fechar na própria autonomia e sim reconhecer sua completa dependência de Deus, capaz também de não querer salvar sua própria vida a qualquer custo mas enfrentar a perseguição. Não podemos mencionar todas as atitudes justas que se manifestam no comportamento e no ensinamento de Jesus. Recordemos só a forte insistência de Jesus no perdão em relação àqueles que se tornaram nossos devedores (Mt 6,11.14-15; 18,21-35); a solicitude pelas crianças (Mc 9,35-37; 10,13-16) e a ternura pelos pequenos (Mt 18,10-14). O seguimento de Jesus manifesta-se, de modo especial, na atitude de não querer ser servidos mas estar prontos a servir. Jesus funda essa exigência explicitamente no exemplo dado por ele mesmo: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). O serviço de Jesus é sem limite e inclui o sacrifício da vida. A morte de Jesus na cruz por toda a humanidade é a expressão mais alta do seu amor. Por isso o convite ao discipulado não significa somente seguir Jesus no seu agir, no seu estilo de vida, no seu ministério, mas inclui o convite a participar nos seus sofrimentos e na sua cruz, a aceitar perseguições e até uma morte violenta. É o que se manifesta também na exigência que Jesus dirige a todos, aos discípulos e à multidão: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34) 3.2. O dom do Filho e suas implicações morais, segundo João 3.2.1. O dom do Filho, expressão do amor salvador de Deus 48. O Filho veio e vem porque é enviado pelo Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O Filho veio e continua a vir, como nos explica continuamente o Espírito que anuncia “o que há de vir” (16,13). Desde a sua primeira vinda, ele é movido pelo desejo de pôr-se ao lado do ser humano para fazê-lo superar a solidão. O ser humano tem necessidade dele, mesmo se não o sabe. A aceitação da sua vinda traz salvação. a. A vinda de Jesus A intervenção de Jesus introduz uma ordem nova no modo de viver do ser humano. O manifesto dessa transformação é visível no diálogo com Nicodemos (Jo 3,1-21), e o vocabulário preferencial é constituído, no quarto evangelho, pelas expressões sobre a vida nova ou o novo nascimento e, na primeira carta, pelas expressões sobre a situação de filhos de Deus, nascidos de Deus; em ambos os escritos, pelo vocabulário do “permanecer” (a partir da alegoria da videira e dos ramos), mas também pela contraposição entre a ordem da carne e a do espírito. A novidade que Jesus traz é fruto de um dom gratuito, que pede para ser aceito, e quem o recusa é culpado e põe-se fora da ordem da salvação. Se depois nos perguntamos por que motivo possa acontecer tal recusa, a referência é ainda àquele que trouxe tal novidade: em última instância, é a recusa da soberania amorosa de Deus, manifestada na intervenção do seu enviado. b. Os sinais e discursos reveladores de Jesus 49. Um particular modo demonstrativo da intervenção de Jesus, produtora de novidade, é o ‘sinal’ (em grego semeion), dotado da particular força manifestada no milagre. A própria estrutura do milagre oferece indicações particularmente eficazes: de um ponto de partida de necessidade, medo ou perigo, ou mais amiúde de sofrimento, ocorre a passagem a uma situação de superação dessas formas de carência. Jesus faz passar da festa de núpcias na qual falta o vinho (a alegria), a núpcias que dispõem de vinho em abundãncia (2,1-11); da doença perigosa (4,46-54) ou crônica (5,1-9), à saúde completa; da fome da grande multidão, à sua saciedade (6,1-15); da cegueira à luz (9,1-7) e do túmulo de morte, à vida recuperada (11,1-44). O significado dessas passagens é detalhadamente exposto em discursos de Jesus no que se refere à multiplicação dos pães (6,22-70), à cura do cego (9,8-41) e à ressurreição de Lázaro (11,1-44). Isso vem sintetizado por Jesus nos ditos singulares sobre sua própria pessoa: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede” (6,35). “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não caminha nas trevas, mas terá a luz da vida” (8,12). “Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo; poderá entrar e sair, e encontrará pastagem” (10,9). “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (10,11; cf 10,14-15). “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais” (11,25-26). “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim” (14,6). “Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim, nada podeis fazer” (15,5). Nesses ditos, Jesus exprime o que Deus Pai entregou à humanidade na pessoa do Filho. Jesus é pão, luz, porta, pastor, ressurreição e vida, caminho, verdade e vida, e videira. Ao mesmo tempo, diz o que os homens devem fazer para poderem usufruir dos bens da sua presença: vir a ele, crer nele, segui-lo, permanecer nele. Revela ainda quais são os bens comunicados por ele: a vida, a saída das trevas e a orientação completa, a superação da morte mediante a ressurreição, o conhecimento do Pai e a plena comunhão com ele. Embora os termos sejam um pouco diversos, encontramos os dons da nova aliança, isto é, o conhecimento de Deus (luz, verdade) e a Lei (porta, pastor, caminho) e, como fruto e conseqüência, a Vida. Tudo isso está presente na pessoa de Jesus e é comunicado por ele de um modo interno e orgânico, simbolizado pelo relacionamento entre a videira e os ramos. 3.2.2. O comportamento do Filho e suas implicações morais 50. Diante do comparecimento do Filho de Deus na história, o ser humano é convidado a exprimir sua total aceitação e abrir-se à salvação. A aceitação manifesta-se como adesão à vida, em cada uma de suas atitudes. a. Seguir o exemplo do Filho Modelo dessa atitude é o comportamento do próprio Filho, que faz coincidir a sua vontade com a vontade do Pai, na aceitação e no cumprimento de sua missão: sua comida é fazer a vontade do Pai (4,34), ele faz sempre as coisas que lhe são agradáveis, e observa a sua palavra (8,29.55), diz as coisas que o Pai lhe mandou dizer (12,49). Da parte de Jesus, cada ensinamento seu sugere um comportamento. Até essas conseqüências chega o empenho dos “adoradores em espírito e verdade” (4,24). Contemporaneamente ao que ele diz, tudo o que faz é normativo, pela força exemplar de tudo o que ele realiza. Em particular, a aplicação acontece pela sua atitude de serviço (recorde-se o lava-pés: “Dei-vos o exemplo” 13,15) e pela vida que ele entrega (15,13: “dar a vida por seus amigos”; o enunciado é contido numa sentença genérica mas em apoio à injunção precedente, “que vos ameis... como eu vos amei”). Por causa da autoridade de Jesus, o seu comportamento torna-se fundamento de obrigação moral, critério de escolha: é o “como” da imitação. Igualmente fundamental é o seu mandamento, que oferece a plataforma para a verificação do amor autêntico do discípulo (“quem acolhe os meus mandamentos e os observa, esse me ama” 14,21). O cume da imitação verifica-se na missão que o discípulo realiza “como” se realizou a de Jesus (20,21), como prova do amor que o discípulo nutre para com seu Senhor (21,19). A parênese joanina apresenta Jesus como referência de comportamento, em continuação com o ensinamento do próprio Jesus. “Quem diz que permanece em Deus deve, pessoalmente, caminhar – “comportar-se” – como Jesus caminhou” (1Jo 2,6). b. Fé em Jesus e amor aos irmãos 51. A vinda de Jesus trouxe novidade: a novidade antropológica e soteriológica torna possível e requer novidade de comportamento. A fé é a grande ‘novidade’ de atitude que se requer do homem: fé é deixar a si mesmo e ‘ir’ a Jesus, abandonar a ilusão da própria auto-suficiência e reconhecer-se cegos, necessitados de Jesus luz, mudar a atitude habitual de “julgar segundo as aparências”, zerar diante do Enviado divino a própria autonomia, para obter a própria liberdade (de filho) e vencer o pecado. Com a fé, o amor aos irmãos. É, também isto, concreta inserção no mistério de Jesus, originado no amor do Pai. O Pai ama Jesus, Jesus ama os discípulos, os discípulos devem amar-se uns aos outros. Realidade ‘nova’, tem a força de tornar-se sinal (Jo 13,36) e de fazer superar a morte (1Jo 3,14). O amor é ‘fruto’ da fé (Jo 15,8). Quem crê em Jesus e ama os irmãos, “não peca”, isto é, não vive em pecado (1Jo 3,6), embora todos tenhamos faltas e nesse sentido somos todos pecadores, porém “o Sangue de Jesus, o Filho de Deus, purifica-nos de todo pecado” (1Jo 1,7). Quem crê em Jesus e ama os irmãos “conhece a Deus” verdadeiramente, porque só conhece a Deus “quem observa os seus mandamentos” (1Jo 2,3), quem faz aquilo que Jesus fez: “Ele deu a vida por nós; por isso também nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16). Pelo contrário, “quem não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4,8). Quem crê em Jesus e ama os irmãos compreendeu verdadeiramente que “Deus é amor” (1Jo 4,16), verdade suma que será reconhecida por todos somente na medida em que os que crêem se amarem uns aos outros, especialmente aos necessitados, “não somente em palavras mas em obras”. Por outro lado, “quem ao irmão em necessidade fecha o coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1Jo 3,17-18). Essa dimensão antropológica da fé em Jesus coincide com a crítica profética à falsa religião, crítica que encontramos sintetizada em Os 6,6: “Eu quero amor (hesed, solidariedade e lealdade) e não sacrifícios; conhecimento de Deus (conhecimento que leva à justiça, cf Jr 22,15-16), mais que holocaustos”. Assim, a ética joanina é a ética fundamental do Amor, que tem por modelo o dom da vida de Jesus, e que começa na casa da Fé – a fé cristológica – como testemunho para todos. Amor que é mandamento, instrução, Torá, como toda a ética bíblica. Amor que é o projeto de Deus para seus filhos, projeto que deve ser assumido decididamente, em luta contra o poder maligno que nos impele para a direção contrária. Ora, são esse Amor e essa Fé que “vencem o mundo” (1Jo 5,4). c. A responsabilidade pelo mundo 52. A constante atenção à resposta que o indivíduo é chamado a dar à oferta de Deus em Cristo terá podido fazer pensar numa dimensão exclusivamente individual do empenho moral requerido pelo ensinamento joanino. A presença da comunidade, porém, corrige tal impressão: o mal tem dimensão coletiva (basta pensar na categoria “mundo”) e igualmente o bem tem uma proveniência e uma destinação também coletivas. É claramente identificável a comunidade dos que crêem, mas o é também a do “mundo” ao qual é destinada uma obra de salvação que envolve, junto com a intervenção de Jesus, também a participação dos seus. Se o amor mútuo ordenado por Jesus (Jo 13,34; 15,12-17; 1Jo 2,10-11; 3,11.23. 4,7-12) é mais imediatamente orientado para os irmãos na fé, a consciência da missão universal é decisiva para uma atitude de responsabilidade favorável, e não de condenação, em relação ao mundo. Isso traz à luz também a importância que tem para João a práxis do amor em relação á salvação do mundo: a Igreja e o cristão são continuamente enviados ao mundo “para que o mundo creia”, e essa fé nasce precisamente de uma práxis do amor (“Nisto conhecerão todos...” 13,35). Não só cada cristão mas também a comunidade tem uma práxis nova, misteriosa (como o vento, que “não sabes de onde vem nem para onde vai” 3,8), que atrai sobre si a atenção do mundo de modo a levá-lo à fé e conseqüentemente a essa mesma práxis do amor. 3.3. O dom do Filho e suas implicações morais, segundo as cartas paulinas e outras 3.3.1. O dom de Deus segundo Paulo 53. Para o apóstolo Paulo, a vida moral não se compreende senão como uma resposta generosa ao amor e ao dom de Deus para nós. De fato, querendo fazer de nós seus filhos, Deus enviou seu Filho e enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho que clama: Abba, Pai (Gl 4,6; cf Ef 1,3-14), a fim de que não andemos mais como prisioneiros do pecado, mas ‘segundo o Espírito’ (Rm 8,5): “Se vivemos pelo Espírito, procedamos também de acordo com o Espírito” (Gl 5,25). Os que crêem são por isso convidados a render graças constantemente a Deus (1Ts 5,18; Ef 5,20; Cl 3,15). Quando Paulo os exorta a viver uma vida digna da sua vocação, fá-lo sempre colocando diante de seus olhos o dom imenso de Deus para com eles, porque a vida moral não encontra seu verdadeiro e pleno sentido se não for vivida como uma oferta de si mesmos para responder ao dom de Deus (Rm 12,1). 3.3.2. O ensinamento moral de Paulo 54. Nos seus escritos, Paulo insiste no fato de que o agir moral do crente é um efeito da graça de Deus que o tornou justo e o faz perseverar. Porque Deus nos perdoou e nos tornou justos, ele tem prazer em nosso agir moral que dá testemunho da salvação atuando em nós. a. A experiência do amor de Deus como base da moral 55. O que faz nascer a moral cristã não é uma norma externa mas sim a experiência do amor de Deus por cada um, uma experiência que o Apóstolo quer recordar nas suas cartas a fim de que suas exortações possam ser compreendidas e acolhidas. Ele funda seus conselhos e exortações sobre a experiência feita em Cristo e no Espírito, sem nada impor de fora. Se os crentes devem deixar-se iluminar e guiar por dentro e se as exortações e os conselhos não podem fazer outra coisa senão pedir-lhes que não esqueçam o amor e o perdão recebidos, a razão consiste no fato de que eles experimentaram a misericórdia de Deus no seu confronto, em Cristo, e que estão intimamente unidos a Cristo e receberam o seu Espírito. Poder-se-ia assim formular o princípio que guia as exortações de Paulo: quanto mais os que crêem são guiados pelo Espírito, tanto menos é preciso dar-lhes regras para a ação. Uma confirmação do procedimento de Paulo apresenta-se no fato de que ele não inicia suas cartas com exortações morais e não responde diretamente aos problemas dos seus destinatários. Ele põe sempre uma distância entre os problemas e as suas respostas. Retoma as grandes linhas do seu Evangelho (por exemplo, Rm 1-8) e mostra como seus destinatários devem desenvolver o seu modo de compreender o Evangelho e então chega progressivamente a formular os seus conselhos para as diversas dificuldades das jovens igrejas (por exemplo, Rm 12-15). É possível perguntar-se se Paulo também hoje escreveria dessa maneira, se é verdade que uma maioria dos cristãos talvez não tenha feito a experiência da generosidade infinita de Deus nas suas vidas e se encontram antes na situação de um cristianismo puramente ‘sociológico’. Nesse contexto, faz-se também outra pergunta: se, com o passar dos séculos, se criou uma separação grande demais entre os imperativos morais, apresentados aos fiéis, e as suas raízes evangélicas. Em todo caso, é hoje importante formular de novo a relação entre as normas e as suas motivações evangélicas, para fazer melhor compreender como a apresentação das normas morais depende da apresentação do Evangelho. b. O relacionamento com Cristo como fundamento do agir do cristão 56. O que determina para Paulo o agir moral não é uma concepção antropológica, isto é, uma certa idéia do homem e da sua dignidade, mas antes o relacionamento com Cristo. Se Deus justifica cada pessoa humana somente mediante a fé, sem as obras da Lei, isso não acontece a fim de que todos continuem a viver no pecado: “Nós, que já morremos para o pecado, como vamos continuar vivendo nele?” (Rm 6,2). Mas a morte ao pecado é uma morte com Cristo. Encontramos aqui uma primeira formulação do fundamento cristológico do agir moral dos crentes, fundamento expresso como união que implica uma separação: unidos a Cristo, os crentes estão de agora em diante separados do pecado. Importante é a assimilação do itinerário dos crentes ao de Cristo. Em outras palavras: os princípios do agir moral não são abstratos mas vêm antes de um relacionamento com Cristo, que nos fez morrer juntamente com ele ao pecado: o agir moral está diretamente fundado sobre a união com Cristo e sobre a inabitação do Espírito, do qual ele vem e do qual é expressão. Assim, esse agir não é, fundamentalmente, ditado por normas exteriores, mas provém do forte relacionamento que no Espírito liga os crentes a Cristo e a Deus. Paulo tira também implicações morais da sua afirmação única e característica de que a Igreja é o “corpo de Cristo”. Para o Apóstolo, isso é mais do que uma simples metáfora e chega a um status quase metafísico. Como o cristão é membro do corpo de Cristo, cometer fornicação é juntar o corpo da prostituta ao corpo de Cristo (1Cor 6,15-17); como os cristãos formam o único corpo de Cristo, a variedade dos dons dos membros deve ser usada em harmonia e com mútuo respeito e amor, dando especial atenção aos membros mais vulneráveis (1Cor 12-13); celebrando a Eucaristia, os cristãos não devem violar ou desprezar o corpo de Cristo, ofendendo os membros mais pobres (1Cor 11,17-34; cf. abaixo, as implicações morais da Eucaristia, nn. 77-79). c. Comportamentos principais para com o Cristo Senhor 57. Dado que o relacionamento com Cristo é tão fundamental para o agir moral dos crentes, Paulo esclarece quais são os justos comportamentos diante do Senhor. Não freqüentemente, mas em dois textos conclusivos dos escritos paulinos, se diz que é preciso amar o Senhor Jesus Cristo: “Se algum de vós não ama o Senhor, que seja excluído!” (1Cor 16,22) e “A graça esteja com todos aqueles que amam nosso Senhor Jesus Cristo imperecivelmente” (Ef 6,24). É claro que esse amor não é um sentimento inoperante, mas deve concretizar-se em ações. A concretização pode vir do título mais freqüente de Cristo, o de ‘Senhor’. A denominação ‘senhor’ é oposta à de ‘escravo”, ao qual compete servir. Sabemos também que ‘Senhor’ é um título divino passado a Cristo. De fato, os cristãos são chamados a “servir o Senhor” (Rm 12,11; 14,18; 16,18). Esse relacionamento dos crentes com Cristo Senhor influi fortemente nas suas relações mútuas. Não é justo comportar-se como juiz de um servo que pertence ao mesmo Senhor (Rm 14,4.6-9). As relações entre aqueles que, na sociedade antiga, são escravos e são senhores, ficam relativizadas (1Cor 7,22-23); Fm; cf Cl 4,1; Ef 6,5-9). A alguém que é servo do Senhor convém, por amor de Cristo, servir aqueles que pertencem a esse Senhor (2Cor 4,5). Uma vez que com ‘Senhor’ passou um título divino a Cristo, podemos observar que as atitudes do crente do Antigo Testamento em relação a Deus passam também a Cristo: nele se crê (Rm 3,22.26; 10,14; Gl 2,16.20; 3,22.26; cf Cl 2,5-7; Ef 1,15); nele se espera (Rm 15,12; 1Cor 15,19); ele é amado (1Cor 16,22; cf. Ef 6,24); a ele se obedece (2Cor 10,5). O agir justo, que corresponde a essas atitudes em relação ao Senhor, pode ser deduzido da sua vontade que se manifesta nas suas palavras, mas especialmente do seu exemplo. d. O exemplo do Senhor 58. As instruções morais de Paulo são de gênero diverso. Ele diz com grande clareza e força que comportamentos são perniciosos e excluem do reino de Deus (cf. Rm 1,18-32; 1Cor 5,11; 6,9-10; Gl 5,14); refere-se raramente à lei mosaica como modelo de comportamento (cf. Rm 13,8-10; Gl 5,14); não ignora os modelos morais dos estóicos – aquilo que os homens do seu tempo consideravam com bom ou mau; além disso, transmite algumas disposições de Cristo sobre problemas concretos (1Cor 7,10; 9,14; 14,37); e refere-se também à “lei de Cristo” que diz: ”Carregai os fardos uns dos outros!” (Gl 6,2). Mais freqüentes são as referências ao exemplo de Cristo, que se deve imitar e seguir. De um modo geral, Paulo diz: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). Exortando à humildade e a não procurar só o próprio interesse (2,4), admoesta os filipenses: “Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus!” (2,5) e descreve todo o caminho do abaixamento e da glorificação de Cristo (2,6-11). Apresenta ainda como exemplar a generosidade de Cristo, que “se fez pobre para tornar-nos ricos” (2Cor 8,9), e a sua doçura e mansidão (2Cor 10,1). Paulo põe especialmente em relevo a força envolvente do amor de Cristo, que atinge seu cumprimento na paixão. “O amor de Cristo nos impele, considerando que um só morreu por todos e, portanto, todos morreram. De fato, Cristo morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,14-15). Seguindo Jesus não é mais possível uma “vida própria” segundo os próprios projetos e desejos, mas só uma vida em união com Jesus. Paulo assinala para si mesmo uma vida assim: “Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim. Minha vida atual na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Essa atitude encontra-se igualmente na exortação da carta aos efésios: “Caminhai no amor, como Cristo também nos amou e se entregou a Deus por nós como oferenda e sacrifício de suave odor” (Ef 5,2; cf. Ef 3,17; 4,15-16). c. O discernimento da consciência guiada pelo Espírito 59. Embora Paulo peça poucas vezes aos crentes que tenham discernimento, ele o faz de tal modo que os leva a entender que todas as decisões devem ser tomadas com discernimento, como demonstra o início da parte exortativa da carta aos romanos (Rm 12,2). Os cristãos devem discernir, porque muitas vezes as decisões a tomar não são absolutamente evidentes e claras. O discernimento consiste em examinar, sob a guia do Espírito, o que é melhor e perfeito em cada circunstância (cf. 1Ts 5,21; Fl 1,10; Ef 5,10). Pedindo aos crentes que tenham discernimento, o Apóstolo torna-os responsáveis e sensíveis à voz discreta do Espírito neles. Paulo está convencido de que o Espírito, que se manifesta no exemplo de Cristo e que está vivo nos cristãos (cf. Gl 5,25; Rm 8,14), lhes dará a capacidade de decidir o que seja mais conveniente em cada ocasião. 3.3.3. O seguimento de Cristo nas cartas de Tiago e de Pedro 60. Essas cartas pertencem às chamadas “cartas católicas”, que não são endereçadas a uma comunidade determinada mas se dirigem a um público mais amplo. a. A carta de Tiago Pressupondo a obra salvadora de Jesus, Tiago está especialmente interessado na vida moral dos membros da comunidade cristã. A carta põe no centro a verdadeira sabedoria que vem de Deus (1,5) e a contrapõe à falsa sabedoria, descrevendo as duas atitudes: “Essa não é a sabedoria que vem do alto. Ao contrário, é terrena, egoísta, demoníaca! Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más. A sabedoria, porém, que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento” (3,15-17). A sabedoria do alto, o ensinamento moral revelado do alto, não é obra do ser humano mas de Deus. O homem pode somente analisá-lo, aprofundá-lo e pô-lo em prática. Trata-se de uma moral objetiva. Ao invés, a sabedoria “terrena, material e diabólica” (3,15) serve muitas vezes para justificar comportamentos amorais. A sabedoria terrena constitui uma tentação permanente do ser humano, quando quer decidir o que é o bem e o que é o mal. A carta é também um manifesto pela justiça social, para a qual é fundamental a estima da dignidade de cada ser humano, especialmente do pobre, que de um modo particular está exposto às humilhações e desprezo da parte dos ricos e poderosos. Continua-se a defesa dos pobres já empreendida pelos profetas, especialmente por Amós e Miquéias, mas há também uma dimensão cristológica. O autor apela para “a fé no Senhor nosso Jesus Cristo, Senhor da glória” (2,1). A dignidade de Cristo glorioso é garantia da dignidade de cada cristão redimido com o sangue de Cristo e exclui os favoritismos. Tiago insiste muito em refrear a língua (1,26; 3,1-12), a ponto de afirmar: “Aquele que não peca no uso da língua é um homem perfeito, capaz de refrear também o corpo todo” (3,2). Na Igreja têm uma particular responsabilidade os mestres (3,1), que podem criar tantas dissensões e divisões na comunidade cristã através do seu ensinamento (ou de seus escritos). Semelhante é a responsabilidade de todos aqueles que têm um forte e determinante influxo sobre a opinião pública. b. A primeira carta de Pedro 61. O escrito fala amplamente de Jesus Cristo, da sua paixão e ressurreição e da sua futura vinda na glória, e deriva do seu caminho a justa impostação da vida cristã. O primeiro tema é o batismo (1,3-5), sinal de conversão e regeneração. A morte ao pecado deve ser total, como é total o renascimento para a vida nova. Os cristãos são regenerados “por meio da palavra de Deus” (1,23) e como “pedras vivas” constituem um “edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo” (2,5). Tais “sacrifícios espirituais” coincidem com toda a vida cristã enquanto animada e guiada pelo Espírito. Os crentes não devem acomodar-se à sociedade pagã na qual vivem e na qual são “migrantes e forasteiros” (2,11). Devem abster-se “das paixões carnais” (2,11), do modo de viver pagão (cf 4,3) e conduzir os pagãos, mediante as suas boas obras, a “darem glória a Deus no dia do julgamento” (2,12). Não obstante a sua peculiaridade, eles são chamados a se inserirem na sociedade na qual vivem e a se submeterem “a toda autoridade humana, por amor ao Senhor” (2,13). Esta solícita participação na vida social manifesta-se também nas regras para os diversos relacionamentos (Estado, família, matrimônio) nos quais se vive (2,13—3,12). Se, perseguidos, devem sofrer pela justiça, encorajados e sustentados considerando a morte violenta de Cristo (3,13; 4,1). Também nessas circunstâncias não devem fechar-se: “Estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que a pedir. Fazei-o, porém, com mansidão e respeito” (3,15-16). Enquanto participam dos sofrimentos de Cristo são exortados: “Alegrai-vos, para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua glória” (4,13). Ao lado dessas normas para a conduta num ambiente pagão, encontram-se as exortações para a vida comunitária, que deve ser marcada pela oração, caridade, hospitalidade, e pelo uso de todo carisma em favor da comunidade. Tudo se faça “a fim de que, em todas as coisas, Deus seja glorificado, por Jesus Cristo” (4,11). 3.4. A nova aliança e suas implicações morais, segundo a carta aos Hebreus 3.4.1. Cristo, mediador da nova aliança 62. Das trinta e três ocorrências do termo “aliança” no Novo Testamento, dezessete se encontram na carta aos hebreus. Ela apresenta explicitamente a aliança mosaica (9,19-21), cita integralmente a profecia de Jeremias (8,8-12), menciona Jesus como mediador da nova aliança (8,6; 9,15; 12,24) e fala da aliança ‘nova” (8,8; 9,15; 12,24), ‘melhor’ (7,22; 8,6) e ‘eterna’ (13,20). Na sua carta, o autor descreve a intervenção de Deus mediante seu Filho Jesus para a realização da nova aliança. a. O mediador perfeito, novo Moisés Para introduzir-nos num íntimo relacionamento consigo, Deus escolheu seu próprio Filho como mediador perfeito, último e definitivo. Já no prólogo se encontra a afirmação central: “Deus falou-nos por meio do Filho” (1,2). O autor apresenta desde o início uma síntese da história da salvação: descreve a ação divina para estabelecer a aliança e indica os dois aspectos do mistério pascal: “Tendo completado a purificação dos pecados, sentou-se à direita da majestade divina, nas alturas” (1,3). O Filho superou o obstáculo que impedia o relacionamento de aliança e estabeleceu definitivamente a aliança entre Deus e nós. Cristo, Filho de Deus (1,5-14) e irmão dos homens (2,5-18), é mediador da aliança na própria constituição do seu ser. Recebe o título de “sumo-sacerdote” (2,17), a quem compete a fundamental função de exercer a mediação entre Deus e os homens. A esse título são acrescentados dois adjetivos: “digno de fé” e “misericordioso”, que designam duas qualidades, essenciais e necessárias para estabelecer e manter uma aliança. ‘Digno de fé’ refere-se à capacidade de introduzir o povo na relação com Deus, e ‘misericordioso’ exprime a capacidade de compreensão e ajuda fraterna para os homens. O mistério de Cristo compreende a adesão a Deus e a solidariedade fraterna, dois aspectos de uma única disposição de aliança. b. A “nova aliança”, fundada no sacrifício de Cristo 63. Quando Jeremias anunciou a nova aliança, não explicou de que modo seria instituída e qual seria o seu ato fundador. O autor da carta aos hebreus proclama com tom determinado, na frase central de toda a carta: “Cristo, porém, veio como sumo-sacerdote dos bens futuros. Ele entrou no Santuário através de uma tenda maior e mais perfeita, não feita por mãos humanas, nem pertencendo a esta criação. Ele entrou no Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (9,11-12). Cristo entrou no verdadeiro santuário, foi introduzido na intimidade com Deus, abriu o caminho para Deus, estabeleceu a comunicação do homem com Deus, realizou a aliança definitiva. Com que meios? “Com seu próprio sangue”, isto é, por meio da sua morte violenta transformada em oferta; por meio da oferta de sua própria vida, transformada em meio de união perfeita com Deus e de solidariedade extrema com os seres humanos. Assim Cristo “obteve uma redenção eterna” para muitos, a libertação dos pecados, que é a condição fundamental para a instituição da nova aliança. O autor descreve em 10,1-18 o efeito, o valor salvífico do sacrifício de Cristo, e apresenta-o como a intervenção decisiva que mudou radicalmente a situação dos homens em relação a Deus. Insiste na supressão das culpas: os pecados não são mais recordados (10,17), estão perdoados (10,18). As duas frases mais significativas que definem essa eficácia salvífica fazem-no do ponto de vista positivo do dom da santidade (10,10) e da perfeição (10,14). Portanto, a oferta única de Cristo tem um duplo efeito: confere a perfeição a Cristo e confere-a também a nós. Na sua paixão e ressurreição Cristo era passivo e ativo: recebeu e realizou a perfeição, isto é, o relacionamento perfeito com Deus, e contemporaneamente comunicou-a a nós; ou melhor, recebeu a perfeição para no-la comunicar. Assim estabeleceu a nova aliança. 3.4.2. As exigências do dom da nova aliança 64. Aqueles que por causa da oferta de Cristo receberam o perdão dos pecados foram santificados, e assim passaram à nova aliança, encontram-se numa nova situação que de sua parte requer um novo comportamento. O autor circunscreve seus traços característicos e suas exigências em 10,19-25. O texto compreende duas partes: a primeira, de natureza descritiva (vv. 19-21) e a segunda, de natureza exortativa (vv. 22-25). A parte descritiva define a nova situação criada pela intervenção de Cristo. Apresenta assim a nova aliança acima de tudo como o dom maravilhoso que Deus nos fez em Cristo, e mostra que possuímos três realidades: um direito à entrada, um caminho, e uma guia (indicativo). A parte exortativa exprime as exigências e convida a assumir as três atitudes de fé, esperança e caridade; é preciso que o ser humano acolha ativamente o dom de Deus (imperativo). O texto apresenta de modo exemplar a conexão estreitíssima entre o dom antecedente divino e a tarefa consecutiva humana, entre o indicativo e o imperativo. a. Progredir no relacionamento com Deus 65. Nós todos somos convidados a aproximar-nos de Deus, a entrar em íntimo contacto com ele. Acima de tudo requer-se uma adesão pessoal a Deus. Esta verifica-se praticando as virtudes teologais, que têm uma relação estreita e direta com a nova aliança. A primeira condição para aproximar-se de Deus é a adesão de fé a Ele por meio da mediação sacerdotal de Cristo. O convite à “plenitude da fé” (10,22) é fundado sobre a eficácia perfeita do sacrifício e sacerdócio de Cristo, que introduzem os seres humanos realmente na comunhão com Deus. A plenitude da fé se obtém “com os corações purificados de toda a má consciência e o corpo lavado com água pura” (10,22). Isto se refere ao sacramento do batismo quanto ao rito externo e à eficácia interna. Com essas palavras o autor indica a mudança radical entre antiga e nova aliança, a passagem a uma aliança mais interiorizada. A aspersão com o sangue de Cristo atinge o ser humano no seu coração (cf. Jr 31,33; Ez 36,25), liberta-o das suas más disposições, transforma-o e renova-o. A segunda atitude é a esperança (10,23), estreitamente conexa com a fé (cf. 11,1). Isso exprime o aspecto dinâmico da fé, porque a mensagem que recebemos não é revelação de uma verdade abstrata mas de uma pessoa que é caminho e causa de salvação. Temos a esperança de obter a herança eterna, de entrar para sempre no repouso de Deus. O autor exorta, por fim, à caridade (10,24-25). A relação entre aliança e caridade é muito estreita. A caridade compreende sempre as duas dimensões: a união com Deus e a união com os irmãos, que são as dimensões fundamentais da nova aliança. Esses versículos convidam a estar atentos uns aos outros para progredir na caridade efetiva que produz boas obras e sublinham particularmente a exigência de ser fiéis às reuniões da comunidade. b. Sacrifício de louvor a Deus e de serviço aos irmãos 66. Em diversas exortações o autor indica qual é o comportamento justo daqueles que com Jesus se aproximaram de Deus: devem suportar perseguições e sofrimentos, permanecer constantes na fé e pacientes na esperança (10,32-39) e são chamados a buscar a paz com todos e a empenhar-se pela santificação (12,14-17). Depois de outras exortações ao justo comportamento (13,1-14), segue uma síntese da vida moral cristã em estreita conexão com o sacrifício de Cristo e com a sua mediação: “Por meio de Jesus, ofereçamos a Deus um perene sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que celebram o seu nome. Não vos esqueçais da prática do bem e da partilha, pois esses são os sacrifícios que agradam a Deus” (13,15-16). O culto cristão realiza-se principalmente na vida cristã. Ele é verdadeiramente cristão porque é mediado por Cristo: “por meio dele” (13,15), e consiste em unir a própria existência ao sacrifício de Cristo para fazê-la subir a Deus. Isso acontece de duas maneiras, ambas necessárias, e correspondentes aos dois aspectos do sacrifício de Cristo: com o seu sacrifício Cristo glorificou a Deus e salvou seus irmãos. Cristo mostrou uma perfeita adesão à vontade de Deus (cf. 5,8; 10,7-10) e uma generosa solidariedade com os homens (cf. 2,17-18; 4,15). Por meio dele e com ele toda a vida dos cristãos deve consistir na transformação da sua existência numa vida obediente a Deus e generosa na doação aos irmãos. 3.5. Aliança e empenho dos cristãos: a perspectiva do Apocalipse 3.5.1. Uma aliança que se move na história a. Aliança e reino: seu desenvolvimento na história e seu ponto de chegada 67. O ponto de partida da aliança como a entende o Apocalipse é constituído pela aliança sinaítica e davídica, entendida e revivida na perspectiva da nova aliança proposta por Jeremias (Jr 31,33; cf. Ez 36,26-28). O autor do Apocalipse, passando sem solução de continuidade do Antigo ao Novo Testamento e vice-versa, reinterpreta a aliança como o empenho da parte de Deus para realizar com os homens, por meio de Cristo e em relação com Cristo, uma reciprocidade altíssima de pertença, expressa na fórmula típica: “Vós sois o meu povo e eu sou o vosso Deus” (Jr 31,32; Ez 36,28). A primeira referência explícita à aliança que encontramos no Apocalipse – “Abriu-se o santuário de Deus que está no céu e apareceu no Santuário a arca da sua Aliança” (Ap 11,19) – é situada na conclusão da grande celebração doxológica (11,15-18) que tem por objeto um evento fundamental: “O reinado sobre o mundo pertence agora ao nosso Senhor e ao seu Cristo” (11,15). A realização do reino no mundo dos homens desemboca na aliança atuada, que vem solenemente visualizada com a manifestação da arca. Na última referência conclusiva à aliança, o autor retoma a fórmula de Jeremias e de Ezequiel e a vê realizada na nova Jerusalém, a cidade-esposa: “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo do céu, de junto de Deus, vestida como noiva enfeitada para o seu esposo” (21,2). E logo dá uma explicação que a esclarece: “Então, ouvi uma voz forte que saía do trono e dizia: ‘Esta é a morada de Deus com os homens! Ele vai morar junto deles. Eles serão os seus povos, e o próprio Deus-com-eles será o seu Deus’” (21,3). A antiga fórmula da aliança aqui se encontra surpreendentemente alargada. A referência básica a Cristo-cordeiro como esposo e a Jerusalém como noiva – retomada em 21,9 – ilumina os vários detalhes nessa perspectiva: a presença da tenda e o fato de que Deus “armará a sua tenda entre os homens” evoca e retoma Jo 1,14: “E a Palavra se fez carne e armou a sua tenda entre nós”. Somente graças à ação de Cristo-cordeiro (Ap 5,9) se tem a passagem de um só povo na antiga aliança a uma pluralidade de povos na nova: “serão os seus povos”. Sobretudo, é mediante Cristo e toda a sua ação que Deus, o Deus da antiga aliança, tornado “Deus-conosco”, se torna na nova aliança “o Deus deles”. 3.5.2. O empenho dos cristãos 68. A aliança e o reino constituem um dom de Deus e de Cristo, dom, porém, que se realiza, nos dois aspectos, mediante a cooperação dos cristãos. Encontramos, já no início do Apocalipse, uma aclamação a Cristo que o exprime: “Àquele que nos ama, que por seu sangue nos libertou dos nossos pecados – e fez de nós reino, sacerdotes para seu Deus e Pai – a Ele a glória e o poder, pelos séculos. Amém” (1,5-6). Ressalta antes de tudo a dimensão do amor da parte de Cristo, de quem a assembléia se sente alvo. Ressalta igualmente um primeiro resultado da ação redentora de Jesus: os redimidos são constituídos por ele “reino e sacerdotes” (cf. também 5,9-10). O amor da parte de Cristo e a redenção situam-se no âmbito da reciprocidade da aliança, enquanto os outros dois termos – reino e sacerdotes – referem-se ao contexto do reino. Comecemos por esses dois. a. Os cristãos, feitos “reino” 69. A partir do batismo, os cristãos, libertados de seus pecados, pertencem exclusivamente a Cristo, que os constitui seu “reino” (cf. 1,5-6). Trata-se de um reino em devir, que comporta como tal uma pertença a Cristo sempre maior. A esse aperfeiçoamento é dirigida a perspectiva penitencial da primeira parte do Apocalipse (cc. 1-3). Como depois veremos melhor em detalhe, Cristo ressuscitado, falando em primeira pessoa, dirige à sua Igreja imperativos que tendem a mudá-la para melhor, a consolidá-la, a convertê-la. O que Cristo ressuscitado pede a cada uma das igrejas da Ásia Menor, vale também, mais em geral, para a Igreja de todo tempo. Em cada uma das Cartas às Igrejas, nota-se uma dialética entre a igreja local, da qual se parte, e a Igreja universal – “as igrejas” – com a qual se termina. Na medida em que a Igreja acolhe essa mensagem, ela desenvolve a sua pertença a Cristo, tornando-se sempre mais “reino”, sempre mais capaz de seguir Cristo-cordeiro (14,4) e de agir coerentemente. b. Os cristãos, feitos “sacerdotes” e “vencedores” 70. Os cristãos, feitos “reino”, são qualificados, em paralelo, como “sacerdotes” (cf. 1,5; 5,10). A celebração em 5,10 dirige-se a Cristo como cordeiro, o que, na formulação própria do Apocalipse (cf. Ap 5,6), indica o Cristo morto e ressuscitado, dotado de toda a força messiânica e que envia à humanidade a plenitude do seu Espírito. É Cristo como cordeiro que constitui os cristãos “sacerdotes”. Com essa qualificação insólita (cf. ainda 1Pd 2,1-10) indica-se – além da pureza requerida dos cristãos e da dignidade na qual a situação de “reino” os coloca – também o seu papel de mediação entre aquilo que é o projeto de aliança de Deus e a sua realização na história, o que levará à realização definitiva do reino. De fato, os cristãos, exatamente como sacerdotes, “reinam sobre a terra” (5,10), não no sentido de gozarem de um reino já consumado, mas como empenho ativo a instaurarem o reino, de Deus e de Cristo, que vai realizando-se. O empenho ativo de mediação dos cristãos se atua no concreto da história, onde se desenvolve o confronto dialético entre bem e mal, entre o sistema de Cristo e o sistema terrestre anti-reino e anti-aliança, ativo pelo influxo do Demoníaco. Associada como está à vitória que Cristo, presente e ativo na história humana, está alcançando, a ação própria do cristão comportará uma superação do mal, uma vitória. O cristão exclui do quadro da sua existência aquelas escolhas negativas que desmentiriam ou mesmo arriscariam de anular a sua situação inicial de reino. A tensão moral para tornar-se completamente reino, com o estado de conversão permanente que isso comporta, preserva o cristão de qualquer regressão. O seu empenho de vencedor, no sentido de uma colaboração sua à vitória que Cristo está alcançando sobre o sistema terrestre contrário à aliança, comportará para o cristão uma série de iniciativas. A primeira delas é a oração, à qual o Apocalipse atribui um papel determinante na construção do reino de Deus. Unidas aos clamores dos mártires (cf. 6,9-11), as orações dos cristãos sobre a terra sobem à presença de Deus e Deus responde com as suas intervenções na história (8,1-5). A oração, que para o Apocalipse é louvor individual e celebração coral, assume muitas vezes a forma de uma súplica apaixonada, própria do cristão que, atento ao desenvolver-se da história, nota as lacunas – morais e de “reino” – que aí se encontram. Junto à oração, outro empenho ativo do cristão é o seu testemunho. Portador permanente dos “mandamentos de Deus” e do “testemunho de Jesus” (12,17; 19,10), o cristão enfrenta, com esses valores, o sistema anti-reino e anti-aliança que encontra na história. Sairá vencedor, junto com Cristo e na força de Cristo. Ele o fará com a palavra, mas sobretudo com a vida, pronto também a entregá-la (cf. 12,11). Para o Apocalipse, o cristão é sempre um mártir potencial. Quando, então, o Espírito o sugerir, o cristão poderá assumir, em relação ao sistema anti-aliança com o qual se defronta continuamente, também o tom de denúncia próprio da profecia. O Apocalipse delineia as características fundamentais do profeta (cf. 11,1-13): deverá antes de tudo acentuar a sua oração e, depois, com a força do Espírito, denunciará a atitude agressiva, anti-reino e anti-aliança, do sistema terrestre, e o fará com a força irresistível da palavra de Deus, como os antigos profetas. Poder-se-á exigir dele o seguimento de Cristo até o fim, assumindo como sua a trajetória pascal. Poderá até ser morto, mas exercerá, mesmo depois da morte, uma influência decisiva na história. c. “As obras justas dos santos” (19,8) 71. Deve-se notar, enfim, no quadro dessas atividades desenvolvidas pelo cristão, uma qualificação típica que as atravessa todas em diagonal e que representa seu denominador comum: o autor denomina-a “as obras justas dos santos” (19,8). Trata-se daquelas marcas de justiça, de retidão implantada, que os santos, com cada uma das atividades indicadas, inserem na história. As atividades a que se referem as “obras justas” contribuem todas para o desenvolvimento do reino, mas, ao mesmo tempo, deslocam-se decididamente também para o âmbito da aliança. São interpretadas explicitamente pelo autor como “o linho” (19,8) que a Igreja, ainda noiva, usará para o seu vestido nupcial, quando, na fase escatológica, se tornar esposa, a esposa do Cordeiro. d. A leitura sapiencial da história 72. O seguimento ativo, ao qual o cristão é chamado, aparece-nos estreitamente ligado aos acontecimentos da história. Para que a sua oração, a sua profecia, o testemunho, e qualquer outra ação sua seja de fato um contributo aderente de justiça, requer-se de sua parte uma interpretação oportuna do momento da história no qual está vivendo. Desde a primeira parte do Apocalipse encontra-se – junto com a insistência no “tornar-se reino” – uma pressão martelante em favor da leitura interpretativa da história. É um ponto crucial para toda a vida cristã, como a vê o Apocalipse. Trata-se de ler a história, com um olho nos princípios e valores religiosos que Deus revelou e revela, e com o outro olho nos acontecimentos concretos. Colocando os eventos concretos no quadro dos valores e princípios religiosos e iluminando-os com eles, obtém-se uma interpretação de tipo sapiencial. De fato, o Apocalipse chama sabedoria, de um lado, a sabedoria com que Deus e Cristo-cordeiro levam adiante o desenvolvimento da história (cf. 5,12 e 7,12) e, por outro lado, a capacidade do cristão de colher essa sabedoria transcendente no concreto da sua hora, realizando uma síntese entre os princípios e os fatos, com as propostas operativas que daí derivam. A isso mira o imperativo repetido sete vezes pelo Cristo ressuscitado: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (2,7.11.17.29; 3,6.13.22). A isso miram também os quadros simbólicos que contêm os grandes princípios religiosos revelados, destinados a acolher e iluminar as situações históricas mais variadas. A sua interpretação e aplicação permitirão uma leitura sapiencial da história, pertinente e atualizada. Inserindo na história de maneira orientada e aderente aos fatos a sua oração, seu testemunho, sua profecia e as outras iniciativas que a leitura sapiencial dos fatos lhe sugerirá de cada vez, o cristão cooperará na realização ulterior do reino e crescerá na sua reciprocidade de amor para com Cristo, típica da aliança. e. Conclusão 73. A aliança, para o Apocalipse, representa um dom de Deus que se ramifica nas vicissitudes do ser humano. É passando através da história por meio de Cristo, que Deus realiza progressivamente aquele máximo de reciprocidade típico da Jerusalém nova, o qual requer, para concretizar-se, o pleno desenvolvimento do reino. Aliança e reino reclamam-se mutuamente: movem-se em paralelo na história e, ao chegarem à conclusão, coincidem. Visto no seu ponto de chegada, o reino representa a realização plena do sistema de valores de Cristo em uma situação na qual tudo é homogêneo em relação a ele e ao Pai. A expressão dessa situação em termos interpessoais é a reciprocidade da aliança realizada, percebida como amor. O dom da aliança da parte de Deus aparece, assim, no Apocalipse, como uma força motora subjacente que leva adiante todo o desenvolvimento da história da salvação e o conclui. 3.6. A Eucaristia, síntese da nova aliança 3.6.1. O dom da Eucaristia 74. Como já mencionado, a perspectiva de uma nova aliança aflora no profeta Jeremias (31,31-34, cf. Ez 36,26-28). A intervenção decisiva de Deus – “Infundirei a minha lei no seu íntimo” (31,33) – terá como efeito que “todos me conhecerão” (31,34). Jeremias, porém, não indica o meio pelo qual Deus efetua essa transformação interior. a. A morte de Jesus funda a aliança definitiva Nos sinóticos e em Paulo encontramos a determinação concreta do meio que Deus utiliza nessa operação interna anunciada por Jeremias e Ezequiel. Jesus, o Servo sofredor de Deus (Lc 22,27; Jo 13,4-5.13-17), antecipando com sinais eloqüentes o dom supremo que está para fazer, quando ofereceu o cálice com o vinho, designou-o como “o meu sangue da aliança” (Mt 26,28; Mc 14,24; cf. Ex 24,8), ou então – na formulação de Paulo e de Lucas – “Este cálice é a nova aliança no meu sangue” (Lc 22,20; 1Cor 11,25). Ao dar a Eucaristia à Igreja, Jesus entregou-se a si mesmo, fixando assim o significado da sua paixão e ressurreição. Transfigurou a morte, o ato humano que significa e efetua a desagregação total, num meio potentíssimo de união. Normalmente, o falecimento de uma pessoa cria uma ruptura irremediável entre aquele que se vai e os que permanecem, e isso acontece mais ainda quando se trata de um condenado à pena capital. Porém, na última Ceia, Jesus deu à sua morte de condenado um sentido completamente oposto, fazendo-a ocasião e causa de amor extremo, instrumento de comunhão com Deus e com os irmãos, meio para fundar a aliança definitiva. As palavras da instituição – “Bebei dele todos, porque este é o meu sangue da aliança” (Mt 26,28) – revelam e efetuam essa transformação do sentido da sua morte. É oferecido, como substância nutritiva que dá vida, “o sangue derramado”, ou seja, a própria morte, não considerada como uma desgraça fatal mas como “memória”, isto é, presença permanente, de um justiçado que “voltará” porque, começando desde “a noite na qual foi entregue” (1Cor 11,23), aquele que foi julgado foi por sua vez constituído como aquele que nos julga “para não sermos condenados junto com o mundo” (1Cor 11,32). b. A eficácia comunitária dos elementos eucarísticos 75. O gesto sacramental exprime de modo especial a eficácia comunitária do sacrifício. Jesus se transforma em alimento e bebida para todos (cf. Jo 6,53-58). Por isso, não só o seu sacrifício o torna agradável a Deus mas a forma como ele é significado e realizado manifesta também o benefício em nosso favor, enquanto nos põe em estreita comunhão com Ele e, por meio dele, com Deus. O banquete da “nova aliança” no qual o próprio Jesus se torna alimento realiza o aspecto sublinhado por Jeremias: a atividade de Deus que transformará as pessoas “de dentro”. Mediante a obrigação de “comer a carne de Jesus” e “beber o seu sangue”, insiste-se na completa assimilação e manifesta-se do melhor modo possível a ação interior de Deus prevista por Jeremias e Ezequiel. Essa operação divina não está restrita a um grupo privilegiado mas coloca todos os convocados numa comunhão recíproca. Trata-se de uma refeição partilhada sem excluir ninguém, dado que o corpo “é entregue por vós” e o sangue “é derramado por vós”. Já qualquer banquete traz consigo o dinamismo da comunicação recíproca entre as pessoas, da aceitação mútua, das relações amigáveis e fraternas. Tanto mais o banquete eucarístico, que não é resultado de meras convergências horizontais mas toma a sua origem da convocação de Cristo que derrama seu sangue por todos e alcança o que ninguém, nem mesmo todos juntos, poderiam ter conseguido: “o perdão dos pecados” (Jer 31,34; Mt 26,28). Essa realidade profunda da Ceia do Senhor era tão impressionante para a fé, que o próprio Paulo, que sempre respeita a dualidade dos elementos eucarísticos (1Cor 10,16), fascinado pela realidade tão compacta que cria o sacramento, num certo momento passa a concentrar-se num só deles: “Porque há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão” (1Cor 10,17). Ora, esse único corpo é a Igreja. Enquanto o Senhor diz do pão eucarístico: “Isto é o meu corpo” (1Cor 11,24), Paulo declara, a propósito dos coríntios: “Vós todos sois o corpo de Cristo” (1Cor 12,27). Uma coisa não vai sem a outra. Separá-las “não é comer a ceia do Senhor” (1Cor 11,20). c. A Eucaristia, o dom 76. A Eucaristia é completamente dom, o dom por antonomásia. Nela Jesus dá-se a si mesmo, sua própria pessoa. Dá, porém, o seu corpo entregue e o seu sangue derramado. Isso significa que ele se dá no ato supremo da sua vida, exatamente na doação da sua vida numa perfeita entrega a Deus e num completo empenho pela humanidade. Jesus dá-se no pão e no vinho, como comida e como bebida, o que significa a mudança interna que é característica da nova aliança (Jr 31,33). Mediante essa união eucarística entra-se ao mesmo tempo na mais estreita comunhão com Deus e com a humanidade. Não se pode estar nessa interna e vital união com Jesus e depois comportar-se de modo evidentemente contrário ao comportamento de Jesus para com Deus e para com os irmãos e irmãs. 3.6.2. As implicações comunitárias da Eucaristia 77. Paulo, diante do comportamento equivocado dos coríntios exatamente durante a celebração eucarística, reflete sobre a natureza e o significado da própria Eucaristia e desenvolve os critérios da conduta justa. O caminho traçado não é mais lei e letra, mas pessoa, ação, espírito – tudo realizado e presente em Jesus. É incoerente e contraditório acolher no sacramento o dom total de Cristo e unir-se intimamente com a sua pessoa e com o seu corpo, isto é, com todos os outros membros da comunidade cristã, e logo separar-se deles desprezando-os e não partilhando com eles a vida comunitária e os bens. a. Eucaristia e comunhão vivida A celebração da nova aliança deve ser feita em plena coerência com a vida, para não tornar-se uma farsa. Ela possui uma dimensão moral que diz respeito à realidade quotidiana. Deve-se, porém, distinguir adequadamente a causa da culpa dos coríntios. Eles não abusaram da Eucaristia no sentido de uma profanação, não a tratando como algo sagrado. A sua responsabilidade consiste no fato de que não levavam em conta as implicações comunitárias da Eucaristia e da comunhão pessoal com o Senhor: não pode dizer que estima o Senhor aquele que despreza o próximo misteriosamente unido a Ele. Os coríntios praticamente tiravam da aliança oferecida pelo Senhor a sua “novidade”, sufocando-a nas rígidas categorias econômicas e sociais do paganismo. b. Não alimento dos perfeitos mas remédio contra os defeitos 78. Paulo critica as divisões entre os coríntios como incompatíveis com a Ceia do Senhor, mas não proclama uma “greve da Eucaristia”. Quem quisesse suspender a Eucaristia até que as comunidades eclesiais se encontrem em plena unidade e livres do pecado, não poderia mais cumprir o mandamento de Cristo: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24-25). O próprio Paulo faz a conexão entre as duas realidades: “É necessário que haja até divisões entre vós, para que se tornem conhecidos os que, dentre vós, são comprovados!” (11,19). Através da conexão que estabelece entre Eucaristia e empenho moral, o texto Paulino situa-se em continuidade com inúmeros textos do Antigo Testamento que insistem na relação entre culto e ética (cf. acima, nn. 35-36). A Eucaristia, por causa dos defeitos que se encontram nas comunidades, será constantemente um apelo, um estímulo a não se contentar com essa situação. Por isso Paulo a vê também como uma ocasião a fim de que “se examine cada um a si mesmo” (11,28). O fruto será: “Punindo-nos, o Senhor nos educa, para não sermos condenados com o mundo” (11,32). Além disso, na primeira celebração eucarística, realizada pelo próprio Jesus, ele se viu constrangido a censurar os defeitos dos seus: “Houve ainda uma discussão entre eles, sobre qual deles devia ser considerado o maior” (Lc 22,24). Os dois viandantes de Emaús estão enredados nos sonhos do messianismo político (Lc 24,21), mas isso não impede Jesus de explicar-lhes as Escrituras e de dar-se a conhecer a eles “ao partir o pão” (24,35). Para Paulo, os acontecimentos deploráveis de Corinto não têm como resultado uma renúncia fatalista aos encontros eucarísticos, mas apresentam-se como valiosa oportunidade para examinar a consciência, quer a individual quer a comunitária, para formular “o imperativo” das mudanças necessárias e para permitir ao “indicativo” da força divina, ativa na nova aliança, o desenvolvimento da sua obra unitiva no corpo de Cristo. Prescindindo de um obstinado fechamento individualista ou de grupo, a participação na Eucaristia será sempre o mais forte apelo à conversão e o modo melhor de dar nova vitalidade á aliança que renova a vida e os comportamentos, na Igreja e, partindo dela, no mundo. c. A dinâmica do Espírito de Cristo 79. Na Eucaristia, Jesus se dá à comunidade dos participantes exatamente no seu ato supremo, na sua total entrega a Deus Pai e no seu ilimitado empenho pelos homens pecadores. Dando-se a si mesmo, Jesus comunica seu Espírito, o Espírito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19). Esse dom requer em seres livres um acolhimento ativo, um adequar-se ao Espírito de Jesus, um agir no seu Espírito. Paulo chega, por isso, a esta conclusão: “Se vivemos pelo Espírito, procedamos também de acordo com o Espírito” (Gl 5,25). Não se trata de um imperativo imposto de fora e a ser realizado com as próprias forças, mas de um imperativo interno, dado com o próprio Espírito de Jesus. Permanece uma tarefa contínua abrir-se ao Espírito de Jesus, deixá-lo determinar as nossas ações, segui-lo. O Espírito, vivo em Jesus e comunicado por Jesus especialmente através do dom da Eucaristia, torna-se uma realidade dinâmica no interior dos corações dos cristãos, se eles não se opõem ao seu agir. Para Paulo, no comportamento dos coríntios põe-se em perigo o elemento central da fé cristã, a presença e a atividade do Espírito de Cristo nos corações dos fiéis. Ao Espírito de Cristo, que é um Espírito de amor e solidariedade, eles preferiram os velhos privilégios e divisões de classe, terminando no desprezo daqueles “que nada têm” (1Cor 11,22). Por isso chega vigorosa a reação do Apóstolo, determinada pela mesma preocupação que ele exprime em relação aos gálatas: “Depois de haverdes começado pelo Espírito, quereis terminar na carne?” (Gl 3,3). A presença e a dinâmica interna do Espírito não dispensam os cristãos dos decididos e duros esforços próprios. O mesmo Jesus, possuidor e doador do Espírito, não foi exonerado de uma luta árdua para realizar a sua obra de redenção. O comportamento de Jesus deve inspirar aqueles que no seu sangue se tornam participantes da nova aliança. 80. Fundamental é o dom de Deus que começa com a criação, se manifesta nas diversas expressões da aliança e vai até ao envio do Filho, à revelação de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo (Mt 28,20) e à oferta de uma comunhão de vida perfeita e sem fim com Deus. O dom é ao mesmo tempo convite à acolhida, indica implicitamente o justo modo de acolhê-lo e capacita para uma resposta adequada. Expondo a moral revelada, empenhamo-nos em mostrar como Deus acompanha os seus dons com a revelação do justo caminho, do modo adequado de acolhê-los. Entretanto, segundo o testemunho da Bíblia, os seres humanos, desde o início, não acolhem devidamente o dom de Deus, não querem aceitar o caminho que Deus lhes mostra, e preferem os próprios caminhos equivocados. Isso verifica-se em toda a história humana, em cada geração até à crucificação do Filho de Deus, à recusa dos seus missionários, à perseguição dos seus fiéis. A Bíblia é o relato das iniciativas de Deus mas ao mesmo tempo o registro das maldades, fraquezas, fracassos humanos. Põe-se urgentemente a pergunta: qual é a reação de Deus a essas respostas humanas? Deus faz a sua oferta só uma vez? Quem não a acolhe logo, perde-a justamente para sempre e perece, inexoravelmente, na sua rebelião, separado de Deus fonte de vida? Nessa situação, os livros bíblicos mostram-nos como ao dom se acrescenta o perdão. Deus não age como juiz e vingador implacável mas se compadece das suas criaturas caídas, convida-as ao arrependimento e à conversão e perdoa as suas culpas. É um dado fundamental e decisivo da moral revelada, que ela não constitui um moralismo rígido e inflexível mas que a sua garantia é o próprio Deus cheio de misericórdia, que “não quer a morte do pecador mas que ele se converta e viva” (cf. Ez 18,23.32). Apresentamos os dados principais dessa situação propícia e salvífica, na qual ao dom se acrescenta o perdão, única esperança do homem pecador. O Antigo Testamento atesta amplamente a disposição de Deus ao perdão, o qual depois atinge seu cumprimento na missão de Jesus. 4.1. O perdão de Deus segundo o Antigo Testamento 81. Pecado e culpa, penitência e expiação, têm um papel importante na vida quotidiana do povo de Deus. Isso manifesta-se nos relatos bíblicos fundamentais sobre a origem do mal no mundo (Gn 2-4;6-9), sobre a rebelião de Israel (Jr 31; Ez 36) e sobre o reconhecimento do domínio de Deus por parte de toda a terra (Is 45,18-25). Um rico vocabulário de expressões para todo o campo de pecado e perdão e um sistema refinado de rituais de expiação mostram o mesmo fato. Não é fácil, porém, entender a dinâmica do processo com o qual o relacionamento entre Deus e seu povo é restaurado, segundo as suas dimensões antropológicas e teológicas. Elas, de fato, são muito diferentes dos nossos conceitos modernos. a. Dois pressupostos fundamentais Assinalamos dois importantes conceitos iniciais. Antes de tudo: culpa e perdão não são matéria de imputação jurídica e de quitação de dívidas. Trata-se, ao contrário, de realidades de fato. As más ações produzem uma distorção do cosmo. São contra a ordem da criação e podem ser contrabalançadas só mediante ações que restaurem a ordem do mundo. Em segundo lugar, esse conceito de uma conexão natural entre causa e efeito é indicativo do papel de Deus quanto ao perdão: ele não é um credor severo que põe em ordem as dívidas, mas o Criador benévolo que reconduz os seres humanos à sua condição de seres amados por ele e que repara os danos que tenham causado ao mundo. Essas duas premissas contrastam com a compreensão jurídica de pecado e perdão na nossa cultura. Deve-se, porém, levá-las em conta, pois caso contrário se perderia uma chave de acesso à proclamação da misericórdia de Deus. A compreensão ontológica da expiação reflete-se em algumas expressões metafóricas, como: Deus “para o fundo do mar lança os nossos pecados” (Mq 7,19), “lava o penitente do pecado” (Sl 51,4), “redime da culpa” (cf Sl 130,8). b. A tradição sacerdotal Uma teologia detalhada do perdão foi desenvolvida nos ambientes sacerdotais, especialmente na forma que se encontra nos livros do Levítico e de Ezequiel, e especialmente mediante a expressão “cobrir (kapper) os pecados”. O livro do Levítico apresenta a legislação para o culto referente às várias ofertas que correspondem às várias categorias de pecado e impureza (Lv 4-7). O grande rito é o do dia da Expiação, quando o bode para o SENHOR é imolado como sacrifício pelos pecados do povo e o bode para Azazel é despachado para o deserto, levando consigo as iniqüidades de Israel (Lv 16). A lei que se refere a essa cerimônia encontra-se exatamente no centro dos cinco livros de Moisés e regula a principal atividade cultual instituída para tornar possível a presença permanente do Senhor no meio do seu povo na tenda do deserto (cf. Ex 40). É fundamental para a tradição sacerdotal que os ritos de expiação não são apresentados como meios que obtêm a misericórdia de Deus, no sentido de que uma atividade humana possa dispor da sua vontade de perdoar ou até possa obrigá-lo ao perdão. Esses ritos representam antes o sinal objetivo do perdão do Senhor (sangue como penhor de vida, cf. Gn 9,4). A própria reconciliação, contudo, é pura iniciativa da benevolência transcendente do Senhor nos confrontos do pecador penitente, como explica o Levítico: “Porque nesse dia se fará a expiação por vós, para vos purificar. Diante do SENHOR sereis purificados de todos os vossos pecados” (Lv 16,30). c. Características da reconciliação Na perspectiva desse ensinamento sacerdotal deve-se compreender muitas afirmações que se encontram aqui e ali e se referem à reconciliação dos seres humanos com Deus. É exclusivamente o Senhor que perdoa pecados (Sl 130,8). A sua misericórdia abrange todo Israel (Ez 32,14), também a geração iníqua do deserto (Ex 34,6-7), a sua cidade, Jerusalém (Is 54,5-8) e também as outras nações (Jn 3,10). O perdão é sempre imerecido, pois provém da santidade de Deus, a qualidade que distingue o Senhor de todos os seres terrenos (Gn 8,21; Os 11,9). O perdão de Deus causa a renovação criativa (Sl 51,12-14; Ez 36,26-27) e traz consigo a vida (Ez 18,21-23). Esse perdão é sempre oferecido a Israel (Is 65,1-12) e pode ser tornado vão somente pela recusa do povo de voltar ao Senhor (Jr 18,8; Am 4,6-13). Segundo o decálogo, a paciência de Deus em relação aos pecadores é de tal modo estupenda que chega até à terceira e quarta geração, esperando que deixem as vias da maldade (Ex 20,5-6; Nm 14,18). Enfim, o seu perdão faz terminar todo castigo (Is 40,1-20; Jn 3,10), que não tem outro objetivo senão fazer retornar a ele os pecadores: “Acaso tenho prazer na morte do ímpio? – oráculo do SENHOR Deus. Não desejo antes que mude de conduta e viva?” (Ez 18,23; cf. Is 4). 4.2. O perdão de Deus segundo o Novo Testamento 82. Os escritos do Novo Testamento afirmam unanimemente como verdade central que Deus realizou o perdão através da pessoa e obra de Jesus. Exponhamos essa mensagem de um modo mais explícito no evangelho de Mateus e depois, mais brevemente, nos outros autores. a. Jesus, salvador dos pecados (Mateus) O evangelista Mateus reafirma de modo particular que a missão de Jesus consiste em salvar o seu povo dos seus pecados (1,21), chamar os pecadores (9,13), alcançar o perdão dos pecados (26,28). Antes do nascimento de Jesus, José é informado pelo anjo do Senhor sobre a situação de Maria e sobre sua própria missão, recebendo este encargo: “Tu lhe porás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo de seus pecados” (Mt 1,21). De um modo fundamental e programático, mediante o próprio nome do menino, é expressa a sua principal missão. Ao nome ‘Jesus’ (em hebraico, Yeshua ou Yehoshua) costuma-se atribuir o significado “O Senhor salva”. Aqui, o dom da salvação especifica-se como perdão dos pecados. No Sl 130,8, o salmista confessa: “Ele (Deus) vai redimir Israel de todas as suas culpas”. De agora em diante, Deus age e perdoa os pecados através da pessoa de Jesus. A vinda e a missão de Jesus é centrada sobre o perdão e atesta de modo irrefutável que Deus perdoa. Nos dois versículos que seguem, Mateus refere o cumprimento da Escritura que diz: “Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa ‘Deus conosco’” (1,22-23). Jesus liberta dos pecados, tira o que separa os homens de Deus e ao mesmo tempo efetua a renovada comunhão com Ele. No encontro com um paralítico, Jesus explicitamente realiza esta sua missão. Não cura imediatamente o enfermo, mas diz-lhe, com condescendência e ternura: “Coragem, filho, teus pecados estão perdoados” (Mt 9,2). Alguns escribas, ali presentes, tomam consciência da gravidade do sucedido e acusam Jesus, internamente, de ter blasfemado, de ter-se arrogado uma prerrogativa divina. Em reação a eles, Jesus insiste na sua autoridade e apresenta como confirmação a cura que vai realizar: “Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar pecados... (Mt 9,6). Com esse encontro estão relacionados o chamado do publicano Mateus (Mt 9,9) e o banquete de Jesus e de seus discípulos com muitos publicanos e pecadores. Diante do protesto dos fariseus, Jesus apresenta-se como médico e como expressão da misericórdia querida por Deus, definindo assim a sua missão: “De fato, não é a justos que vim chamar, mas a pecadores” (Mt 9,13). Também aqui, o fim do perdão, como Jesus o exprime na palavra familiar dirigida ao pecador enfermo, no chamado ao seguimento e no banquete comum, é a comunhão. Durante a última Ceia, enfim, dando o cálice aos discípulos, Jesus diz: “Bebei dele todos, pois este é o meu sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos, para remissão dos pecados” (Mt 26,28). Assim revela de que modo ele obtém a salvação do seu povo de seus pecados. Derramando seu sangue, isto é, sacrificando a própria vida, ele sanciona a nova e definitiva aliança e consegue o perdão dos pecados (cf. Hb 9,14). As ações que Jesus pede aos discípulos, isto é, comer do seu corpo e beber do seu sangue, são penhores da sua união com ele e, através dele, com Deus... união que se torna perfeita e imperecível com o banquete no reino do Pai (Mt 26,29). b. A missão redentora de Jesus em outros escritos do Novo Testamento 83. Acenamos brevemente ao evangelho de João, à carta aos romanos, à carta aos hebreus, e ao Apocalipse. Pode causar espanto o fato de que quase sempre, no início desses escritos, se ponha em relevo a missão de Jesus em relação ao perdão dos pecados. No primeiro encontro com Jesus, João Batista apresenta-o assim: “Eis o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo!” (Jo 1,29). O mundo, toda a humanidade, estão impregnados do pecado; Deus enviou Jesus a fim de que liberte o mundo do pecado. O motivo que causou o envio do Filho por parte do Pai é o seu amor pelo mundo pecador: “De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,16-17). Também no início da sua primeira carta, João constata: “O sangue de Jesus, seu Filho, purifica-nos de todo pecado” (1Jo 1,7) e continua: “Se reconhecemos os nossos pecados, então Deus mostra-se fiel e justo, para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que nunca pecamos, fazemos dele um mentiroso e sua palavra não está em nós” (1Jo 1,9-10). Paulo ocupa-se especialmente, na carta aos romanos, do perdão concedido por Deus e realizado por Jesus: “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus. E só podem ser justificados gratuitamente, pela graça de Deus, em virtude da redenção no Cristo Jesus. É ele que Deus destinou a ser, por seu próprio sangue, instrumento de expiação mediante a fé...” (Rm 3,23-25). Para todos, a fé em Jesus constitui o acesso ao perdão de seus pecados (cf Rm 3,26) e à reconciliação com Deus (cf Rm 5,11). Também segundo Paulo, o amor de Deus pelos pecadores é o motivo do dom de seu Filho: “A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). O início da carta aos hebreus descreve a posição do Filho através do qual Deus nos falou por último (Hb 1,1-4) e menciona a ação decisiva da sua missão: ele realizou “a purificação dos pecados” (Hb 1,3). Desse modo ressalta-se desde o início o que constitui o tema principal da carta. Na parte inicial do Apocalipse, Jesus Cristo é aclamado como “Aquele que nos ama, que por seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e que fez de nós reino e sacerdotes para seu Deus e Pai” (Ap 1,5). Isso repete-se na grande, solene, festiva e universal celebração dedicada ao Cordeiro, e exprime-se no canto novo: “Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste imolado, e com teu sangue adquiriste para Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação. Deles fizeste para o nosso Deus um reino e sacerdotes, e eles reinarão sobre a terra” (Ap 5,9-10). A singular festa e alegria é causada pelo fato de que o sacrifício de Jesus-cordeiro é o ato redentor e salvador por antonomásia que reconcilia a humanidade perdida com Deus, a reconduz da morte à vida e a transporta das trevas do desespero a um futuro feliz e luminoso na união com Jesus e com Deus. Recordemos, por fim, a experiência dos dois principais apóstolos, Pedro e Paulo. Ambos experimentaram um sério fracasso: Pedro, negando três vezes conhecer Jesus e ser seu discípulo (Mt 25,69-75 e paralelos); Paulo, como perseguidor dos que primeiro creram em Jesus (1Cor 15,9; Gl 1,13; Fl 3,5-6): ambos, profundamente conscientes da sua culpa. Ora, a Pedro (1Cor 15,5; Lc 24,34; Jo 21,15-19) e a Paulo (1Cor 9,1; 15,8) manifestou-se o Cristo ressuscitado. Ambos são pecadores agraciados. Ambos experimentaram o significado decisivo e vital do perdão para o pecador. O seu posterior anúncio do perdão de Deus mediante o Senhor Jesus, crucificado e ressuscitado, não é uma teoria ou palavra gratuita, mas é o testemunho da sua própria experiência. Conhecendo o perigo da perdição, eles receberam a reconciliação e tornaram-se as principais testemunhas do perdão divino na pessoa de Jesus. c. A mediação eclesial para a comunicação do perdão divino 84. No quadro mais amplo do poder confiado a Pedro (Mt 16,19) e aos outros discípulos responsáveis na Igreja (Mt 18,18), insere-se a missão de “perdoar os pecados”. Ela é apresentada no contexto da efusão do Espírito Santo, simbolizada por um gesto impressionante do Senhor ressuscitado que soprou sobre seus discípulos (Jo 20,22-23). Ali, no centro do evento pascal, nasce o que Paulo chama de “ministério da reconciliação” e que ele assim comenta: “Foi o próprio Deus que, em Cristo, reconciliou o mundo consigo, não levando em conta os delitos da humanidade, e foi ele que pôs em nós a palavra da reconciliação” (2Cor 5,19). Três sacramentos estão explicitamente a serviço da remissão dos pecados: o batismo (At 2,38; 22,16; Rm 6,1-11; Cl 2,12-14), o ministério do perdão (Jo 20,23) e, para os enfermos, a unção confiada aos “presbíteros” (Tg 5,13-19). 5. A meta escatológica, horizonte inspirador do agir moral 85. A meta escatológica é apresentada, no Novo Testamento, como o último grau de união com Deus que o ser humano é chamado a alcançar. Constitui, da parte de Deus, um dom que implica a sua transcendência e se realiza por meio de Cristo. Requer no ser humano a disponibilidade de aceitá-lo e de orientar todo o seu agir moral nesta vida terrestre dentro do horizonte da futura plenitude de vida, na união perfeita com Deus. Dessa meta encontramos indícios um pouco por toda parte no âmbito do Novo Testamento. Mas a união escatológica com Deus, como também a sua acolhida por parte do ser humano, ressaltam sobretudo em Paulo e no Apocalipse. 5.1. O reino realizado e Deus tudo em todos: a mensagem de Paulo 86. Paulo, se levarmos em conta sincronicamente todas as cartas que lhe são atribuídas, vê a meta última do ser humano como o êxito de um dinamismo de vida que, encaminhado com a primeira acolhida do Evangelho e com o batismo, se conclui com o “estar com Cristo”. a. O dom da vida eterna Desde a sua primeira implantação, a vida eterna doada é colocada por Paulo em relação com Cristo: “o dom de Deus é a vida eterna em Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 6,23). O relacionamento com Cristo é descrito como um penhor – de dependência e de participação – da ressurreição: “...como Cristo foi ressuscitado dos mortos pela ação gloriosa do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” (Rm 6,4). A participação na vida de ressuscitados realiza-se já agora: o cristão vive constantemente crescendo, no desenvolvimento da sua existência atual, e alcança a plenitude na fase escatológica. A propósito dessa vida que anima o cristão, há outro aspecto a ser sublinhado: a dependência do Espírito. O Espírito implanta no cristão a vida nova de Cristo, fá-la desenvolver, leva-a à sua plenitude. Como podemos configurar essa plenitude? Paulo oferece-nos, a propósito, diversos indícios significativos. Ele fala, por exemplo, de uma vida na incorruptibilidade, na glória, no poder, de um corpo espiritual em lugar da nossa situação pré-escatológica presente (1Cor 15,42-44). Sublinha que, ressuscitados, nós traremos “a imagem do Adão celeste” (1Cor 15,49). Outro texto de Paulo que nos desloca do presente para o futuro escatológico é a conclusão do “caminho do amor” (1Cor 12,31b—14,1a) que encontramos em 1Cor 13,8-13. O amor com que amamos agora “jamais acabará” (1Cor 13,8). No nível escatológico acabarão a fé e a esperança, mas o amor, devidamente aperfeiçoado, permanecerá e dará o tom a toda a vida escatológica. Mas temos ainda – a propósito da vida divina como participação na ressurreição de Cristo – um trecho particularmente sintético e significativo: trata-se de 1Cor 15,20-28. Depois de haver explicado nos versículos precedentes a relação irrenunciável entre a ressurreição de Cristo e a dos cristãos, segundo a qual existe uma única grande ressurreição, a de Cristo que se estende e se ramifica em forma de vida e vitalidade em cada um dos cristãos, Paulo preocupa-se agora em precisar alguns detalhes. Antes de tudo, na participação da ressurreição, há uma ordem na realização: primeiro Cristo, que, já ressuscitado, constitui como as primícias de uma colheita que está ainda amadurecendo. Mas, infalivelmente, depois de Cristo virão “aqueles que pertencem a Cristo” (1Cor 15,23). A participação plena na ressurreição por parte dos cristãos terá lugar “por ocasião da sua vinda” (1Cor 15,23), no momento do retorno conclusivo. Paulo, olhando para isso desde o seu presente, indica – usando um estilo apocalíptico – o que acontecerá no tempo intermediário. Haverá uma ação própria de Cristo dirigida ao estabelecimento do seu reino na história. Isso implicará, de uma parte, a superação de todos os elementos anti-reino, heterogêneos e hostis, que se terão concretizado na história, até que seja vencido “o último inimigo, a morte” (1Cor 15,26). Depois, Cristo ressuscitado apresentará a seu “Deus e Pai” (1Cor 15,24) o reino realizado, constituído, ao mesmo tempo, dele e de todos os seres humanos que participarão plenamente na sua ressurreição. Atingir-se-á então o ponto de chegada de toda a história da salvação: Deus, “tudo em todos” os seres humanos (1Cor 15,28), perfeitamente homogêneo com eles, assim como, já desde agora, é todo presente e homogêneo com Cristo ressuscitado. b. As implicações morais 87. Essa meta altíssima tem as suas implicações morais, que se refletem no agir cristão. Olhando para ela, o cristão deverá, antes de tudo, tomar consciência de ser, já agora, portador daquela vida que depois florescerá. Cristo, mediante a vida nova que lhe comunica, já desde agora está ressuscitando nele. O Espírito que possui, já lha dá e a organiza. Constitui “a garantia da nossa herança” (Ef 1,14), aquela que teremos quando alcançarmos a meta. Cada aumento de vida, cada crescimento de amor, constituem um passo nessa direção. O cristão, por conseguinte, deverá olhar para o seu fim último como para um ponto de referência inspirador. Entre o seu presente e a sua meta última, há uma continuidade de vida em crescimento. A vida de Cristo em desenvolvimento exigirá do cristão escolhas precisas, e Paulo não se cansa de acentuá-lo: “Considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, no Cristo Jesus” (Rm 6,11). E o desenvolvimento tende todo ao reino futuro que Cristo entregará ao Pai do qual o próprio Cristo fará parte. Mas a participação no reino futuro, longe de ser garantida, tem desde agora as suas exigências. Depois de haver enumerado as “obras da carne” (Gl 5,19-21), Paulo acrescenta: “Eu vos previno, como aliás já o fiz: os que praticam essas coisas não herdarão o reino de Deus” (Gl 5,21). Conclui-se daí que, olhando para seu futuro escatológico, o cristão crescerá cada dia na vida e no amor, mas deverá, ao mesmo tempo, guardar-se de todos os elementos anti-reino que podem corrompê-lo no caminho. 5.2. O ponto de chegada do Apocalipse: a reciprocidade com Cristo e com Deus 88. No Apocalipse, o ensinamento sobre a plenitude escatológica, particularmente acentuado, é apresentado de modo original. Aquilo que em Paulo é o reino realizado e “Deus tudo em todos”, é descrito aqui em termos antropológicos: uma cidade que se torna a esposa. E a cidade é a nova Jerusalém. Duas são as etapas dessa sua transformação. a. Noiva e esposa – a nova Jerusalém Na primeira etapa a cidade, ainda noiva, atravessa o limiar do noivado (Ap 21,1-8). Num contexto todo renovado pelos valores de Cristo – “um novo céu e uma nova terra” – Jerusalém “desce do céu, de Deus, vestida como uma noiva enfeitada para o seu esposo” (Ap 21,1-2). A preparação da noiva, agora pronta, implicou um crescimento gradual do seu “primeiro amor” (2,4), crescimento que a noiva realizou: quer acolhendo os imperativos de Cristo que a qualificavam sempre mais como reino (2,2-3), quer apresentando as “obras justas” (19,8) que soube realizar na história. Atravessado o limiar do noivado, a noiva torna-se a “mulher”. É a segunda etapa. O autor do Apocalipse exprime e inculca, com os melhores recursos do seu simbolismo, a situação nova que assim se determina (21,9—22,5). De um lado, a noiva tornada esposa é vista, sentida e ouvida como capaz de um amor paritético em relação a Cristo. Preparada pelo contacto com a transcendência de Deus no céu de onde desce, trazendo mesmo o toque de Deus que é amor, a nova Jerusalém aparece toda dirigida a Cristo, invadida como está pela sua novidade. Por outro lado, o próprio Cristo está como empenhado em dar à sua esposa o que de melhor ele possui: inunda-a de luz e lhe comunica o brilho da glória de Deus, “como o de uma pedra preciosíssima, como o brilho de um jaspe cristalino” (21,11). Faz dela uma cidade aberta a todos os povos, e sobre suas doze portas “doze anjos e os nomes das doze tribos de Israel”, enquanto seus fundamentos são “os doze apóstolos do Cordeiro” (21,13-14). Dá-lhe estabilidade, edifica-a integralmente segundo as dimensões do seu amor (cf. 21,16 e Ef 3,18-19). Sobretudo coloca-a em contacto direto com Deus (21,18), um contacto vivo e palpitante, simbolizado pela abundância das pedras preciosas (21,19). Inunda-a de “um rio de água vivificante, brilhante como o cristal, que brota do trono de Deus e do Cordeiro” (22,1). Tanto o Cristo Cordeiro como a sua esposa não poderiam dar-se um ao outro um dom recíproco maior. b. O reino de Deus realizado 89. Mas há ainda outro aspecto. Com a nova Jerusalém, “esposa do Cordeiro” (21,9), realiza-se plenamente “o reino de Deus e do seu Cristo (11,15). A conjunção entre nupcialidade e reino entusiasma o autor do Apocalipse, que o exprime numa das celebrações doxológicas mais solenes do livro (19,6-8): “Aleluia, o Senhor nosso Deus, o todo-poderoso, passou a reinar. Fiquemos alegres e contentes, e demos glória a Deus, porque chegou o tempo das núpcias do Cordeiro e sua esposa já está pronta: foi-lhe dado vestir-se com um linho brilhante e puro!” O reino, associado às núpcias escatológicas de Cristo-cordeiro é um reino agora realizado – não mais em realização – e é possuído num face a face inefável com Deus: “Eles verão a sua face, e o seu nome estará escrito em suas frontes... o Senhor Deus fará brilhar a sua luz sobre eles e reinarão por toda a eternidade” (22,4-5). Isso implica a plena realização da reciprocidade da aliança que passa integralmente através de Cristo e se realiza alcançando o nível da paridade nupcial. Nesse contexto, Cristo dá à sua esposa uma experiência direta de Deus, vivida na plena reciprocidade. Na Jerusalém nova não há necessidade de templo para facilitá-la: “o seu templo é o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro” (21,22). c. A cooperação responsável 90. O autor do Apocalipse, como já vimos, insiste na cooperação responsável do cristão para que este possa receber o dom escatológico. Por oito vezes colocou em relação a vitória, que o cristão deve alcançar colaborando com Cristo, com o prêmio que o próprio Cristo lhe dará “no fim” (2,26; cf. 2,7.11.17.26.28; 3,5.12.21). Em nome do Espírito são proclamados bem-aventurados aqueles que morrem no Senhor, porque “suas obras os acompanham” (14,13). E ainda, antes de mostrar-nos a nova Jerusalém, sublinha, com uma encenação impressionante, a avaliação judicial que terá lugar para todos os seres humanos “segundo as suas obras” (20,13). Para ter parte na Jerusalém celeste, requer-se o “vencer” – “o vencedor terá estas coisas em herança” (21,7) – superando as dificuldades pessoais e sobretudo cooperando com a vitória que Cristo ressuscitado está alcançando na história sobre o sistema anti-reino e anti-aliança. Sempre em relação explícita com a entrada na nova Jerusalém, são sublinhadas, no diálogo litúrgico conclusivo (22,6-22), por um lado a exigência, para o cristão, de uma purificação contínua: “Felizes os que lavam suas vestes” (22,14); por outro lado, a pena da exclusão, infligida aos maus (22,15). 5.3. Conclusão 91. As duas concepções – de Paulo e do Apocalipse – acabam por coincidir, apresentando ambas ao cristão uma perspectiva bipolar. Por um lado, deslocam com insistência o olhar do cristão do presente para o futuro, para a plenitude de vida que o espera. Por outro lado, chamam incessantemente a atenção para o presente e para o empenho constante requerido para que se realize, no futuro, aquela plenitude de vida.
ALGUNS CRITÉRIOS BÍBLICOS PARA A REFLEXÃO MORAL
92. A primeira parte deste documento propunha-se individuar os principais eixos antropológicos e teológicos que na Escritura fundamentam a reflexão moral e mostrar as principais conseqüências morais que daí derivam. A segunda parte procede de uma problemática atual. O homem de hoje, considerado quer individual quer coletivamente, é posto em confronto, cada dia, com problemas morais delicados que o desenvolvimento das ciências humanas, por um lado, e a mundialização das comunicações, por outro lado, colocam constantemente em discussão, ao ponto de que também crentes convictos têm a impressão de que algumas certezas de outrora estão anuladas. Pense-se apenas nos modos diversos de abordar a ética da violência, do terrorismo, da guerra, da imigração, da partilha das riquezas, do respeito dos recursos naturais, da vida, do trabalho, da sexualidade, das pesquisas no campo genético, da família ou da vida comunitária. Diante dessa complexa problemática, nos últimos decênios pode ter havido a tentação, em teologia moral, de marginalizar, em todo ou em parte, a Escritura. Que fazer quando a Bíblia não dá respostas completas? E como integrar os dados bíblicos, quando para elaborar um discurso moral sobre tais questões é preciso recorrer às luzes da reflexão teológica, da razão e da ciência? Este será agora o nosso projeto. Um projeto delicado, pelo fato de que o cânon da Escritura se apresenta como um conjunto complexo de textos inspirados: uma coleção de livros provenientes de autores e épocas muito diversificadas, exprimindo tendências teológicas multíplices, que afrontam ou expõem as questões morais de modos muito diferentes, às vezes no quadro de textos legislativos ou de discursos prescritivos, às vezes no quadro de relatos que têm por objeto a revelação do mistério da salvação ou apresentam exemplos concretos de vida moral, quer negativos quer positivos. No curso do tempo, além disso, assiste-se a uma diversa evolução e refinamento das sensibilidades e das motivações morais. Tudo isso mostra a necessidade de definir certos critérios metodológicos que permitam fazer referência à Sagrada Escritura em matéria moral, levando em conta ao mesmo tempo os conteúdos teológicos, a complexidade da sua composição literária e enfim a sua dimensão canônica. A esse propósito se levará em conta muito particularmente a releitura que o Novo Testamento fez do Antigo, aplicando o mais rigorosamente possível as categorias de continuidade, descontinuidade e progressão, que caracterizam as relações entre os dois Testamentos. 93. Na exposição, para esclarecer, na medida do possível, a partir da Escritura, as escolhas morais difíceis, distinguiremos dois critérios fundamentais (conformidade com a visão bíblica do ser humano e conformidade com o exemplo de Jesus) e seis outros critérios mais específicos (convergência, contraposição, progressão, dimensão comunitária, finalidade, discernimento). Em cada um dos casos enunciamos o critério e mostramos, à base de textos ou temas, como o critério se funda sobre ambos os Testamentos e sugere orientações para hoje. Os dois critérios fundamentais desenvolvem um duplo papel essencial. Antes de tudo, servem como ponte entre a primeira parte (eixos fundamentais) e a segunda (pistas metodológicas), e portanto asseguram a coerência global da argumentação. Depois, introduzem e englobam de certa maneira os seis critérios específicos. De fato, do conjunto da Escritura pode-se deduzir ao menos seis linhas de força para chegar a tomadas de posição moral sólidas, que se apóiam sobre a revelação bíblica: 1. uma abertura às diversas culturas e portanto um certo universalismo ético (convergência); 2. uma tomada de posição firme contra os valores incompatíveis (contraposição): 3. um processo de refinamento da consciência moral que se encontra no interior de cada um dos dois Testamentos e sobretudo de um para o outro (progressão); 4. uma retificação da tendência, em bom número das culturas atuais, a relegar as decisões morais só para a esfera subjetiva, individual (dimensão comunitária); 5. abertura a um futuro absoluto do mundo e da história, susceptível de assinalar em profundidade o objetivo e a motivação do agir moral (finalidade); 6. e finalmente uma determinação atenta, segundo os casos, do valor relativo ou absoluto dos princípios e preceitos morais da Escritura (discernimento). O leitor terá certamente entendido que não deve esperar que sejam enfrentadas e tratadas todas as questões morais que causam problema. Escolhemos um certo número de pontos que, sem serem exaustivos, exemplificam o modo ou os modos mais fecundos para esclarecer uma reflexão moral fundamentada na Escritura. Trata-se, afinal, de mostrar quais são os pontos que a revelação bíblica oferece para ajudar-nos, hoje, no processo delicado de um justo discernimento moral. 94. Para ilustrar os dois critérios gerais, servimo-nos dos dois textos-base colocados em evidência no início do nosso documento, o Decálogo e as Bem-aventuranças, em razão precisamente do seu caráter de fundamento, seja a nível literário seja a nível teológico. 1.1. Primeiro critério fundamental: Conformidade com a visão bíblica do ser humano 95. Pelo fato de que boa parte dos conteúdos éticos da Escritura pode ser encontrada em outras culturas e que os crentes não têm o monopólio das boas ações, tem-se afirmado que a moral bíblica não é propriamente original, e que as principais luzes úteis nesse campo devem ser procuradas na vertente da razão. 1.1.1. Explicação A argumentação não convence. Na verdade, segundo o Cardeal Ratzinger, “a originalidade da Sagrada Escritura em âmbito moral não consiste na exclusividade dos conteúdos propostos, mas sim na purificação, no discernimento e no amadurecimento daquilo que a cultura circunvizinha propunha”. A sua contribuição específica é dupla: 1. “O discernimento crítico do que é verdadeiramente humano, porque nos assimila a Deus, e a sua purificação de tudo o que é desumanizante”; 2. “a sua inserção num contexto novo de sentido, o da Aliança”. Em outras palavras, a sua novidade “consiste em assimilar a contribuição humana, mas transfigurando-a à luz divina da Revelação, que culmina em Cristo, oferecendo-nos assim o caminho autêntico da vida.” Originalidade, portanto, e também pertinência para o nosso tempo, onde a complexidade dos problemas e o vacilar de algumas certezas requerem um novo aprofundamento das fontes da fé. “De fato, sem Deus não se pode construir nenhuma ética. Também o Decálogo, que é sem dúvida o eixo moral da Sagrada Escritura, e que é tão importante no debate intercultural, não deve ser entendido antes de tudo como lei, mas antes como dom: é Evangelho, e pode-se compreendê-lo plenamente na perspectiva que culmina em Cristo; não é portanto uma realidade de preceitos definidos em si mesmos mas uma dinâmica aberta a um aprofundamento sempre maior.” (Il rinnovamento della teologia morale: prospettive del Vaticano II e di Veritatis Splendor, in Camminare nella luce: Prospettive della teologia morale a partire da Veritatis Splendor (ed. L. Melina e J. Noriega), Roma, PUL, 2004, 39-40 e 44-45). Efetivamente, a Bíblia oferece um horizonte precioso para esclarecer todas as questões morais, também aquelas que nela não encontram uma resposta direta e completa. Mais em particular, quando se trata de formular um juízo moral, devem ser discutidas antes de tudo duas questões: Determinada posição moral: 1. é conforme à teologia da criação, isto é, à visão do ser humano em toda a sua dignidade, enquanto “imagem de Deus” (Gn 1,26) em Cristo, que é, ele mesmo, num sentido infinitamente mais forte, “ícone do Deus invisível” (Cl 1,15)? 2. é conforme à teologia da Aliança, isto é, à visão do ser humano chamado, quer coletiva quer individualmente, a uma comunhão íntima com Deus e a uma colaboração eficaz com a construção de uma humanidade nova, que encontra o seu cumprimento em Cristo? 1.1.2. Dados bíblicos 96. Como aplicar, mais concretamente, esse critério geral? O Decálogo, espécie de fundamento da primeira lei, nos servirá de amostra. Já na primeira parte havíamos proposto o esboço de uma leitura “axiológica” desse texto fundador (isto é, em termos de valores positivos). Agora destacamos dois exemplos para mostrar em que sentido a Lei do Sinai abre um horizonte moral potencialmente rico, capaz de sustentar uma reflexão adaptada á amplitude da problemática moral contemporânea. Os dois valores escolhidos são a vida e o casal. a. A vida “Não matarás” (Ex 20,13; Dt 5,17). A partir da sua formulação negativa, a proibição implica um não-agir: não causar grave atentado à vida (aqui, no contexto, a vida humana). Jesus ampliará e refinará o campo da abstenção: não ferir “o próprio irmão” com a raiva ou palavras injuriosas (Mt 5,21-22). Pode-se, portanto, em certo sentido, matar o que há de mais precioso no ser humano sem revólver nem bombas nem arsênico! A língua pode tornar-se uma arma mortal (cf. Tg 3,8-10). E também o ódio (1Jo 3,15). b. O casal 97. “Não cometerás adultério” (Ex 20,14; Dt 5,18). O mandamento original visava principalmente um objetivo social: assegurar a estabilidade do clã e da família. Objetivo que – seria necessário precisá-lo? – não perdeu nada da sua atualidade e urgência. Também nesse caso Jesus alarga o alcance da proibição, chegando a excluir todo desejo, mesmo se ineficaz, de infidelidade conjugal, e a tornar quase inoperante o regulamento mosaico referente ao divórcio (Mt 5,27-32). 1.1.3. Orientações para hoje a. A vida 98. A transposição do preceito a um registro axiológico abre-o a perspectivas mais amplas. 1) Antes de tudo – vê-se isso já no discurso de Jesus – a transposição obriga a refinar o próprio conceito de “respeito à vida”. O valor em questão não diz respeito somente ao corpo; ele aplica-se também, na sua abertura programática, a tudo o que toca a dignidade humana, a integração social e o crescimento espiritual. 2) Mas também quando se refere ao plano biológico, ela previne o ser humano de qualquer tentação de arrogar-se um poder sobre a vida, seja a própria seja a dos outros. Por isso a Igreja entende o “não matarás” da Escritura como o apelo absoluto a não provocar voluntariamente a morte de um ser humano, quem quer que seja, embrião ou feto, pessoa com deficiência, enfermo em fase terminal, indivíduo considerado socialmente ou economicamente menos rentável. Na mesma linha explicam-se as sérias reservas que a Igreja faz ás manipulações genéticas. 3) No curso da história e com o desenvolvimento das civilizações, a Igreja também refinou as próprias posições morais referentes à pena de morte e à guerra, em nome de uma reverência pela vida humana que ela acalenta sem cessar meditando a Escritura, reverência que toma sempre mais a cor de um absoluto. O que subentende essas posições aparentemente radicais é sempre a mesma noção antropológica de base: a dignidade fundamental do ser humano criado à imagem de Deus. 4) Frente à problemática global da ecologia do planeta, o horizonte moral aberto pelo valor “respeito pela vida” poderia facilmente ultrapassar os interesses só da humanidade, chegando a fundamentar uma reflexão renovada sobre o equilíbrio das espécies animais e vegetais, com todas as nuanças possíveis. O relato bíblico das origens poderia oferecer o convite para isso. Se o casal protótipo, antes do pecado, vê confiadas a si quatro tarefas: ser fecundo, multiplicar-se, encher a terra, submetê-la, quando Deus lhe indica um regime vegetariano (Gn 1,28-29), de sua parte Noé, o novo Adão, que garante o repovoamento da terra após o dilúvio, não recebe mais senão as três primeiras tarefas, o que tende a relativizar o seu poder. E se Deus o autoriza a um regime de carne e peixe, impõe-lhe contudo que se abstenha do sangue, símbolo da vida (Gn 1,1-4). Essa ética do respeito pela vida se apóia de fato sobre um duplo tema de teologia bíblica: a “bondade” fundamental de toda a criação (Gn 1,4.10.12.18.21.25.31) e a ampliação da noção de Aliança de modo a incluir nela todos os seres vivos (Gn 9,12-16). No pensamento bíblico, o que é que explica, no fundo, semelhante respeito pela vida? Nem mais nem menos do que a sua origem divina. O dom da vida à humanidade é descrito simbolicamente como um gesto de “soprar” da parte de Deus (Gn 2,7). Mais ainda, esse “sopro incorruptível está em todas as coisas”, ele “enche o cosmo” (Sb 12,1; 1,7). b. O casal 99. Certamente a expressão do dever no negativo (evitar, abster-se, não fazer) não esgota o campo ético referente ao casal. O horizonte moral aberto pelo mandamento se exprimirá, entre outras coisas, em termos de responsabilidade pessoal, mútua, solidária. Por exemplo, toca a cada um dos cônjuges tomar a sério o dever de renovar constantemente o próprio compromisso inicial; a ambos, levar em conta a psicologia do outro, do seu ritmo, dos seus gostos, do seu caminho espiritual (1Pd 3,1-2.7), cultivar o respeito, praticar um para com o outro o amor-submissão (Ef 5,21-22.28.33), resolver os conflitos ou as divergências, desenvolver relações harmoniosas; e ao casal enquanto tal compete tomar decisões responsáveis em matéria de natalidade, de contribuição social e também de irradiação espiritual. De fato, a celebração ritual do casamento cristão implica essencialmente um projeto dinâmico, jamais completo uma vez por todas: tornar-se cada vez mais um casal sacramental, que testemunha e simboliza, no coração de um mundo de relações freqüentemente efêmeras ou superficiais a estabilidade, a irreversibilidade e a fecundidade do empenho de amor de Deus para com a humanidade, de Cristo para com a Igreja. Compreende-se que a Igreja, no seu compromisso de fidelidade à Palavra, tenha sempre exaltado a grandeza do casal homem-mulher, seja na sua dignidade fundamental de “imagem de Deus” (criação) seja na sua relação de mútuo compromisso diante de Deus, com Ele (aliança). Com a sua insistência constante e irredutível na importância e na santidade do casamento, a Igreja atua não tanto com a denúncia de licenças morais como com a defesa incansável e fervorosa de uma plenitude de sentido da realidade matrimonial, segundo o projeto de Deus. 1.2. Segundo critério fundamental: Conformidade com o exemplo de Jesus 1.2.1. Explicação do critério 100. O outro critério fundamental concentra-se ainda mais, por assim dizer, sobre o coração da moral propriamente cristã: a imitação de Jesus, modelo inigualável de perfeita coerência entre as palavras e a vida e de conformidade com a vontade de Deus. Não é preciso que retomemos ou resumamos o que se disse na primeira parte sobre a imitação e o seguimento de Cristo, temas importantíssimos para o nosso ponto de vista. Como Jesus é para os crentes o modelo por excelência do agir perfeito, o problema que se põe concretamente, em matéria de discernimento moral, é o seguinte: deve-se considerar o comportamento de Jesus como uma norma, um ideal mais ou menos inacessível, uma fonte de inspiração, ou um simples ponto de referência? 1.2.2. Dados bíblicos 101. Também aqui nos apoiamos num texto básico, que orienta e antecipa a proclamação da nova lei no primeiro evangelho. a. As bem-aventuranças (Mt 5,1-12) Desde o início, as bem-aventuranças situam a moralidade num horizonte radical. À maneira de paradoxo, elas afirmam a dignidade fundamental do ser humano sob os traços das pessoas mais desfavorecidas, que Deus defende de modo preferencial: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os perseguidos; esses são “filhos de Deus” (v. 9), herdeiros e cidadãos “do reino dos céus” (vv. 3 e 10). Ora, Jesus representa, em toda a sua radicalidade, o tipo do “pobre” (Mt 8,19; cf. 2Cor 8,9; Fl 2,6-8), do “manso e humilde” (Mt 11,29) e do “perseguido pela justiça”. b. A continuação do discurso (Mt 5,17—7,29) Evidentemente, não se pode ler as bem-aventuranças fazendo abstração do longo discurso que elas introduzem. Ele apresenta uma perspectiva de fundo sobre a vida moral e constitui uma espécie de paralelo ao Decálogo, malgrado a diferença de forma e de intenção. Na composição do primeiro evangelho trata-se do primeiro, mais longo e programático discurso de Jesus, que nos imerge imediatamente no coração do que significa ser um filho fiel de Deus no mundo. A idéia de uma “justiça que supera” (verbo perisseuein pleion) constitui de certa maneira o seu pano de fundo (Mt 5,20; cf. também 3,15; 5,6.10; 6,1.33; 23,23). Dessa justiça superior Jesus não só é o revelador mas também o modelo. O princípio de base é enunciado em 5,17-20. Na afirmação inicial vê-se um programa para todo o evangelho: “Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para cumprir.” A pessoa, o agir e o ensinamento de Jesus representam a plena revelação daquilo que Deus quis através da Lei e dos Profetas, e anunciam a presença iminente do Reino de Deus. De um certo ponto de vista, o longo discurso culmina na afirmação “Sede, portanto, perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (5,48). Assim, a idéia do homem criado “à imagem e semelhança de Deus” encontra-se restituída e transposta para um registro especificamente moral. O próprio Deus é modelo de todo o agir (téleios, “perfeito”, no sentido de “completo”, “acabado”). Daqui a exortação “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça” (6,33), e procurai fazer “a vontade de meu Pai que está nos céus” (7,21). Dessa perfeição moral, Cristo é o modelo perfeito (cf 19,16-22). 1.2.3 Orientações para hoje 102. Até que ponto é normativa a radicalidade que Jesus encarna em sua vida e na sua morte? 1. Por certo, não se pode tomar pretexto das bem-aventuranças para idealizar a miséria humana sob qualquer forma que seja, e ainda menos para encorajar, diante da perseguição, uma espécie de resignação passiva que encontraria sua única solução na expectativa do além. De uma parte, é verdade, a Igreja, no seguimento de Jesus, leva aos que sofrem uma palavra de conforto e um estímulo: reconstituindo-se o substrato semítico do termo “bem-aventurado”, encontra-se a idéia de “caminhar direito” (raiz ’shr hebraico), o que sugere que pobres e perseguidos estão já a caminho, no Reino e para o Reino. Por outro lado, no próprio texto das bem-aventuranças, isso não é separado de exigências morais, em termos de virtudes a praticar: retoma-se assim a idéia de “busca da pobreza”, com aquele sentido religioso e moral que o profeta Sofonias já dava a essa expressão (Sf 2,3). 2. A exortação a praticar uma justiça que supere a dos escribas e fariseus (cf. 5,20) implica que, doravante, em regime cristão, toda norma moral se situa no quadro dinâmico de uma relação filial. No discurso, Jesus insiste muito sobre essa relação e fala bem dezesseis vezes de Deus chamando-o de “Pai” do ponto de vista dos outros, e só no fim o chama pela primeira vez “o meu Pai que está nos céus” (7,21). Por exemplo, ele retoma as três expressões tradicionais da piedade judaica: esmola, oração, e jejum (6,1-18); em todo caso, a atitude do discípulo deve desabrochar de um relacionamento interior com Deus e evitar todo cálculo, toda busca de proveito ou de louvor humano. A continuação do discurso focaliza a atenção sobre o relacionamento de amor e de confiança entre Deus e o discípulo. Daí deriva a responsabilidade que incumbe ao discípulo de viver o evangelho. Quando isso não acontece, cria-se obstáculo à realidade fundamental da vida como é querida por Deus e ensinada por Jesus, e fica-se exposto a conseqüências desastrosas. Os textos relativos ao juízo são eles próprios advertências sobre os efeitos destrutivos provenientes de uma conduta má. Em particular, através de uma série de metáforas o leitor é confrontado, na sua escolha, com uma alternativa: porta larga ou estreita, caminho largo ou estreito, verdadeiros ou falsos profetas, árvore boa ou má, construtores de casas insensatos ou sábios (7,13-27). 3. De que modo o leitor cristão pode tomar sobre si o ensinamento moral específico e aparentemente radical do Sermão da montanha, a começar pelas bem-aventuranças? Na história do cristianismo têm sido levantadas sobre esse assunto duas questões fundamentais. Antes de tudo, a quem é dirigido o Sermão? A todos os cristãos ou só a uma porção escolhida? E como interpretar seus mandamentos? Na realidade, procurando imitar Jesus, os discípulos são incitados a adotar um modo de agir que reflita desde agora a realidade futura do Reino: manifestar compaixão, não revidar a violência, evitar a exploração sexual, empreender caminhos de reconciliação e de amor mesmo para com os próprios inimigos, são disposições e ações que refletem a própria “justiça” de Deus e caracterizam a vida nova a levar no seu Reino. Entre essas, a reconciliação, o perdão e o amor incondicionado ocupam uma posição central e oferecem uma orientação a toda a ética do Sermão (cf 23,34-40). Portanto, não se deve ver as instruções e o próprio exemplo de Jesus como ideais inacessíveis, mesmo se reflitam o que caracteriza os filhos e as filhas de Deus só na plenitude do Reino. As orientações dadas por Jesus têm o valor de verdadeiros imperativos morais: fornecem um horizonte de fundo, que conduz o discípulo a procurar e encontrar modos semelhantes para ajustar o próprio agir aos valores e à visão de fundo do evangelho, de maneira a viver melhor no mundo, na expectativa do Reino que vem. O discurso moral e o exemplo de Jesus estabelecem as bases teológicas e cristológicas da vida moral e encorajam os discípulos a viver de acordo com os valores do reino de Deus assim como Jesus os revela. 1.3. Conclusão sobre os critérios fundamentais 103. Quando, do ponto de vista da moral cristã, se trata de fazer um juízo sobre uma prática, convém perguntar-nos logo: até que ponto essa prática é compatível com a visão bíblica do ser humano? E até que ponto se inspira no exemplo de Jesus? 104. Percorrido esse caminho inicial, a aplicação dos critérios mais específicos, sempre a partir dos textos bíblicos escolhidos, deveria completar os contornos de uma metodologia útil para tratar problemas morais. A sistematização desses critérios fundamenta-se sobre as seguintes observações: 1. Convergência: a Bíblia manifesta uma abertura à moral natural no enunciado de um grande número de leis e orientações morais. 2. Contraposição: a Bíblia toma posição de modo muito claro para combater os contra-valores. 3. Progressão: a Bíblia atesta um refinamento da consciência sobre certos pontos da moralidade, antes de tudo no próprio interior do Antigo Testamento, e depois sobre a base do ensinamento de Jesus e sob o impacto do evento pascal. 4. Dimensão comunitária: a Bíblia acentua fortemente o alcance coletivo de toda a moral. 5. Finalidade: fundando a esperança no além sobre a expectativa do Reino (Antigo Testamento) e sobre o mistério pascal (Novo Testamento), a Bíblia fornece ao ser humano uma motivação insubstituível para tender para a perfeição moral. 6. Discernimento: enfim, a Bíblia enuncia princípios e oferece exemplos de moralidade que não têm todos o mesmo valor: daqui a necessidade de uma abordagem crítica. Já os dois textos-base que nos serviram precedentemente ilustram, a seu modo, os seis critérios metodológicos que serão objeto do desenvolvimento que segue. 1. Convergência. Alguns preceitos têm o seu equivalente em outras culturas da época. A “regra de ouro” (Mt 7,12), por exemplo, encontra-se, quer na formulação positiva quer na negativa, em muitas culturas. 2. Contraposição. Algumas práticas pagãs são denunciadas: por exemplo, as imagens esculpidas (Ex 20,4) ou as orações de palavreado (Mt 6,7). 3. Progressão. Todo o sermão de Jesus descreve a justiça maior, que leva a cumprimento a intenção e o espírito da Torá (cf. Mt 5,17) mediante uma mais profunda interioridade, mediante a integridade de pensamento e ação e mediante uma ação moral mais exigente. 4. Dimensão comunitária. Por certo, Jesus aperfeiçoa as perspectivas essencialmente coletivas da moral do Decálogo; mas também os preceitos que concernem a pessoa levam em definitivo a construir a comunidade; o próprio sofrimento suportado “por causa dele” é fator de coesão comunitária (Mt 5,11-12). 5. Finalidade. À escatologia terrestre do Decálogo (a promessa de “longos dias” em Ex 20,12) Jesus acrescenta como motivação de base de todo o agir humano a esperança no além (Mt 5,3-10; 6,19-21). 6. Discernimento. A justificação divergente do sábado, em termos cultuais em um caso (Ex 20,8-11) e em termos sócio-históricos no outro (Dt 5,12-15), abre a estrada a uma reflexão moral mais rica e nuançada sobre o repouso dominical e sobre o tempo. De outro ponto de vista, a invalidação do uso do divórcio (Mt 5,31-32), embora autorizado pela Torá, mostra bem a distinção a ser feita entre as leis perenes e aquelas que estão ligadas a uma cultura, um tempo, um espaço particular. Para cada um dos critérios permitimo-nos relacionar, com uma palavra-chave, quanto foi exposto: 1. Convergência: a sabedoria, enquanto virtude humana, potencialmente encontrada em todas as culturas. 2. Contraposição: a fé. 3. Progressão: a justiça, menos no sentido da teologia clássica que na sua acepção bíblica rica e dinâmica (hebraico tsedaqâ, grego dikaiosýnê), que implica busca da vontade de Deus e caminho de perfeição (teleiôsis). 4. Dimensão comunitária: o amor fraterno (agápê). 5. Finalidade: a esperança. 6. Discernimento: a prudência, que implica a necessidade de uma verificação do juízo moral, tanto objetivo, a partir da exegese e da tradição eclesial, quanto subjetivo, na base de uma consciência (syneidêsis) guiada pelo Espírito Santo. 2.1. Primeiro critério específico: A convergência 105. A Bíblia manifesta em muitos pontos uma convergência entre a sua moral e as leis e orientações morais dos povos vizinhos. As mesmas questões morais fundamentais foram levantadas pela tradição bíblica e também tratadas pelos filósofos e moralistas que não tinham acesso à revelação divina e às soluções por ela apresentadas. Muitas vezes encontra-se também uma convergência das respostas que são dadas a tais problemas dentro e fora da tradição bíblica. Aqui se pode falar de sabedoria natural, um valor substancialmente universal. O fato pode encorajar a Igreja de hoje a entrar em diálogo com a cultura moderna e com os sistemas morais de outras religiões ou de doutrinas filosóficas, numa comum busca de normas de comportamento em relação aos problemas modernos. 2.1.1. Dados bíblicos 106. Encontramos textos que mostram tal convergência em relação a aspectos da moral, seja no Antigo seja no Novo Testamento. Tais aspectos são: a origem do pecado e do mal, certas normas para o comportamento humano, considerações de sabedoria, exortações morais e listas de virtudes. a. A origem do pecado e do mal A fundamental posição bíblica sobre a dignidade humana e a inclinação humana ao pecado é exposta nos primeiros capítulos do Gênesis. São compartilhadas muitas pressuposições morais do ambiente antigo-oriental, que se encontram especialmente no poema épico mesopotâmico ‘Enuma Elis’. A influência exercida por esse poema manifesta-se no número relevante de seus testemunhos antigos. As crenças comuns incluem a de que o universo foi criado por uma divindade pessoal e que neste universo os seres humanos têm um lugar especial e um relacionamento privilegiado com a divindade. Em ambas as literaturas a situação humana é caracterizada pela incapacidade do ser humano de comportar-se coerentemente em relação aos ideais aceitos, e esse fato causa a morte. Os mitos do drama grego clássico são fortemente conscientes das falhas humanas, nas quais a tragédia deixa pouco espaço à esperança e ao perdão. As grandes tragédias clássicas descrevem as conseqüências inevitáveis e duradouras dessas faltas e da implacável vingança divina. As mesmas convicções são atestadas pelas inscrições funerárias gregas, nas quais domina, sem mitigação, o senso do fracasso e do absurdo da vida que foi vivida. Daí deriva uma análise pessimista da situação humana. A análise da natureza e condição humana, presente no início da Bíblia, atribui um significado diferente à existência humana. A esperança é relevante na concepção bíblica da natureza humana falível, dado que o Deus da revelação bíblica é um Deus que ama, perdoa e toma cuidado do mundo criado, e de quem todo ser humano é imagem e representante. Sem tentar dissimular ou escusar a inclinação humana ao pecado, esses capítulos dão um sentido positivo à moralidade, por causa da certeza sobre a intervenção e o perdão divinos. Embora a concepção judaica do mundo se exprima numa linguagem com dívidas mesopotâmicas, há em particular dois elementos bíblicos que faltam nos mitos mesopotâmicos. Trata-se do cuidado divino para com a humanidade e da responsabilidade humana pela continuidade da criação, responsabilidade que se exprime na tarefa de Adão, criado à imagem e semelhança de Deus. Na concepção mesopotâmica do mundo, os seres humanos têm a tarefa de servir ao beneplácito dos deuses, provendo-os de sacrifícios. b. As leis 107. Também as leis do Antigo Testamento (p. ex. Ex 20-23; Dt 12-26) encontram-se na grande tradição das leis do Antigo Oriente (p. ex. o Código de Hamurabi).. Especialmente a concordância de prescrições legais individuais é impressionante. A convicção de que lei e justiça, e sobretudo a proteção do fraco, são indispensáveis para toda vida comunitária, está na base da alta estima da qual gozava a lei na cultura do Antigo Oriente próximo. O Antigo Testamento não se dirige aos juízes ou aos reis que devem manter e fazer chegar á práxis aquela Justiça. O seu destinatário é cada membro do povo de Deus, que deve reconhecer que o bem comum, praticado em espírito de solidariedade, constitui o coração da vida comunitária. Não se encontra nada na Bíblia que corresponda a uma “Declaração dos direitos humanos”, porque as mesmas obrigações que são expressas em tal declaração são apresentadas não como direitos do que recebe mas como obrigações daquele que age. Primário não é tanto o direito de uma pessoa a determinado tratamento, mas sim o dever de cada indivíduo de tratar os outros de um modo tal que preste honra à dignidade humana que lhe foi dada por Deus, ao infinito valor que compete a cada pessoa humana aos olhos de Deus. As leis da Bíblia freqüentemente não são puros regulamentos legais, mas admoestações e instruções que fazem exigências maiores do que as que qualquer lei individual poderia jamais fazer (p. ex. Ex 23,4-5; Dt 21,15-17). As leis do Antigo Testamento encontram-se a meio caminho entre justiça e moralidade e sustentam a intenção de desenvolver na pessoa em relação com Deus uma consciência que constitui a base da vida comunitária. Proeminente, de modo particular, é a ênfase da convicção de que a dignidade e a independência do indivíduo diante de Deus não devem ser diminuídas por nenhuma escravidão humana (Ex 22,20-22; 23,11-12). Igualmente importante, e talvez mais importante que nos códigos legais do Antigo Oriente próximo, é a preocupação pelo pobre e o fraco. Ambos, tanto a Lei como a mensagem dos Profetas, insistem em dizer que seus interesses devem ser protegidos; o membro vulnerável do povo deve ser tratado não só com justiça mas com a mesma generosidade que Deus demonstrou para com Israel no Egito. c. A sabedoria 108. No período helenístico, o ensinamento moral bíblico abriu-se para aprender do mundo circunstante, em particular do ensinamento em provérbios e do movi mento da Sabedoria que se desenvolveu especialmente no Egito. Algumas coleções bíblicas de provérbios mostram uma estreita relação com a sabedoria de Amenemope e Ptah-Hotep, especialmente em matéria de respeito e proteção para o débil e vulnerável (cf. Pr 22,17-24). Todavia, embora pareça que as conclusões sejam obtidas pelo raciocínio humano, Israel é muito consciente de que a origem de toda sabedoria é Deus (Jó 28; Eclo 24). Ben Sirá, em particular, alcança uma integração da Torá com a sabedoria humana, porque o escriba “no seu ensino exporá publicamente a instrução, e se gloriará na Lei da aliança do Senhor” (Eclo 39,8). Também Israel não está isento da desilusão e do questionamento das soluções convencionais de problemas como a prosperidade do malvado e a finalidade da morte, que são características da era helenista (Jó, Ecl 3,18-22). d. Paulo e os filósofos do seu ambiente 109. O valor da lei natural, ou antes, da capacidade da consciência humana de distinguir entre o que deveria ser feito e o que não o deveria, é explicitamente reconhecido e valorizado em Rm 2,14-15. Por isso não é surpreendente o fato de que o córpus Paulino, não obstante o juízo negativo sobre a moral pagã (p. ex. Ef 4,17-32), integra no seu ensinamento alguns “tópoi” (princípios recorrentes) comuns entre os filósofos e os mestres da moral da época. O mais conhecido desses “tópoi”, tomado originariamente da “Medéia” de Eurípedes, ocorre em Rm 7,16-24. Há paralelos estritos em Ovídio, “Metamorfoses”, 7,20-21 e (um pouco posterior a Paulo), em Epíteto (“Colóquios” 2,17-19) e concerne à escravidão dos seres humanos em relação a seus hábitos e paixões e à sua falta de verdadeira liberdade. Além disso, um certo número de princípios e exortações de Paulo assemelha-se aos conselhos positivos e negativos das escolas filosóficas contemporâneas do mundo grego. As semelhanças literais indicam um empréstimo literário, rigorosamente demonstrado em Gl 6,1-10, mas a mesma coisa vale para algumas outras passagens paulinas (p. ex. 1Cor 5,1). Embora não se possa falar de plágio ou da pertença de Paulo a alguma escola filosófica, muitas das suas posições e exortações são vizinhas às da Stoá. Como os filósofos do seu tempo (especialmente os estóicos), Paulo ensina que o comportamento moral tem necessidade do domínio das paixões. A luta contra as paixões não é absolutamente um tema inventado pelo Novo Testamento ou por Paulo, mas constitui um ‘tópos’ do ensinamento moral contemporâneo. De modo semelhante, o discurso no Areópago em At 17,22-31 apresenta Paulo utilizando livremente idéias estóicas ou, que seja, da filosofia popular grega, citando o poeta cilício Arato para mostrar que Deus está próximo dos seres humanos. O mesmo vale para as cartas paulinas, que contêm listas inteiras de virtudes reconhecidas e louvadas no mundo circunstante, listas que têm o seu equivalente junto aos moralistas contemporâneos e elencam simplicidade, moderação, justiça, paciência, perseverança, respeito, honestidade. A originalidade de Paulo consiste na afirmação de que só o Espírito pode vir em socorro da nossa fraqueza (Rm 8,3-4.26). Embora para ele existam pontos firmes da moral, necessários para quem quer entrar no reino de Deus (cf. Rm 1,18-32; 1Cor 5,11; 6,9-10; Gl 5,19-21), Paulo entende que não é necessário um código externo para aqueles que obtêm o fruto do Espírito, radicalmente contrário às obras da carne (Gl 5,16-18). O cristão, cuja vida com Cristo é escondida em Deus (Cl 3,3; cf. Fl 2,5), é conduzido pelo Espírito: “Se vivemos pelo Espírito, procedamos também de acordo com o Espírito” (Gl 5,25; Rm 8,14). Também a instrução dada por Paulo é percebida como proveniente do Espírito: “Acho que também eu tenho o Espírito de Deus” (1Cor 7,40; cf 7,25). 2.1.2. Orientações para hoje 110. A situação atual é caracterizada por progressos sempre maiores das ciências naturais e por uma extensão imensa do poder e das possibilidades do agir humano. As ciências humanas aumentam continuamente o conhecimento dos indivíduos e das sociedades humanas. Os meios de comunicação favorecem a globalização, uma sempre maior conexão e interdependência entre todas as partes do planeta. Essa situação traz consigo grandes problemas mas também grandes possibilidades para a convivência e a sobrevivência humanas. Nas sociedades modernas há, de fato, muitas idéias, sensibilidades, desejos, propostas, movimentos, grupos que se empenham e exercem pressão, tentativas para encontrar soluções dos problemas e administrar de modo justo as possibilidades presentes. Os cristãos vivem junto com seus contemporâneos nessa situação e são co-responsáveis com os outros por encontrar justas soluções. A Igreja encontra-se em contínuo diálogo com a complexa cultura moderna e participa na busca de normas justas para a gestão da presente situação. Mencionemos alguns campos típicos: 1. A crescente sensibilidade pelos direitos humanos conduziu primeiro à abolição da escravatura, depois a um vivo senso pela igualdade das raças humanas e defende a superação de toda forma de discriminação. 2. A preocupação pelo desenvolvimento e a proliferação de armas e instrumentos de destruição de massa impele a procurar uma reformulação da moral dos conflitos e da guerra e exige um intenso empenho pela paz. 3. A sensibilidade pela igual dignidade dos sexos exige uma severa verificação dos condicionamentos a que estão submetidos os seus papéis, por causa das concepções de muitas culturas, mesmo contemporâneas. 4. O poder técnico humano, baseado nas descobertas das ciências naturais, tornou possível um uso e abuso dos recursos naturais, antes inconcebível. A grande diferença entre os povos em relação ao seu poder econômico, científico, técnico, político, militar, conduziu a uma maciça desigualdade de participação no uso dos recursos naturais. Existe uma crescente sensibilidade pelos problemas de ecologia e de justiça que daí derivam. Percebe-se a necessidade de um forte empenho pelo cuidado com a natureza, que constitui o patrimônio comum de toda a humanidade, e por uma justa participação de todos os povos nesse patrimônio comum. A Bíblia não oferece respostas imediatas e prontas para resolver esses e outros problemas. Mas a sua mensagem sobre Deus Criador de tudo e de todos, sobre a responsabilidade humana pela criação, sobre a dignidade de cada pessoa humana, sobre o cuidado especial para com os pobres etc, capacita os cristãos para uma ativa e frutuosa participação na procura comum, com o objetivo de encontrar soluções adequadas aos problemas que surgem. 2.2. Segundo critério específico: a contraposição 111. A Bíblia opõe-se de modo claro a certas normas ou costumes praticados por sociedades, grupos ou indivíduos. Essa recusa é determinada no Antigo Testamento pela fé no SENHOR, pela fidelidade à aliança com a qual o SENHOR uniu a si de modo singular o povo de Israel, e no Novo Testamento pela fé em Jesus Cristo, Filho de Deus, em cuja encarnação Deus uniu a si de modo definitivo toda a humanidade. 2.2.1. Dados bíblicos 112. O Decálogo, cujas prescrições dizem quase exclusivamente o que não se deve fazer, opõe-se a uma série de ações. Depois da sua auto-apresentação, Deus diz com grande ênfase: “Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem esculpida nem figura alguma... Não te prostrarás diante dos ídolos, nem lhes prestarás culto. Pois eu sou o SENHOR, teu Deus, um Deus ciumento...” (Ex 20,3-5). Numerosos termos são usados no curso da Bíblia para designar essas realidades como pecado. No ensinamento dos profetas torna-se pecado uma realidade bem concreta, por exemplo: violência, furto, injustiça, exploração, fraude, calúnia etc. (cf. Am 2,6-8; Os 4,2; Mq 2,1-2; Jr 6,13; Ez 18,6-8). Na literatura paulina, como pecados específicos, são assinalados: mentira, avidez, ciúme, brigas, embriaguez, luxúria, inveja etc (cf. Rm 1,29-31; 1Cor 5,10; 2Cor 12,20; Gl 5,19-21). O pecado é essencialmente visto como violação de relações pessoais, que colocam a pessoa contra Deus, mas é visto também como violação da dignidade e dos direitos das outras pessoas. No centro, porém, está a luta contra a infidelidade para com o SENHOR, Deus de Israel, a luta contra falsas concepções de Deus que se exprimem na idolatria, isto é, no culto prestado a outros deuses. Essa luta manifesta-se na Lei, é central para a atividade dos profetas, está presente também no período pós-exílico. A tarefa principal de Jesus, de sua parte, é a de revelar a verdadeira face de Deus (Jo 1,18). A luta contra a apostasia de Deus e contra a preferência de outros valores supremos está também presente em Paulo e no Apocalipse. a. A luta dos profetas contra a idolatria 113. Na terra de Canaã, o povo de Israel era confrontado com o culto de outros deuses. A religião de Canaã era cosmológica, enquanto centrada na relação entre a ordem divina do universo e a resposta humana. Os cananeus veneravam deuses que eram pouco mais que personificações das forças naturais e cujo culto era ligado a uma mitologia sofisticada e com ritos destinados a garantir a fertilidade da terra, dos animais e dos seres humanos. Especialmente esses ritos de fertilidade foram condenados pela Lei e pelos profetas. O Deus de Israel, por outro lado, não era intra-cósmico mas acima e além de todas as forças naturais. O enoteísmo era capaz de aceitar, por um tempo, a existência de outros deuses. Todavia, durante o Exílio, tornou-se evidente que os deuses pagãos eram nada, e dessa forma somente o SENHOR foi considerado o único verdadeiro Deus (monoteísmo radical). Parece que a idolatria estava bastante difundida entre o povo durante o reino de Acab (1Rs 16,29-34). Em 1Rs 17-19, Elias é apresentado como o restaurador da fé mosaica, quando o culto de Baal tinha conquistado o reino do norte. Numa cena dramática sobre o monte Carmelo entre Elias e os profetas de Baal (1Rs 18,20-40), Elias condena o comportamento ambíguo do povo e exige a lealdade exclusiva para o SENHOR. Também Oséias constata que a causa fundamental da agitação social e política é a medida ampla com a qual as práticas religiosas cananéias se infiltraram no culto israelita. Os israelitas haviam misturado no seu culto elementos do culto da fertilidade de Baal (Os 4,7-14; 10,1-2; 13,1-3). A corrupção do culto coincide com intrigas e traições no palácio real e nos caminhos (Os 7,1-17; 8,4-7) e com o colapso dos padrões morais (Os 4,1-3). A idolatria é chamada pelo profeta de prostituição (Os 1-2; 5,4). Os profetas canônicos desenvolvem uma opinião comum nesse assunto: o culto de divindades de produção própria, isto é, deuses que servem somente aos interesses de seus devotos, caminha de par em par com a degeneração da moralidade pública e privada (Am 2,4-8; Is 1,21-31; Jr 7,1-15; Ez 22,1-4). O ensinamento social da Igreja pode ser considerado nessa mesma linha, pois ela sempre sustentou que os sistemas sócio-econômicos que reivindicam autoridade absoluta e subordinam o valor transcendente dos seres humanos, criados à imagem de Deus, a ideologias de grupo, não podem produzir outra coisa senão o desmoronamento da civilização. Parece que o exílio constitui uma virada na atitude de Israel em relação à idolatria. Os exilados, confrontados com o culto politeísta de seus senhores, compreendiam que somente o SENHOR é o Criador e Senhor de tudo (Is 40,12-18.21-26). b. Contra a imposição do culto pagão 114. Durante o tempo dos Macabeus verificou-se um confronto entre a religião tradicional judaica e o helenismo, quando Antíoco IV empreendeu uma política mais agressiva que seus predecessores para difundir a cultura helenista pagã (167-164 aC). Tratava-se da própria sobrevivência do judaísmo e da sua fé no SENHOR. Ora, isso provocou uma dupla reação: uma revolução armada (os dois livros dos Macabeus) e uma resistência passiva. O livro de Daniel foi escrito em favor dessa última corrente, para encorajar a perseverança na perseguição. O livro da Sabedoria responde à mentalidade que prevalecia no mundo helenista imediatamente antes da era cristã. Foi escrito para judeus da diáspora, para providenciar-lhes uma defesa contra a influência sedutora da filosofia e religião helenista e também contra os novos cultos que se multiplicavam em Alexandria naquele tempo. A culpa dos adoradores da natureza consiste em sua recusa de reconhecer Deus, o Criador, nas obras da criação e na sua beleza. Na sua busca de Deus não conseguem dar o último passo (Sb 13,1-9). Conseqüências da idolatria são os cultos dos mistérios que trazem consigo a sua punição (14,22—15,6). Isso prova a total estupidez da veneração dos ídolos, que se encontra em total contraste com o atrativo dos milagres realizados por Deus em favor do seu povo. c. A oposição de Paulo ao culto pagão 115. O cristianismo teve as suas origens num judaísmo amplamente purificado da idolatria. No seu processo de expansão, ele entrou em confronto com o paganismo do império romano, no qual havia uma grande variedade de cultos religiosos e também o culto do Imperador. Paulo foi confrontado com a idolatria em Éfeso (At 19,24-41) e trata dela e de suas conseqüências em Rm 1,18-32. Baseando-se nas críticas do judaísmo helenista (Sb 13-15), ele apresenta uma polêmica tradicional contra o mundo pagão antes de introduzir seu interlocutor judeu (2,1—3,20), para mostrar que ninguém, nem pagão nem judeu, é justo diante de Deus sem a fé em Jesus Cristo. A auto-revelação de Deus mediante a criação deveria conduzir as pessoas à apropriada resposta de adoração e agradecimento. A recusa intencional de fazê-lo torna vão o seu pensamento e tenebrosos os seus corações, conduzindo-os a uma falsa presunção de sabedoria e à corrupção do culto verdadeiro mediante a fabricação e veneração de imagens das criaturas. Há um nexo entre a prática da idolatria e a depravação sexual, que desonra o corpo, instrumento de ação, união e comunicação entre as pessoas. Um tal comportamento faz desaparecer a distinção entre o papel dos sexos, contrariamente ao plano do Criador. A pena na qual se incorre é o desejo incontrolável de continuar em tal comportamento depravado. A lista dos vícios, compilada por Paulo, compreende as relações sociais mais amplas e mostra a corrupção ao nível individual (Rm 1,24), interpessoal (1,26-27) e mais amplamente social (1,29-31), corrupção que perpassa e envenena a totalidade da vida humana. A persistência no pecado, e a aprovação que se lhe dá, mostram como, para muitas pessoas, tornou-se ‘normal’ e aceitável esse comportamento que conduz inevitavelmente ao afastamento de Deus. d. A oposição do Apocalipse ao sistema demoníaco, anti-Deus 116. O livro do Apocalipse apresenta dois grandes sistemas atuantes no mundo: o reino de Deus, centralizado em Jesus e nos seus seguidores, e o anti-reino de Satanás, sistema difundido em todo o império romano. Os cristãos, portanto, vivem o seu compromisso com Jesus em meio a um sistema terrestre que é demoníaco, invade tudo e é contra Deus. Esse sistema está concretizado na cidade de Roma, com o culto prestado ao Imperador, e difunde-se em todo o seu vasto império. Enquanto o Imperador representa os deuses e requer ser adorado, utiliza o aparelho estatal e o culto imperial para difundir a sua propaganda demoníaca, em contraste com Deus em todo o império. Isso está expresso de modo simbólico na “fera que sobe do mar” (Ap 13,1), na “fera que sobe da terra” (13,11) e nos “reis da terra” (17,2.18; 18,3.9). A sua obra está concentrada e simbolizada na cidade de Babilônia (17,1-7). O Apocalipse 17-18 descreve a riqueza e o luxo de Babilônia (Roma), condenada à destruição. A cidade simboliza todo um modo de viver pagão (17,3-6) em total contraste com os valores do reino, e o resultado será que os cristãos pagam com a vida pelo seu testemunho (17,6). A cidade é caracterizada pela auto-suficiência (18,7); trata-se de uma sociedade de consumismo, que depende do comércio, e na qual se encontra toda forma de luxo, mas a preço da difusão da escravidão (18,11-13.22-23). Ela age agressivamente contra Jesus e contra os que lhe pertencem (17,14). Não obstante a sua celebridade, essa cidade está condenada por Deus e cairá de repente. A sua destruição é apresentada como um drama litúrgico (18,9-24), através das lamentações dos reis, dos negociantes e dos marinheiros, acentuando a sua queda dramática. Os cristãos são convidados a “sair dela” (18,4) para não participarem nos seus crimes e na sua punição; eles são exortados a distanciar-se do mundo mau que os circunda e têm necessidade de “sabedoria” para sugerir uma perspectiva positiva (cf 17,7.7). Alegram-se quando vêem a vitória de Deus sobre seus inimigos e contemplam, enfim, a desolação da cidade arruinada (18,20-23). Essa mensagem paradigmática pode ser aplicada a todos os cristãos em situações semelhantes, e eles são exortados a defender-se contra uma tal insidiosa pressão que invade tudo. Isso requer a capacidade de ler os sinais dos tempos e de reconhecer “o número da Fera” (13,18), na certa esperança de que todos esses regimes demoníacos estão condenados à destruição. Somente assim os cristãos serão capazes de fazer escolhas adequadas e planejar um modo de agir maduro e responsável. 2.2.2. Orientações para hoje 117. Os comportamentos equivocados de hoje, que requerem uma clara e decidida tomada de posição, não se manifestam como idolatria enquanto veneração de imagens e estátuas, mas como idolatria de si mesmos, quer se trate dos indivíduos quer de classes sociais ou dos Estados. A liberdade do indivíduo, total enquanto possível, ou o poder todo-abrangente do Estado, são considerados valores supremos. Essas atitudes são descritas como secularismo, capitalismo, materialismo, consumismo, individualismo, hedonismo, totalitarismo etc. Comum a esses ‘ismos’ é o fato de que concebem a vida humana de um modo imanentista, reduzido ao mundo atual e, sufocando a transcendência, prescindem de Deus, negando-o ou deixando-o de lado, e não o reconhecem como origem de tudo e como fim de tudo. Tal esquecimento e negligência em relação a Deus devem ser desmascarados e tornados conscientes. a. Carências modernas Embora as sociedades democráticas ocidentais tenham muitos elementos positivos no campo cultural, econômico e político, contudo têm também graves defeitos. Ufanando-se do direito da liberdade mais completa, as pessoas pretendem exercer um direito ao aborto, à eutanásia, à ilimitada experimentação genética, às uniões homossexuais, e comportam-se como artífices independentes do próprio ser. A avidez consumista, amplamente difundida, muitas vezes só pode ser satisfeita mediante a exploração de pessoas e povos mais fracos. A busca paroxística do lucro, sustentada pela moderna tecnologia, dá origem a um abuso desenfreado dos recursos naturais e a uma, pelo menos indireta, opressão dos outros. Enquanto o mundo ocidental continua a gozar de um alto padrão de vida, essa prosperidade mantém-se às custas da pobreza da maioria da população mundial. b. Tendências totalitaristas 118. Teologias sobre as relações Igreja/Estado, na tradição, basearam-se quase exclusivamente em Romanos 13,1-7 (cf. 1Tm 2,1-2; Tt 3,1; 1Pd 2,13-17), e até governos autocráticos exigiam obediência referindo-se a esse texto. Paulo não faz outra coisa senão uma constatação geral sobre a autoridade legítima, fundamentando-se na convicção de que Deus deseja ordem, não anarquia e caos, no interior das sociedades. Também os cristãos dependem da proteção do Estado e de uma ampla série de serviços, partilhando com ele muitos valores, e não podem subtrair-se à sua responsabilidade civil e à participação na vida social. Entretanto, depois de um século no qual regimes totalitários devastaram continentes e trucidaram milhões de pessoas, essa concepção da relação com o Estado deve ser completada pelo modo como o Apocalipse descreve o influxo demoníaco de um Estado que se coloca no lugar de Deus e pretende todo o poder para si mesmo. Um Estado assim orienta-se conforme valores e atitudes que estão em contradição com o Evangelho. Coloca seus súbditos sob pressão e exige um conformismo total, deporta aqueles que se recusam a conformar-se, ou mata-os. Os cristãos são chamados a ser “sábios”, para poderem ler os sinais dos tempos e poderem criticar ou desmascarar a verdadeira realidade de um Estado que se torna servo do Demoníaco, e mesmo de um estilo de vida luxuoso à custa dos outros. São chamados a praticar a política, a economia, o comércio, à luz do Evangelho e a examinar sob essa luz os projetos concretos para o funcionamento da sociedade. Porque os cristãos não podem sair do tempo em que vivem, devem adquirir uma identidade própria que os torne capazes de viver a sua fé em paciente perseverança e testemunho profético. São também convidados a desenvolver maneiras de resistência que os tornem capazes de opor-se e de pregar o Evangelho, afrontando as potências demoníacas que agem através das instituições civis (cf. Ef 6,10-20) e influem sobre o mundo de hoje. c. Auto-suficiência ilusória 119. Na base das ideologias está a vontade humana que aspira à posse de um poder sem limites. Essa vontade está radicada na recusa de reconhecer a condição de criatura em dependência de Deus e na revolta contra Deus, e procura realizar com muita determinação uma ilusória transformação da existência humana, aqui e agora. Em última análise, não se trata de aspirações econômicas, políticas ou científicas, mas da vontade de dispor autonomamente de si mesmos e do próprio destino e de realizar um paraíso terrestre que conduzirá à era final de felicidade universal. Essa aura de expectativa escatológica pode explicar a ilusão sempre mais difundida de que os seres humanos possam por si mesmos prover à sua ordem moral e política, numa comunidade secular na qual Deus é sistematicamente excluído ou ao menos deixado de lado. Embora essa ideologia exerça ainda um fascínio intelectual e continue a ter influência política, torna-se sempre mais evidente que o futuro não pode reservar-nos um ilimitado progresso tecnológico, industrial, social e político. 2.3. Terceiro critério específico: a Progressão 120. A Bíblia atesta um refinamento da consciência em relação a certas questões morais. Tal progressão verifica-se em Israel graças a uma longa reflexão sobre a experiência do Exílio e, em algumas tradições, sobre a experiência da Diáspora, chegando à perfeição sob o influxo do ensinamento de Jesus e do seu mistério pascal. Depois do retorno de Jesus ao Pai, o Espírito Santo acompanha os discípulos no esforço por viverem o seu ensinamento em circunstâncias novas (Jo 14,25-26). O critério da progressão convida os crentes a procurarem, no aprofundamento de cada questão moral, a máxima conformidade à “justiça superior” do Reino, como Jesus estabeleceu os seus contornos (Mt 5,20). 2.3.1. Dados bíblicos 121. Como a revelação, também a moral bíblica tem um caráter gradual e histórico: como já aconteceu para o conhecimento de Deus em geral, assim também para o conhecimento da vontade de Deus se verifica uma progressão. Exemplos concretos desse fato Jesus mostra-os nas chamadas antíteses do Sermão da montanha: examinaremos aquelas que se referem a um conflito com o próximo (Mt 5,38-42) e à moral matrimonial (Mt 5,31-32). Outro exemplo são as diversas formas do culto a Deus, cujo escopo principal é o de manter a comunhão salvífica com Deus (cf. Jo 4,19-26). a. O desenvolvimento da moral bíblica A revelação bíblica tem lugar no quadro da história, e isto vale também, evidentemente, para a moral revelada na Bíblia. Deus revela-se a si mesmo e ensina os seres humanos a caminharem nos seus caminhos. Ele escolhe Abraão e convida-o a caminhar; escolhe a seguir Moisés e dá-lhe a missão de formar uma nação dos descendentes de Abraão; escolhe e envia, a seguir, profetas e, por último, envia “seu próprio Filho” (Mt 21,37; Mc 12,6). Cada enviado transmite, em determinada fase da história da salvação, o chamado de Deus, reunindo um povo para Deus e instruindo-o sobre Deus e sobre o modo de corresponder dignamente ao seu chamado (cf. Ef 4,1; Fl 1,27; 1Ts 2,12). A revelação dessa moral verifica-se num desenvolvimento gradual e no diálogo entre Deus e o seu povo. Por isso, o ensinamento moral da Bíblia não pode ser reduzido unicamente a uma série de princípios ou a um código de leis casuístas. Os textos bíblicos não podem ser tratados como páginas de um sistema moral. Devem ser vistos, antes, de modo dinâmico, à luz crescente da revelação. Deus entra no mundo e se revela sempre mais, dirige-se às pessoas e as desafia a entenderem mais profundamente a sua vontade e as habilita a segui-lo sempre mais de perto. Essa luz alcança o zênite com a vinda de Cristo, que confirmou o ensinamento de Moisés e dos profetas (Mt 22,34-40), e instruiu os seus discípulos e a humanidade inteira com sua própria autoridade (Mt 28,19-20). Na luz da plenitude da revelação trazida por Cristo, os cristãos podem compreender o caráter fecundo da revelação anterior. O que é latente na economia antiga, torna-se para nós evidente na última fase da revelação, quando a luz do Cristo ressuscitado ilumina as intenções das revelações precedentes de Deus. Assim, deciframos a mensagem moral do Antigo Testamento de maneira definitiva na plenitude do contexto do Novo Testamento. Esse processo é guiado e assistido pelo Espírito Santo, que conduz os discípulos de Jesus à verdade plena (Jo 16,13). Começando com Abraão, que deve deixar a sua pátria (Gn 12,1), e com o povo que deve deixar o Egito e atravessar o deserto, e assim ao longo da história do povo de Israel e da humanidade, a gradual revelação de Deus e da sua vontade se transforma para os homens numa “viagem”. O significado de “caminhar” transcende um movimento exclusivamente físico e se torna símbolo de uma vida de conversão que acolhe docilmente o chamado de Deus, apreende a sua vontade e conforma gradualmente o próprio agir, imitando Deus, com um comportamento de fidelidade, justiça, misericórdia, amor (cf. Gn 18,19; Dt 6,1-2; Js 22,5; Jr 7,21-23). No Novo Testamento, esse símbolo é retomado na interpelação de Jesus para que todos venham atrás dele e o sigam (cf. Mc 1,17; 8,34). De si mesmo Jesus diz: “Eu sou o caminho, a verdade, e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Todos são convidados a se converterem e a se tornarem imitadores de Deus (cf Mt 5,48; Ef 5,1), imitando Cristo (1Ts 1,6; 1Pd 2,21) e os seus apóstolos (1Cor 4,16; 11,1; Fl 3,17; 2Ts 3,7-9). b. Conflito com o próximo 122. Em Mt 5,38-42 Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente! Ora, eu vos digo: não ofereçais resistência ao malvado! Pelo contrário, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda...” Observa-se uma clara progressão: da vingança exagerada à igualdade do revide, chegando-se até à superação da cadeia das retribuições. Em Gn 4,23-24 Lamec, que pertence à descendência de Caim, é apresentado como alguém que propaga no seu canto de fanfarrão uma vingança desenfreada: “Matei um homem por uma ferida, um jovem por um arranhão. Se Caim for vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes”. O código da Aliança, no entanto, estabelece a lei do talião: “Se, porém, houver dano maior, então pagarás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão” (Ex 21,23-25). Essa lei encontra-se também nos códigos dos outros povos orientais antigos e quer impedir a vingança privada desmedida. Já em muitos salmos, Israel proclama, através da voz da parte ofendida, que a vingança compete só a Deus: “Deus justiceiro, SENHOR, Deus justiceiro, manifesta-te!” (Sl 94,1). Além disso, os sábios já conhecem a força de mudar o talião no seu contrário: “Se teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber: assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça, e o SENHOR te retribuirá” (Pr 25,21-22). Jesus, por seu lado, refere-se explicitamente a Gn 4,23-24 para revirar completamente o ciclo da vingança: “Então Pedro dirigiu-se a Jesus, perguntando: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?’ Jesus respondeu: ‘Eu te digo, não até sete vezes, mas até setenta vezes sete vezes’” (Mt 18,21-22). Ele faz do perdão e do amor para com os inimigos o critério para a pertença ao Pai: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem! Assim vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,44-45; cf. 18,21). Retomando esse pensamento, Paulo adverte: “Tomai cuidado para que ninguém retribua o mal com o mal, mas procurai sempre o bem entre vós e para com todos” (1Ts 5,15). E ainda: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal pelo bem” (Rm 12,21). Devemos, porém, evitar os mal-entendidos. Hoje a lei do talião é não raramente compreendida como a expressão de uma vingança e desforra violenta enquanto, em verdade, na origem constituía a limitação de violência e contra-violência; ela manifestava a tendência a superar a instintiva e incontrolada ânsia de vingança e desforra. Essa tendência orienta-se pela atitude de Deus, que se apresenta como “misericordioso e clemente” (Ex 34,6) e perdoa a culpa do povo. Se tomarmos os cinco livros da Torá como uma grande composição, encontramos no centro, em Levítico 16, o rito do Dia da Expiação, cujo conteúdo principal é “Deus que perdoa”. A essa caracterização de Deus corresponde no contexto do livro a famosa exigência: “Amarás o teu próximo com a ti mesmo” (Lv 19,18), formulação veterotestamentária da “regra de ouro” (Mt 7,12). O Novo Testamento continua de modo conseqüente os desenvolvimentos presentes no Antigo Testamento. c. A moral conjugal 123. Em Mt 5,31-32 Jesus ensina: “Foi dito também: ‘Quem despedir sua mulher, dê-lhe um atestado de divórcio’. Ora, eu vos digo: todo aquele que despedir sua mulher – fora o caso de união ilícita – faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher que foi despedida, comete adultério.” Encontramos um comentário dessa disposição de Jesus numa sua controvérsia com alguns fariseus. Baseando-se sobre o agir do Criador (Gn 1,27) e sobre o agir dos seres humanos que daí resulta (Gn 2,24), Jesus exclui o divórcio e diz: “O que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19,6). E respondendo à objeção deles explica o regulamento sobre o divórcio (Dt 24,1-4) como uma concessão de Moisés, que não tira a determinação originária de Deus Criador: “Moisés permitiu despedir a mulher, por causa da dureza do vosso coração. Mas não foi assim desde o princípio” (Mt 19,8). Encontramos no Antigo Testamento a poligamia (Lamec, em Gn 4,19; Jacó, em Gn 29,21-30; Elcana, em 1Sm 1,2; Davi, em 1Sm 25,43; Salomão, em 1Rs 11,3): ela é expressão das condições antropológicas e sociais do Antigo Oriente próximo. Existe também, como vimos, o regulamento do divórcio. No entanto, nota-se no Antigo Testamento uma evolução para o ideal do matrimônio monogâmico. Somente na base desse alto ideal de um recíproco e exclusivo amor e fidelidade (cf. Ml 2,14-16), os profetas podiam conceber a aliança do SENHOR com Israel como um compromisso eterno, infrangível, entre marido e mulher (Os 1-2; Is 54; Jr 3; Ez 16; cf. Ct 8,6). Jesus tira a última conseqüência dessa alta visão e exclui o divórcio (cf. também Mc 10,11-12; Lc 16,18). Paulo refere-se explicitamente a essa disposição de Jesus: “Aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor: a mulher não se separe do marido... e o marido não pode despedir sua mulher” (1Cor 7,10-11). Passa-se da possibilidade da poligamia à monogamia, na qual o marido pode repudiar a mulher, e depois à monogamia sem divórcio, na qual os dois têm o mesmo estatuto jurídico: nem marido nem mulher podem repudiar um ao outro. Ambos são chamados a empenhar-se por uma duradoura e amorosa convivência e a realizar aquela união e comunhão que o Criador determinou. d. O culto divino 124. Imediatamente depois das antíteses, Jesus ocupa-se com a esmola, a oração e o jejum, que eram importantes expressões do culto divino (Mt 6,1-18). Não as critica como tais, mas censura o modo errado de praticá-las para alguém ser notado e louvado pelos outros, e ensina a sua prática exclusivamente concentrada sobre a união com Deus Pai. A justa maneira de executar as diversas formas do culto de Deus é um tema importante no Antigo Testamento. A interpretação veterotestamentária das diferentes espécies do culto divino (jejum e sábado, sacrifícios, leis sobre o puro e o impuro) manifesta uma crescente solicitude para garantir o escopo principal do culto: a comunhão com Deus. A acurada observância das respectivas leis não era fim em si mesmo, mas sim meio para evitar qualquer coisa que pudesse fazer perder a força proveniente do Deus santo. Todas as formas do culto divino foram levadas ao seu cumprimento no sacrifício de Cristo. 1) Sacrifícios no Antigo Testamento O livro dos salmos não só exorta Israel a venerar o seu Deus mas também reflete sobre a verdadeira natureza do culto e critica os sacrifícios de então (Sl 40,7-9; 50,7-15; 51,18-19; 69,31-32). Desse ponto de vista, os salmos se antecipam à crítica profética do sistema sacrificial (Is 1,10-17; 43,23-24; Jr 6,19-20; 7,21-23; 14,11-12; Os 6,6; 8,13; Am 5,21-27; Ml 1,10; 2,13). Por causa do contexto variado no qual esse tema geral é tratado, esses textos não são muito homogêneos, mas concordam na sua compreensão da natureza e do escopo dos sacrifícios. Deus não tem necessidade deles, mas o povo deles precisa como expressões do próprio louvor de Deus e da lealdade à Aliança. Israel deve sempre recordar o que Deus estabeleceu quando lhe deu a sua Aliança: não que eles devam oferecer sacrifícios, mas que devem manter o justo conhecimento de Deus (Os 6,6), observando a Lei (Sl 40,7-9) e obedecendo aos seus mandamentos (Jr 6,19-20; 7,21-23). A crítica profética do culto e dos sacrifícios toca a sua interpretação, não a sua própria existência. Ela quer purificar a compreensão da ligação singular de Israel com o SENHOR e inaugurar uma nova era de culto autêntico, no lugar no qual o SENHOR faz habitar o seu nome. 2) O sacrifício de Cristo Um traço fundamental da carta aos hebreus é a distinção entre as duas fases da história da salvação: a era da aliança sob Moisés e a era da salvação mediante Cristo. Na parte central da carta (8,1—9,28), é sublinhada a superioridade do sacrifício de Cristo e da nova aliança. O autor critica em 8,3—9,10 o culto da primeira aliança e fala em 9,11-28 do sacrifício pessoal de Cristo que funda a nova aliança. Com Cristo fica superado o sistema do culto antigo e cria-se uma situação totalmente nova. O culto antigo era muitas vezes formal, externo, convencional, e o era necessariamente, enquanto as pessoas eram incapazes de um culto perfeito. Cristo inaugura um culto real, pessoal, existencial, que estabelece uma comunhão autêntica com Deus e com as pessoas ao nosso redor (9,13-14). O sangue de Cristo tem uma força muito superior, porque é o sangue de alguém que: 1. se oferece a si mesmo a Deus; 2. é imaculado; 3. o faz mediante um espírito eterno. É claro o contraste em relação aos sacrifícios antigos. 1. Os sumos-sacerdotes oferecem animais que são forçados à imolação. Cristo se oferece voluntariamente à morte. Sob o antigo regime, o valor da oferta vem do sangue, enquanto no sacrifício de Cristo o valor do sangue vem da oferta. O sangue de Cristo é eficaz porque realiza uma oferta perfeita de todo o seu ser humano, oferta não cerimonial mas existencial, descrita em 5,8 como uma obediência dolorosa e em 10,9-10 como um cumprimento pessoal da vontade de Deus. 2. Os sumos-sacerdotes não podiam oferecer a si mesmos, pois eram homens pecadores e tinham necessidade de uma mediação que procuravam encontrar, segundo a lei de Moisés, na oferta do sangue de animais (Hb 5,3; 7,27-28). Cristo, ao contrário, sendo imaculado, absolutamente isento de toda cumplicidade com o mal, podia oferecer a si mesmo e servir-se do próprio sangue, que é eficaz precisamente por causa da sua absoluta integridade pessoal. 3. Os sumos-sacerdotes eram sacerdotes segundo a lei de uma prescrição carnal (cf. 7,16; 9,10). Cristo oferece a si mesmo animado “por um espírito eterno” (9,14). Não basta um impulso da generosidade humana para realizar a perfeita oferta de si mesmo. É necessária uma generosidade que vem do próprio Deus, é necessária a força do amor que é comunicado pelo Espírito Santo. Esse terceiro aspecto é o mais importante de todos: o sangue de Cristo adquire seu valor mediante a sua relação com o Espírito Santo. Porque o sacrifício de Cristo é perfeito, a sua eficácia é completa. O autor descreve-a assim: “O sangue de Cristo... purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo” (9,14). 3) O novo culto A purificação da consciência, mediante o sacrifício de Cristo, manifesta-se numa nova conduta da vida, que se apresenta como o único culto justo, o único “servir ao Deus vivo” (Hb 9,14). Somente em Cristo somos capazes de um culto divino que é verdadeiramente digno desse nome. Trata-se do sentido pleno desse termo, do conceito do culto espiritualizado. Mediante o sacrifício de Cristo, os cristãos são purificados e tornados aptos a realizar obras agradáveis a Deus. Podem ser definidos “sacerdócio real” (1Pd 2,9), “sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus” (1Pd 2,5; cf. Ex 19,6). A vida cristã deve ser um culto espiritual, um sacrifício vivo, santo, agradável a Deus (Rm 12,1; 15,16). Aludindo ao seu martírio, Paulo se compara a uma libação sobre o sacrifício e sobre a oferta da fé da sua comunidade (Fl 2,17). Mas não só a morte, também a vida terrena e física do cristão deve ser um sacrifício. A tradicional oferta material, distinta da pessoa que a oferece, é substituída no cristianismo pela oferta pessoal que se identifica com a própria existência daquele que oferece. 2.3.2. Orientações para hoje 125. O fenômeno bíblico de um progressivo reconhecimento das tarefas morais mantém uma incisiva relevância. Vendo os grandes problemas da humanidade de hoje, pode-se ter a impressão de assistir a uma progressão inversa, a um contínuo aumento dos meios de destruição que ameaçam a própria existência da humanidade e os recursos da sua vida. Nessa situação, é necessária uma escuta mais confiante das palavras de Jesus e um mais intenso empenho dos cristãos em viverem segundo o seu exemplo e as suas palavras. Os resultados do nosso estudo sobre a progressão apresentam uma sua utilidade. Limitamo-nos a exemplificar sobre três temas. Como já vimos, a “justiça superior” do reino delineia três eixos que determinam o serviço dos fiéis em todos os campos da vida, quer próximos quer distantes: disponibilidade ilimitada para o perdão, fidelidade incondicional ao cônjuge escolhido para sempre na ventura e na desgraça, e culto de Deus espiritual, interiorizado, que conduz a um empenho concreto pela transformação do mundo. Essas normas de comportamento são fundamentais para qualquer forma ou campo do serviço cristão e fazem de toda atividade humanitária uma resposta de gratidão à revelação do amor de Deus. De um ponto de vista mais prático, nossa reflexão sobre a progressão e o refinamento da consciência moral pode ajudar os pastores e os diversos agentes no campo da educação da fé, a avaliarem bem o estágio ao qual as pessoas ou grupos chegaram na sua caminhada. Por exemplo, a partir dos reflexos de vingança, infelizmente tão profundamente inseridos na natureza do homem pecador, a partir das idéias veiculadas por uma sociedade muito mais permissiva que outrora em matéria de divórcio ou em qualquer outra matéria moral, ou a partir de práticas de devoção popular, belas mas às vezes totalmente exteriores, pode-se elaborar estratégias para ajudar o irmão a avançar passo a passo no caminho da perfeição evangélica (teleiôsis) e também a deixar-se interpelar, nas suas escolhas de vida, pela radicalidade da ética cristã, quer no plano social quer no plano individual. Também os casos de imperfeição moral em ambos os Testamentos podem incitar os crentes a avaliar melhor o caminho a percorrer, para alcançar a própria perfeição do modelo divino. 2.4. Quarto critério específico: A dimensão comunitária 126. A Bíblia põe em relevo a dimensão essencialmente comunitária da moral. Essa dimensão tem a sua motivação e expressão no amor, e está em última análise radicada na própria natureza de Deus e da pessoa humana, criada segundo a imagem de Deus. 2.4.1. Dados bíblicos 127. Segundo a visão bíblica, a pessoa humana não é um indivíduo isolado e autônomo, mas é essencialmente membro de uma comunidade, isto é, faz parte da comunidade da aliança, do povo de Deus, que no Novo Testamento é concebido também como o corpo de Cristo (1Cor, Ef, Cl), ao qual os indivíduos pertencem como membros, ou como a videira na qual os indivíduos estão inseridos como ramos (Jo 15). Desse fundamental quadro de relações segue que o objetivo da aventura humana não é a formação da personalidade distinta e em si perfeita, mas a formação do membro que vive de modo perfeito as relações nas quais está inserido. Segue daí também que as normas dessa convivência não podem ser estabelecidas de modo soberano e autônomo por cada membro, mas constituem o patrimônio da comunidade e devem ser guardadas e desenvolvidas por ela. Isso não tira a responsabilidade da consciência de cada um no seu próprio agir. Mas exatamente a consciência, para evitar um agir arbitrário, deve estar ciente da situação que acabamos de descrever e orientar-se por ela nas suas ações. a. A essencial pertença a uma comunidade e a sua força formativa 1) Em Israel 128. Enquanto as tribos israelitas se submeteram às dinâmicas normais e aos desenvolvimentos históricos de cada grupo étnico, a Bíblia ocupa-se de modo especial do nascimento do povo de Deus como comunidade religiosa que responde ao chamado divino. Essa comunidade possui a competência de instruir a consciência e de sancionar o adequado comportamento moral. A Bíblia descreve diversos estágios dessa história religiosa, começando com um período embrional, durante o qual a família dos antepassados se torna uma comunidade tribal que não vive mais em escravidão mas na liberdade nascida do Êxodo. A fé de Israel é descrita vividamente no texto-chave de Êxodo 15, que reconhece a Deus como soberano, proclama Israel como o povo eleito de Deus e afirma que Deus os faz habitar ao redor da sua própria morada, o Santuário. Isso antecipa o papel primordial que terão o culto e o Santuário na formação do povo de Deus, primeiro através da tenda no deserto e mais tarde mediante o primeiro templo em Jerusalém com a arca da aliança em seu interior. A comunidade criada em redor desse centro constitui o início de uma nova ordem do mundo (Ex 40; 1Rs 8). Nele, em Israel, é ensinada a Lei, nele o povo recebe perdão, e a esse lugar virão também as nações para aprender a Torá (Is 2,2-3). Ao mesmo tempo, a história bíblica sublinha a repetida desconfiança e infidelidade de Israel para com Deus, especialmente durante a travessia do deserto (cf Ex 19-24; 32-34). Depois do período da conquista, a Bíblia delineia a transição de comunidade no deserto a Estado, com a aparição da monarquia, e depois a divisão da comunidade em reino do norte e reino do sul. Enquanto o monarca e a corte assumem algumas das funções religiosas como o cuidado do santuário, o sacerdócio e a regulação do culto, resta verdade que o próprio povo é o contraente da aliança com Deus (1Rs 8,27-30). Mais tarde, a infidelidade de Israel durante a monarquia causa um ulterior desenvolvimento no conceito da comunidade religiosa de Israel. Deus recria o povo como um “resto” santo que viverá numa Jerusalém purificada (Is 4,2-4). Essa nova comunidade religiosa não está mais restrita à terra de Israel mas estende-se também a quantos vivem no Exílio (Jr 29,1-14; Ez 37,15-28). Começando com Amós, os profetas antes do Exílio criticam fortemente o culto israelita, contrapondo a inutilidade do sacrifício vão à autêntica obediência para com o SENHOR, especialmente em relação à prática da justiça e da retidão (cf. Am 5,11-17; Os 6,6; Is 1,11-17; Mq 6,6-8; Jr 7,1—8,3). Essa crítica do culto falso ou da falta de coerência entre a conduta ritual e moral de Israel permanece um elemento-chave da tradição bíblica e uma componente importante da sua reflexão moral. Depois do golpe violento do colapso da monarquia e depois do Exílio, o poder de Deus renova a comunidade religiosa de Israel mais uma vez. Os exilados, depois de sua volta, reconstroem o santuário e restauram também a Torá como centro normativo da vida pública e do comportamento pessoal (Ne 8-10). Israel não possui mais a soberania nacional e autonomia (exceto por um breve período sob a dinastia dos Hasmoneus), mas a sua identidade religiosa se considera fundada sobre a obediência à Torá e sobre seu culto, prestado por uma comunidade fiel a Deus. Em todas essas vicissitudes e não obstante as diversas formas e situações da comunidade religiosa, cada israelita não aparece jamais como indivíduo isolado e autônomo, mas sempre como membro integrado na comunidade. Diferente pode ser o papel que cada um desempenha na comunidade: pode ser o papel do patriarca, do grande guia, do rei, do sacerdote, do profeta ou do simples camponês. É essencial, porém, para todos, a pertença à comunidade, a submissão às suas regras de vida e a participação no seu culto. 2) Entre os cristãos 129. A primeira comunidade cristã que se forma em torno à pessoa de Jesus vê-se a si mesma em continuidade com o povo de Israel e com as responsabilidades morais inerentes à pertença a uma tal comunidade. Essa continuidade é clara no retrato que Lucas apresenta da comunidade de Jerusalém nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos. O Espírito, enviado em nome do Cristo ressuscitado, torna os seguidores de Jesus capazes de formar uma comunidade que incorpora os ideais de Israel, preanunciados para o tempo final (cf. especialmente os famosos sumários de Lucas: At 2,42-47; 4,32-37; 5,12-16). Alguns traços caracterizam essa comunidade ideal: 1. Atenção ao ensinamento dos Apóstolos (2,42); 2. Koinônía, ou vínculo profundo de fé e caridade entre os membros (1,14; 2,1; 4,32); 3. Culto comum, especialmente na celebração da eucaristia, na fracção do pão nas casas e na oração no Templo (2,42.46); 4. Partilha dos bens, de tal modo que ninguém passava necessidade (2,44; 4,34-37); 5. Comunhão de espírito entre os membros, não de simples amizade mas de um vínculo mais profundo de fé (p. ex. 2,44; 4,32; 5,14); 6. Continuação da missão de Jesus, de cura e perdão, evidenciada nas ações e no testemunho dos apóstolos (cf. 2,43; 3,1-10; 4,5-12). Importante é aqui o fato de que a pertença à comunidade cristã implica um gênero de compromissos e qualidades morais nos quais se refletem a missão do próprio Jesus e os valores permanentes da tradição bíblica. Assim, é obrigação dos membros da comunidade prestar o culto devido a Deus, ter cuidado uns dos outros, formar uma comunidade de caridade e amizade, partilhar os bens a fim de que ninguém passe necessidade, e continuar a missão de curar e reconciliar segundo o exemplo do próprio Jesus, quando anunciava o Reino. De modo semelhante, Paulo e as outras tradições neotestamentárias apresentam o contexto essencialmente comunitário da moralidade. Segundo Paulo, cada cristão está imerso “em Cristo” mediante o batismo e está habilitado pelo Espírito a levar uma vida “digna da sua vocação” (Rm 6,3; Ef 4,1). A pertença a Cristo, e por isso à comunidade cristã, torna cada cristão capaz de distanciar-se das “obras da carne” e de praticar “o fruto do Espírito” (Gl 5,16-26). Os vícios e as virtudes elencadas por Paulo são prevalentemente de natureza social. O fruto do Espírito como “amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si” (Gl 5,22), implica um modo de relacionar-se com os outros no qual se exprime a fé cristã. Quando Paulo elenca os diversos dons e carismas com os quais o Espírito cumula a Igreja, ele identifica “o amor” como “o caminho mais excelente” (1Cor 12,31). A descrição eloqüente de Paulo do modo como o amor se exprime na comunidade é uma das passagens mais fascinantes do Novo Testamento (1Cor 12,31—13,13) O Espírito Santo é um elemento chave para a compreensão da comunidade cristã no Novo Testamento. Em Lucas-Atos o Espírito enviado por Cristo ressuscitado anima e encoraja a comunidade e torna-a capaz de levar adiante a sua missão até os confins do mundo (At 1,8). De modo semelhante na teologia de João, o Espírito Paráclito encoraja a comunidade pós-pascal e a habilita a recordar e compreender o ensinamento de Jesus (Jo 14,25-26; 15,26; 16,12-14). Na teologia de Paulo, os diversos dons do Espírito dão dinâmica e coesão à comunidade cristã (1Cor 12,4-11). Antes de tudo, a força do Espírito torna o cristão capaz de vencer o poder do pecado, de cultuar a Deus de modo autêntico, e de levar uma vida marcada pelo “fruto do Espírito”. Quando Paulo corrige os coríntios no seu modo errado de celebrar a Eucaristia (1Cor 11,17-34), ele mostra que os valores morais aí tocados – o respeito pelos outros, o senso de justiça e de compaixão – não derivam em primeiro lugar das convenções sociais nem das exigências da amizade, mas do caráter intrínseco da comunidade cristã como incorporação viva da mensagem de Cristo e como comunidade dotada da força do Espírito de Deus. Tal comunidade, e os membros que a constituem, são levados a agir de um modo que corresponda à sua verdadeira identidade e ao seu fim. Os imperativos morais de uma comunidade assim podem coincidir em certos pontos com as normas de comportamento deduzidas da razão (p. ex. o respeito pelos outros); mas a sua plena expressão e motivação determinante provêm de uma fonte imediata diversa, isto é, da identidade dessa comunidade enquanto corpo de Cristo. b. Os principais valores referentes às relações interpessoais 130. Quer para o Antigo, quer para o Novo Testamento, é essencial a pertença à comunidade. Cada membro é instruído pela comunidade e por suas tradições normativas sobre os valores e as responsabilidades morais. Nos escritos veterotestamentários, a comunidade da Aliança, com o seu culto e os ensinamentos da Torá e da sua interpretação, é a fonte primária para a maneira justa de viver. As comunidades do Novo Testamento fundam a sua consciência moral sobre o ensinamento e a missão de Jesus, enquanto se referem de modo significativo à tradição do Antigo Testamento e vêem-se a si mesmas em continuidade com o povo de Deus, Israel. Os valores que são evidenciados mediante essa formação dizem respeito em primeira linha às relações interpessoais, seja dentro seja fora da comunidade. 1) Dentro da comunidade 131. Inumeráveis são os textos que se ocupam das relações interpessoais. O próprio Decálogo elenca obrigações fundamentais para com os outros. Segundo os códigos legais de Israel, requer-se atenção ao bem-estar físico e econômico do próximo. Não se pode ferir ou matar alguém sem sanção, como já o demonstra o caso de Caim e Abel (Gn 4,1-16). A lei mosaica determina que, no tempo da colheita, se deixe uma porção para o pobre e o estrangeiro (Lv 19,9-10; Dt 24,19-22). Os membros débeis da sociedade, como a famosa tríade da “viúva, órfão, estrangeiro”, devem ser tratados com compaixão e respeito (cf. Dt 16,11-12; 26,11-12). É justo aquele que não engana nem defrauda o outro mediante a usura ou a mentira (Am 2,6-8; Ez 18,10-13). A missão do próprio Jesus, que está cheio de compaixão e se dedica a curar os doentes e a saciar os famintos, corresponde à mesma ética fundamental bíblica. De fato, no evangelho segundo Mateus, Jesus declara que ele não vem abolir a Lei e os Profetas mas que os “cumpre”, isto é, manifesta a intenção e a finalidade que o próprio Deus deu à Torá (Mt 5,17). Os discípulos são encarregados por Jesus de continuar a mesma missão na vida da Igreja (Mt 10,7-8). A tradição do amor de Deus e do amor do próximo como exigências fundamentais da Lei era uma tradição profundamente arraigada no Antigo Testamento e repetidamente confirmada por Jesus. Esta é a resposta que Jesus dá à pergunta do escriba sobre o maior mandamento da Lei: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. Ora, o segundo é-lhe semelhante: Amarás teu próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos” (Mt 22,37-40); cf. Mc 12,29-31). Noutros textos Jesus reafirma as obrigações para com o próximo. E resume as exigências da Lei na famosa “regra de ouro”: “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles. É isso a Lei e os Profetas” (Mt 7,12). Respondendo ao jovem rico que pergunta sobre o que deve fazer para alcançar a vida eterna, Jesus apresenta um sumário do Decálogo: “Não cometerás homicídio, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, ama a teu próximo como a ti mesmo” (Mt 19,18-19). Pode-se também notar que todos os exemplos da “maior justiça” mencionados no Sermão da montanha se concentram sobre obrigações para com o próximo: reconciliação com o irmão e a irmã (Mt 5,21-26); não olhar para o outro com luxúria (5,27-30), fidelidade ao vínculo matrimonial (5,31-32), verdade no falar (5,33-37), não vingar-se da injustiça sofrida (5,38-42). E ainda, num texto que é considerado como o mais característico do ensinamento de Jesus, o amor do inimigo é visto como a última expressão moral que torna seu seguidor “perfeito” ou “completo” assim como o Pai celeste é perfeito (5,43-48; cf. Lc 6,36: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso”). No fim, o discípulo de Jesus será julgado segundo a sua fidelidade a esses mandamentos do amor, da misericórdia, do perdão, da justiça, que são mencionados na parábola das ovelhas e dos cabritos (Mt 25,31-46). Essa forte ênfase no caráter relacional e comunitário das obrigações morais é confirmada por outras tradições neotestamentárias, especialmente nos escritos de João. O quarto evangelho condensa as exigências éticas do discipulado na fórmula: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12) A morte de Jesus é o exemplo supremo desse amor exigido aos discípulos. A sua morte é um ato de amor supremo daquele que dá a vida pelos amigos (15,12-14). Este supremo exemplo de ação moral humana torna-se o critério para o empenho do cristão para com os outros (15,12-17). A mesma concentração se repete nas cartas de João, especialmente na primeira: “Pois esta é a mensagem que ouvistes desde o início: que nos amemos uns aos outros” (1Jo 3,11). O vínculo extrínseco entre o amor de Deus e o amor do próximo representa a nota característica da ética bíblica e do ensinamento de Jesus: “Este é o mandamento que dele recebemos: quem ama a Deus, ame também seu irmão” (1Jo 4,21). Igualmente em Paulo, a caridade constitui o dom supremo e imperecível (1Cor 13,13), assim como em Tiago 2,8 e em Hb 13,15-16: a adoração de Deus e a obrigação de fazer o bem ao próximo estão intimamente ligados. 2) Para com aqueles que estão às margens da sociedade 132. Os textos legislativos da Torá requerem de modo insistente a preocupação pelo ger, o estrangeiro que vive entre os israelitas. Às vezes essa preocupação parece puramente humanitária (cf. Ex 22,20; 23,9), mas noutros textos, especialmente no Deuteronômio, a preocupação pelo estrangeiro tem uma motivação mais teológica. Israel deve recordar a própria experiência no Egito e deve preocupar-se com o estrangeiro na mesma medida em que Deus se preocupou com Israel, quando eles eram estrangeiros no Egito (cf. Dt 16,12). A Lei de Santidade dá um passo adiante quanto à preocupação com o estrangeiro, que não é mais simplesmente objeto da Lei mas “sujeito”, corresponsável com os israelitas indígenas pela santidade e a pureza da comunidade. “O estrangeiro que mora convosco seja para vós como o nativo. Ama-o como a ti mesmo, pois vós também fostes estrangeiros na terra do Egito. Eu sou o SENHOR vosso Deus” (Lv 19,34). No Novo Testamento a missão de Jesus é apresentada como cheia de preocupação com as “ovelhas perdidas” da casa de Israel (Mt 10,5: 15,24) e o anúncio do Evangelho é caracterizado como “boa notícia para os pobres” (Mt 11,5; Lc 4,18; cf. Tg 2,2). Os evangelhos unanimemente descrevem Jesus como alguém que cura movido pela compaixão para com aqueles que estão em necessidade: “Os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres se anuncia a boa nova” (Mt 11,5; cf. Mt 4,24-25; Lc 4,18-19). Essas ações curativas constituem só os primeiros passos para a cura da pessoa inteira, que em última análise resulta no perdão dos pecados (cf o paralítico perdoado e curado em Mc 2,1-12). Jesus acolhe os pecadores, come com eles e chama o publicano Levi para ser seu discípulo (Mc 2,13-17), e aceita a hospitalidade de Zaqueu (Lc 19,1-10). Da mesma forma, e não obstante as objeções do seu hóspede fariseu, Jesus aceita o amor terno da mulher pecadora na casa de Simão e oferece-lhe perdão e acolhida (Lc 7,36-50). Criticado pelos protestos dos fariseus e escribas pela sua comunhão com os publicanos e pecadores, Jesus esclarece a sua visão da comunidade que não exclui ninguém, nas suas parábolas da ovelha perdida, da moeda extraviada e do filho pródigo (Lc 15). Também aos discípulos ele ensina a não “escandalizar” ou “desprezar” os “pequenos” na comunidade, mas a procurá-los com compaixão (Mt 18,6-14). A reconciliação e o perdão devem caracterizar a comunidade formada em nome de Jesus (Mt 5,21-26.38-48; 18,21-35). Jesus concede o perdão não só mediante as palavras dirigidas ao pecador, mas também tomando sobre si mesmo os pecados da humanidade: “Ele assumiu as nossas dores e carregou as nossas enfermidades” (Mt 8,17). Jesus considera a sua missão libertadora e curadora como sinal da vinda do reino de Deus que restaurará a vida humana e a levará à sua plenitude (Mt 12,28; Lc 11,20). Finalmente a morte de Jesus sobre a cruz e a sua ressurreição dos mortos representam o último ato de libertação e cura, enquanto derrotam a morte e o pecado, livram a humanidade do seu poder e conduzem ao reino perfeito de Deus. 3) Para com aqueles que estão fora da comunidade 133. Também os pagãos são bem acolhidos por Jesus quando se aproximam dele e buscam a sua força que cura: pense-se na mulher cananéia (Mt 15,21-28) e no centurião (Lc 7,1-10). No seu discurso programático em Nazaré, Jesus recorda a missão de Elias junto á viúva em Sarepta de Sidônia e a cura do sírio Naamã por parte de Eliseu, eventos nos quais são ultrapassados os limites de Israel (Lc 4,25-27). Na versão mateana da história do centurião, Jesus alude a Is 43,5 e prevê que “muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar à mesa no reino dos céus, junto com Abraão, Isaac e Jacó” (Mt 8,11). E na parábola do grande banquete, os convidados que se recusam a vir são substituídos por “pobres, aleijados, cegos, coxos” e finalmente pelos que estão “pelas estradas e pelos cercados”, de tal maneira que a casa fique repleta (Lc 14,16-24). Nessas ricas tradições sobre a missão de Jesus, enviado a curar, a ocupar-se dos pobres e marginalizados, a acolher os pecadores e também os pagãos, os evangelhos confirmam a orientação comunitária da Bíblia. A pergunta-chave da moral bíblica é esta: quais são as virtudes, práticas, tipos de relação que devem caracterizar uma comunidade reunida em nome de Deus? 4) Validade para todos os seres humanos 134. A Bíblia não considera as tradições morais da Torá e do ensinamento de Jesus como uma ética “sectária”, que se pode aplicar somente a Israel ou à comunidade cristã (cf. Is 2,3; Am 1-2). A tradição da Sabedoria afirma que a mesma estrutura da realidade criada reflete os valores da Torá e a vontade de Deus para todos os seres humanos (cf. Pr 8,22-36; Sb 13,1.4-5). Paulo reflete esse visual, quando assevera que também os pagãos podem conhecer a Deus e a sua vontade mediante a observação do mundo criado (Rm 1,18-25; cf 2,14-15). O mesmo vale em relação ao ensinamento moral de Jesus, que se dirige não só aos discípulos mas, através deles, a todo o mundo com a sua revelação da verdade de Deus (cf Mt 28,18-20). A tradição bíblica supõe, portanto, que as mesmas responsabilidades morais são dadas a todos os seres humanos como parte da criação e imagens de Deus, embora o poder do pecado e o afastamento de Deus possam prejudicar a decisão moral. 2.4.2. Orientações para hoje 135. A comunidade é um dado fundamental da vida moral segundo a Bíblia. É fundada sobre o amor que ultrapassa os interesses individuais e mantém juntos os seres humanos. Esse amor está afinal radicado na vida da própria Santíssima Trindade, manifesta-se mediante a força dinâmica do Espírito Santo e, ao mesmo tempo, é fonte e meta de uma comunidade autenticamente cristã. a. Diversas formas de comunidade Nos diversos níveis da vida humana está presente a comunidade, sempre com uma dinâmica própria e exigências morais específicas. A família é a mais fundamental comunidade humana e é decisiva para a formação social e moral do indivíduo. Também a Igreja é uma comunidade: para ela é fundamental o dom da fé, nela se entra mediante o batismo e seu íntimo vínculo de união é o amor cristão. Obrigações morais derivam também da pertença à comunidade civil, quer local, quer regional, quer nacional. E, cada vez mais, a sociedade moderna está consciente das dimensões globais da comunidade humana e das obrigações morais exigidas pelo bem-estar econômico, social e político de toda a família das nações e dos povos. Na Doutrina Social da Igreja, os papas, há mais de um século, têm sublinhado as obrigações morais que derivam da pertença aos diversos níveis da vida comunitária. b. A importância fundamental do amor Muitos valores são relevantes em todas as escolhas morais que concernem ao cristão de hoje. Mas é o amor, o empenho profundo de transcender-se a si mesmo pelo bem dos outros, que conduz e determina todos os outros valores sociais segundo a perspectiva cristã. Enquanto a comunidade civil está obrigada a assegurar estruturas sociais justas que protejam os cidadãos e garantam as necessidades da vida, a perspectiva moral cristã é complementar e transcende as exigências de justiça. A ordem justa, criada através dos meios políticos, não pode satisfazer todos os anelos do coração humano. O empenho moral da Igreja pelo amor do próximo, nas diversas esferas da comunidade humana, pode alcançar as mais profundas aspirações do espírito humano. As tradicionais obras de caridade da Igreja, no seu nível individual e institucional, podem inspirar a ordem política a reconhecer a beleza transcendente e o destino último da pessoa humana criada por Deus. c. Necessidades de hoje A dimensão comunitária da revelação bíblica pode recordar às pessoas de boa vontade aspectos essenciais da vida moral de hoje. O individualismo excessivo que ameaça a própria estrutura de muitas comunidades, o isolamento dos idosos e das pessoas com deficiência, a falta de proteção para os membros mais fracos da sociedade, a crescente disparidade entre nações pobres e ricas, o recurso à violência e à tortura por maldade ou por praxe política, são situações profundamente contestadas pela visão bíblica da pessoa e da comunidade humana diante de Deus. O ensinamento da Igreja sobre as obrigações do amor ao próximo derivam do ensinamento de Jesus e toda a tradição bíblica é um desafio direto a essas falhas morais. Ao mesmo tempo, o empenho da Igreja no serviço amoroso pelos pobres, doentes e fracos, serve também como inspiração para as comunidades civis que se esforçam por construir uma sociedade justa. 2.5. Quinto critério específico: A finalidade 136. A esperança na vida futura com Deus, fundada na ressurreição de Jesus, fornece uma motivação decisiva para procurar a vontade de Deus e para observá-la como norma do próprio agir. 2.5.1. Dados bíblicos O homem é mortal e vive no tempo. Como tal, encontra o enigma existencial da interrupção da relação de amizade com Deus, caso não se supere o limite da morte. Israel viveu o drama dessa incerteza. Todavia, sua compreensão da criação e da Aliança conduziu-o gradualmente à convicção de que a soberania de Deus sobre o cosmo e a história não podia sofrer derrota diante da condição mortal do ser humano. O Senhor não deixaria no poder da morte aqueles que nele tinham posto a sua confiança. Por muito tempo, porém, permaneceu um mistério o modo como Deus demonstraria fidelidade para com os seus fiéis, depois da partida deles desta existência. O Novo Testamento vive uma nova esperança e chega à segurança de uma revelação que toca o cume no evento da morte e ressurreição de Jesus, e que abre uma perspectiva escatológica de grande luminosidade. Indicamos algumas linhas do discurso bíblico que se referem à vida futura, apresentam-na como motivação de opções morais e fundam sobre ela um agir moral conseqüente. a. A evolução da esperança no Antigo Testamento 1) O início dessa esperança 137. Na medida em que podemos identificar as fases mais antigas da religião de Israel, resulta que houve um tempo em que a esperança da retribuição na vida futura não tinha um papel específico para uma motivação da moralidade, porque essa esperança era ainda embrionária. As expectativas mais antigas parecem ter consistido simplesmente no retorno à origem tribal, ao reencontro dos antepassados na morte (1Sm 28,19; 2Sm 12,23). A recompensa da virtude é uma vida longa (Gn 25,8) e uma numerosa descendência. No fim, todos, seja o bom seja o mau (Ez 32,18-31), descem ao Sheol, um lugar de trevas, silêncio, impotência e inatividade (Sl 88,3-12), em plena antítese com a vida, pela impossibilidade de aí louvar a Deus. O efeito negativo dessa convicção sobre a moralidade alcança seu clímax no livro tardio de Coélet, onde ela constitui uma das razões indicadas para ver tudo como vaidade, toda luta pelo bem e todo esforço moral: “Pois a sorte dos humanos e a dos jumentos é idêntica: como o ser humano morre, assim eles morrem” (Ecl 3,19; mas tenha-se em conta a variante de 12,7). Muito antes de Coélet, porém, já tinha surgido outra visão do mundo, a qual implicava que morte e mundo dos mortos estavam subordinados ao domínio de Deus sobre o céu e a terra. Sobretudo os salmos trazem testemunhos da convicção de que o Senhor não abandona os que têm confiança nele e vivem segundo seus mandamentos, nem mesmo depois de terem descido à sepultura. A comunhão de Deus com os seus fiéis não pode ser interrompida pela morte. Característica do amor é continuar para sempre, e a lealdade de Deus unida à sua onipotência era considerada capaz de realizar essa condição: “O teu amor vale mais do que a vida” (Sl 63,4). Embora o salmista não tivesse ainda uma idéia de como Deus concretizaria essa duradoura fidelidade para com os seus fiéis, muito antes que a esperança na ressurreição começasse a tomar pé, era já viva na fé de Israel a concepção de que a fidelidade de Deus para com os justos não poderia ser interrompida (Sl 16,8-11; 17,15; 49,14-16; 73,24-28). Na esteira desse desenvolvimento, a confiança de que a solidariedade de Deus para com os que vivem na observância dos seus mandamentos não poderia jamais ser desiludida, nem mesmo depois do túmulo, entrou no argumento ético. 2) As primeiras manifestações da esperança numa ressurreição Segundo alguns exegetas, uma conhecida passagem de Jó reflete o problema de como a vida após a morte, sob a benevolência permanente de Deus, podia ser adaptada a uma existência incorpórea, pelo menos se a dificílima passagem de Jó 19,26 se traduz assim: “Depois que esta minha pele for destruída, sem a minha carne verei a Deus”. Qualquer que seja o significado desse incerto texto hebraico, já a Septuaginta e, na sua esteira, os Pais da Igreja, interpretou seu conteúdo como um testemunho de fé na ressurreição: “Pois sei que é eterno aquele que está a ponto de livrar-me e de levantar da terra a minha pele, que suporta tudo isso” (Jó LXX 19,25-26). A perseguição dos Macabeus oferece a primeira clara conexão entre moralidade e vida após a morte, na forma de ressurreição com nova vida para os mártires e de tormento para os perseguidores e os seus descendentes (2Mc 7,9-36). O mesmo pensamento é expresso em Dn 12,2: “Muitos [que em aramaico não tem o sentido de excluir alguém] dos que dormem no pó da terra despertarão: uns para a vida eterna, os outros para a vergonha e o opróbrio eterno”. Aqui a ressurreição para a vida não é limitada aos mártires, mas estende-se a “todos aqueles cujos nomes se encontram escritos no livro”. É a ressurreição da pessoa inteira. Não é contemplada nenhuma divisão entre corpo e alma, porque na antropologia hebraica não se concebe tal separação: o ser humano não é dividido assim, mas é um corpo animado. No livro da Sabedoria a recompensa futura e o castigo depois da morte são uma motivação importante com referência à moralidade. Sob o influxo da filosofia grega e mais especificamente da filosofia neoplatônica, a esperança para o futuro é expressa em termos de imortalidade da alma. As almas dos justos estão na paz (Sb 3,1-3), tendo sido encontradas dignas de estar com Deus, de viver com ele num relacionamento amoroso (3,5-9). Por outro lado, os adúlteros não têm nem esperança nem conforto no dia do juízo, pois o fim da raça dos que praticam o mal é lamentável (3,19). A imortalidade da alma é vista como imortalidade pessoal. Concluindo, relevamos que essas espirais que se vão abrindo são já orientadoras de uma eventual novidade de situação que se possa apresentar. Elas de fato esclarecem a natureza efêmera do bem presente e ensinam a reconhecer a precedência absoluta de cada realização que seja coerente com o clima de amizade perene oferecido ao parceiro humano do relacionamento com Deus. b. O caminho exemplar de Jesus 138. Jesus afirma com grande clareza a ressurreição dos mortos, contrariando a negação dos saduceus. A realidade transcendente do Pai, do seu amor e da sua vontade, é decisiva para o caminho e o agir do próprio Jesus. Ele espera dos seus discípulos idêntica atitude e é seguido de modo exemplar pelos mártires. 1) A atitude e o ensinamento de Jesus A resposta de Jesus à história dos saduceus (Mc 12,18-23) começa com a pergunta: “Acaso não estais errados, porque não compreendeis as Escrituras nem o poder de Deus?” (12,24) e termina com a afirmação: “Estais muito errados!” (12,27). Ele constata com singular insistência o caráter errôneo dessa negação da ressurreição dos mortos por parte dos saduceus, vendo-a causada pelo seu desconhecimento de Deus, pela sua falsa concepção do poder e da fidelidade de Deus. Para Jesus, Deus não poderia auto-apresentar-se como “Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó” (12,26) sem se encontrar numa união vital com essas pessoas. Ele “não é Deus de mortos, mas de vivos” (12,27). A ressurreição dos mortos e a vida eterna são para Jesus não entidades abstratas, subsistentes em si mesmas. Toda a atenção de Jesus está concentrada em Deus, tudo depende da justa compreensão do poder de Deus e da sua real atitude para com os seres humanos. Não a idéia abstrata de uma vida eterna mas o relacionamento vivo com Deus, que criou e destinou os seres humanos para a infindável comunhão de vida com ele, constitui o quadro e a meta da vida humana e deve por isso determinar o agir humano. Para o próprio Jesus, o horizonte do seu viver e agir é o Pai, a sua união vital com o Pai. Jesus viveu para o Pai, com o Pai e no Pai: assim, tomou sobre si o mistério da sua paixão até o aniquilamento de si na morte de cruz. Ele diz de si mesmo: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a termo a sua obra” (Jo 4,34). Fazer a vontade do Pai, cumprir a missão dele recebida, é o modo fundamental pelo qual Jesus vive a sua união com o Pai. A fidelidade ao Pai está na base de todo o agir e sofrer de Jesus. Tal fidelidade à sua missão faz que ele não ceda a nenhuma pressão humana, e leva-o finalmente à morte de cruz. Essa fidelidade, apesar de tudo, é “o seu alimento”, fá-lo viver, é a fonte e a força de sua vida. Nem a vida terrena nem os bens desta vida constituem para Jesus valores supremos que em todo caso e a todo custo devessem ser alcançados. O valor supremo é exclusivamente a união com o Pai, que se vive antes de tudo cumprindo a sua vontade. Jesus propõe a própria atitude como exemplo, e espera de seus seguidores um fiel seguimento no caminho por ele traçado. Também para eles é decisiva a fidelidade à vontade do Pai. Concluindo o Sermão da montanha e, de certa forma, sintetizando-o, Jesus afirma: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor! Senhor!’, entrará no reino dos céus, mas só aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Exatamente em perspectiva escatológica, falando da condição imprescindível para a entrada no reino dos céus, Jesus apresenta a vontade de seu Pai como norma decisiva. A união de vida com o Pai no reino dos céus é simplesmente impossível sem ter vivido em união com ele na vida terrena, fazendo a sua vontade. Jesus demonstra explicitamente o que deve determinar o nosso agir e sofrer: “A vós, porém, meus amigos, eu digo: Não tenhais medo dos que matam o corpo e depois não podem fazer mais nada. Vou mostrar-vos a quem deveis temer: temei Aquele que, depois de fazer morrer, tem o poder de lançar-vos no inferno. Sim, eu vos digo: a esse deveis temer” (Lc 12,4). Trata-se de uma instrução entre amigos: Jesus quer proteger os seus amigos, os discípulos, mas também a grande multidão (cf. 12,1) contra o equívoco de fechar-se na perspectiva terrena. Abre portanto o horizonte e orienta a Deus e ao seu poder sobre a existência ultra-terrena: Deus pode excluir da união de vida com ele mas também pode acolher. Falando de medo, Jesus não quer incutir terror e angústia mas chamar a uma séria e profunda consciência da real e completa situação. Tal consciência, que inclui a perspectiva escatológica, deve determinar o agir. Entre as motivações do agir humano, o mal a evitar não é o que se verifica no horizonte terreno, mas sim o do fim das coisas, que se realiza se Deus pronuncia um juízo negativo. Noutra instrução, de novo “para a multidão, junto com os seus discípulos” (Mc 8,34), Jesus menciona diretamente o seguimento no caminho da cruz: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me! Pois quem quiser salvar sua vida, perdê-la-á; mas quem perder sua vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á” (8,34-35). E, concluindo, diz: “Se alguém se envergonhar de mim e de minhas palavras diante desta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos” (8,38). A única maneira de salvar a vida é a união com Jesus e com seu evangelho, porque Jesus se encontra em união com o Pai, única fonte de vida. Para manter a união com Jesus pode ser necessário renunciar, com Jesus, à vida terrena e aceitar, junto com ele, a cruz. O seguimento e a união com Jesus não podem ser parciais, mas devem ser totais. De novo a perspectiva escatológica exige e justifica esse agir. Jesus, mediante o seu caminho entra na glória do Pai, e virá e se manifestará nessa glória. Só a união permanente com ele e a fidelidade corajosa a ele e às suas palavras fazem participar da sua vida gloriosa com o Pai, fazem verdadeiramente “salvar a vida”. 2) O seguimento exemplar dos mártires 139. Em alguns dos últimos livros do Antigo Testamento (1 e 2 Macabeus) são narrados casos de martírio. Esses casos são relatados e interpretados num quadro de convicções no qual se encontra já amadurecida uma clara consciência da sorte futura do ser humano. Os mártires ensinam que há sobrevivência numa outra vida e que os valores em jogo nas opções concretas atuais são de absoluta radicalidade, tais que podem explicar e exigir as escolhas mais decisivas. No Novo Testamento, o próprio Jesus é “o mártir” por antonomásia e a sua absoluta fidelidade à missão recebida do Pai, que vai até à morte na cruz, é exemplo para seus seguidores. Isso aparece numa exortação de Paulo a Timóteo, na qual ele admoesta: “Combate o bom combate da fé e conquista a vida eterna, para a qual foste chamado”, logo a seguir recordando “Jesus Cristo, que deu o seu belo testemunho perante Pôncio Pilatos” (1Tm 6,12-13). Os primeiros cristãos, que aceitam a morte e derramam seu sangue para poderem permanecer fiéis a Jesus, o seu Senhor, são chamados “mártires”, isto é, “testemunhas”. Com total radicalidade atestam que a união com Jesus é mais preciosa que qualquer outra coisa. Estêvão, o primeiro cristão morto por causa da sua fidelidade a Jesus, é para Paulo um mártir assim (At 22,20), e o livro do Apocalipse fala mais vezes dessas testemunhas de Jesus (2,13; 6,9; 17,6; 20,4). Múltiplas são as temáticas da primitiva teologia do martírio, inspiradas nos precedentes neotestamentários. Baste citar Inácio de Antioquia, que une a idéia paulina da união com Cristo ao tema joanino da vida em Cristo e, ainda, o ideal da imitação de Cristo. A paixão do Senhor faz-se presente na morte das suas testemunhas. Os mártires, sacrificando a sua vida, dão testemunho de critérios essenciais do agir: o primado absoluto de Deus e o conseqüente direito que tem a fidelidade a ele de exigir o heroísmo ou a renúncia a qualquer outro valor; a relação entre um presente efêmero e um futuro que vê restabelecido o bem de uma salvação que supera todas as dimensões terrenas; enfim, a conformação a Cristo, “mártir” de Deus, e a imitação do seu exemplo. c. A perspectiva escatológica nos escritos paulinos 140. Como em todos os outros escritos do Novo Testamento, assim também no anúncio de Paulo a perspectiva escatológica é fundamental e onipresente, mesmo quando não é explicitamente mencionada. Para Paulo, Deus Pai é aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos (cf. Gl 1,1; Rm 10,9 etc). O horizonte da nossa existência não está mais limitado à vida terrena mortal, pois a vida em comunhão eterna com o Senhor ressuscitado abre um horizonte ilimitado, muda as circunstâncias e os parâmetros da vida terrena e se torna regra determinante na condução de nossa existência atual. São típicos alguns textos paulinos que falam da ressurreição e do juízo e daí trazem conseqüências para o nosso agir moral. 1) A ressurreição No longo capítulo 15 da primeira carta aos coríntios, Paulo apresenta em estreita conexão a ressurreição de Jesus, a ressurreição dos cristãos e a avaliação e condução da vida atual. No fim do capítulo, formula de modo sintético a conseqüência: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis, progredindo sempre na obra do Senhor, certos de que vossas fadigas não são em vão, no Senhor” (1Cor 15,58). É exigente (cf. também 15,30-31) a ‘obra do Senhor’, isto é, o agir fiel segundo o exemplo de Jesus, mas esse esforço não é vão, porque conduz à ressurreição, à vida feliz com o Senhor ressuscitado. As conseqüências da ressurreição de Jesus descrevem-se também em Cl 3,1-11 onde, entre outras coisas, se diz: “Se, pois, ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto, onde Cristo está entronizado à direita de Deus, cuidai das coisas do alto, não do que é da terra. ... Portanto, mortificai o que pertence à terra...” O discurso tem uma sua delicadeza, pelos vários planos que aí se entrecruzam: Cristo ressuscitou; da sua glorificação participamos todos nós; isso acontece numa modalidade não completa, menos ainda automática; exige-se uma participação intencional do interlocutor humano; este deve discernir entre o que tem origem na terra ou é inspirado na carne e o que pertence à ordem na qual se encontra Cristo. Porque Cristo nos precedeu na condição escatológica, o mundo dos valores terrenos não desaparece, mas assume as suas reais proporções, redimensionando-se, e se relativiza. 2) O juízo 141. De vez em quando Paulo refere-se ao juízo que nos aguarda. O que tivermos feito nesta vida será objetivamente avaliado pelo Senhor e receberá dele uma recompensa adequada. Tal fato deve impelir-nos a viver de maneira responsável, para poder esperar confiantemente a avaliação do Senhor. Em Rm 14,10-12 Paulo afirma: “É diante do tribunal de Deus que todos nós compareceremos. ... Cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus.” Coloca-se assim em relevo o aspecto da responsabilidade. Se a vida terminasse no nada, seria igual para todos e tornaria indiferente o modo como tivéssemos conduzido a nossa vida terrena. Mas a nossa vida é orientada para uma prestação de contas para a qual é relevante e decisivo o nosso presente modo de viver. Os seres humanos têm um modo próprio de julgar pessoas e acontecimentos, mas Paulo adverte: “Meu juiz é o Senhor...Ele trará à luz o que estiver escondido nas trevas, e manifestará os projetos dos corações; então, cada um receberá de Deus o devido louvor” (1Cor 4,4-5). A avaliação do Senhor é a única adequada e válida, porque só ele conhece todas as nuanças das ações humanas. O êxito do juízo será conseqüente às ações de cada um durante a vida e se diversificará em cada caso: “Todos temos de comparecer às claras perante o tribunal de Cristo, para cada um receber a devida recompensa, prêmio ou castigo, do que tiver feito, de bem ou de mal, ao longo de sua vida corporal” (2Cor 5,10). O modo concreto da retribuição para aqueles que eventualmente sejam condenados é expresso de modo muito genérico: (“ira e condenação”, “tribulação e angústia”: Rm 2,8-9), ou então de modo negativo (“não terão parte no reino de Deus”: 1Cor 6,10; Gl 5,21). O destino dos que serão salvos será sempre uma “graça”, jamais um simples mérito: consistirá na “vida eterna no Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 6,23). d. A perspectiva escatológica no Apocalipse 142. No quadro geral da escatologia própria do Apocalipse, a vinda de Cristo recebe um relevo característico. Ela não é vista como um retorno instantâneo, conclusivo e espetacular – possivelmente realizado mediante uma descida do céu – mas como uma presença que, crida e percebida como atual, atravessa num crescendo toda a espessura da história, desenvolvendo-se até a sua plenitude. Nesse quadro, o Apocalipse, na linha de uma continuidade com a escatologia realizada do evangelho de João, sublinha a presença atual de Cristo ressuscitado em meio à sua Igreja e no mundo. Tal presença, veiculada pela ação do Espírito (cf. Jo 14,16-18), dá lugar, poderíamos dizer, a uma nova fase da encarnação na qual o “Crucificado Ressuscitado” faz pressão antes diretamente sobre a Igreja e depois também através da ação múltipla da própria Igreja sobre o resto do mundo, tendendo progressivamente a impregnar todos e tudo dos seus valores e da sua vitalidade. O êxito final dessa ação, pela qual Cristo está como que ramificando-se na história, será por um lado a desativação e a destruição de todas as concretizações históricas do mal atuadas pelo Demoníaco e, por outro lado, a situação de convivência e participação num nível altíssimo de amor entre Cristo, Deus, o Espírito e a Igreja, como há de realizar-se enfim na nova Jerusalém. 1) A vinda de Cristo na Igreja 143. Um primeiro aspecto se refere à Igreja vista de dentro, e é colocado em evidência na primeira parte do Apocalipse (Ap 1,4—3,22): é uma vinda de Cristo que a atinge e a envolve exatamente como Igreja, sempre entendida na dialética relevada mais acima entre Igreja local e Igreja universal. Os textos que a explicitam (Ap 2,5.16;3,11), como também o contexto geral (Ap 2-3) no qual estão inseridos, mostram que essa vinda se manifesta numa presença crescente e sempre mais envolvente de Cristo no âmbito da sua Igreja. As implicações morais dessa vinda-presença de Cristo comportam antes de tudo, por parte da Igreja, uma atitude confirmada e renovada de fé e de disponibilidade, que lhe permite acolher a ação de Cristo sobre ela. Mais especificamente são depois exigidas à Igreja as opções morais contidas nos imperativos que lhe são dirigidos: “Converte-te!” (2,5.16; 3,1.19), “não temas medo dos sofrimentos que vais passar!” (2,10), “segurai bem o que tendes, até que eu venha!” (2,25), “lembra-te daquilo que tens aprendido e ouvido, observa-o e converte-te!” (3,3), “ama com amor de ciúme” (3,19). Sobretudo à Igreja é inculcada a exigência imprescindível da escuta do Espírito (2,7.11.17.29; 3,6.13.22) que, na segunda parte do Apocalipse, a guiará ao fazer as escolhas morais apropriadas para cooperar para a vinda de Cristo que se realiza na história. 2) A presença-vinda de Cristo na história 144. Na segunda parte do Apocalipse há um deslocamento significativo da ação de Cristo ressuscitado: do âmbito interno da Igreja para o mundo dos homens que ainda estão fora dela. Tal mundo sofre a pressão do Demoníaco que tende a modelá-lo segundo um tipo de vida oposto ao que é querido e projetado por Deus, um anti-reino, mesmo uma espécie de anti-criação. O Apocalipse releva alguns detalhes desse impulso demoníaco: ele não age diretamente mas insinua-se, mediante a mentira, nas estruturas humanas existentes e age por meio delas. Mas em oposição ao sistema terrestre encontra-se o sistema de Cristo. Este é constituído antes de tudo pelo próprio Cristo expresso na figura do Cordeiro (5,6), que caracteriza toda a segunda parte do Apocalipse. Toda essa atividade, própria do Cristo-cordeiro, o Apocalipse interpreta-a como uma vinda. É a vinda de Cristo na história, em paralelo com a sua vinda na Igreja. As implicações morais indicativas da vinda intra-histórica de Cristo que se está realizando são múltiplas, mas baseiam-se todas no fato de que os cristãos – como já vimos acima – medeiam, na qualidade de “sacerdotes de Deus e de Cristo” (20,6), entre a pressão da parte de Cristo para penetrar nos detalhes da história e a sua realização. Deverão os cristãos ter a audácia de dar à luz o seu Cristo (12,1-6), implantando na história os seus valores, até à plenitude escatológica que assinalará a conclusão da sua vinda. 3) A vinda na sua plenitude escatológica 145. A vinda no interior da Igreja, como já observamos, é toda assinalada pelo amor de Cristo, numa reciprocidade que, exigindo um retorno no mesmo comprimento de onda, se situa no esquema humano do noivado. A Igreja é agora a noiva que se prepara para tornar-se esposa e o faz cooperando ativamente para a vinda de Cristo na história. Quando afinal essa vinda se realizar, chegarão também “as núpcias do Cordeiro” (19,7). A Igreja, agora esposa e não mais noiva, terá a capacidade de amar Cristo com amor paritético, correspondente ao de Cristo, e Cristo dará à sua esposa a riqueza infinita da qual ele é portador (21,9—22,5). Um desenvolvimento progressivo encontra-se também na vinda de Cristo na história. Ela comporta – na sua conclusão – uma desativação de todas as forças do mal, protagonistas ativas da anti-criação. Desaparecem, assim, da cena da história os “reis da terra” (19,17-19), a primeira e a segunda Fera (19,20), “o diabo que os havia seduzido” (20,10), raiz de todo o mal da anti-criação (21,10). No fim, cai Babilônia, expressão e símbolo do anti-reino, da anti-criação realizada (18,2). Ao mundo de antes sucede um mundo todo invadido da novidade de Cristo (21,1). O autor do Apocalipse prenuncia esses resultados escatológicos a uma Igreja ainda a caminho. Olhando para a frente, para o termo escatológico, a Igreja, que experimenta agora a alegria tormentosa de um amor crescente, sabe que, um dia, conseguirá amar Cristo como Cristo a ama. Empenhada como está na superação do mal e no potenciamento do bem junto a Cristo que vem, ela sabe, olhando para o futuro escatológico, que o mal oprimente da anti-criação acabará, também com o seu esforço. Da mesma forma, todo o bem que deriva da novidade de Cristo, que estará inserido na história graças também à sua contribuição, atingirá na nova Jerusalém o máximo do seu desenvolvimento. A Igreja sente-se de fato como a noiva que está preparando o vestido de esposa. (19,8). 4) Conclusão 146. Todos os componentes dessa complexa economia da espera e da preparação dão origem, na Igreja, a um impulso para o melhor, para um “mais” que se exprime numa invocação ardorosa: “O Espírito e a noiva dizem: ‘Vem!’” (22,17). A essa invocação o próprio Cristo dá repetidamente uma resposta que é garantia: “Eis que eu venho em breve” (22,7), “Sim, eu venho em breve” (22,20a). Promete, com isso, como iminente uma fase da sua vinda, não a conclusão escatológica, e pressiona a Igreja para que preste atenção (“eis que”, literalmente, “vede”). Ele virá em breve, e a Igreja o verá, aquele “mais” de Cristo – no âmbito intra-eclesial e no resto do mundo – ao qual a Igreja aspira. Constituirá uma etapa na realização da nupcialidade e da nova Jerusalém. 2.5.2. Orientações para hoje a. O ser humano diante do presente 147. A vida humana reporta-se primariamente ao presente. O presente é belo, sombra fugaz do eterno presente de Deus, tem a segurança da posse, qualifica-se com a espessura do concreto. O presente é apreciado também porque é o único momento no qual se exerce a responsabilidade e o empenho humano. Contudo, o presente caracteriza-se por limites evidentes, devidos às suas inseguranças e imperfeições de um lado e à sua condição efêmera de outro. O presente é insuficiente a si mesmo, como demonstram todos os sistemas de pensamento fechados numa visão de autonomia ilusória e como o demonstra a experiência da nossa época – não pela primeira vez na história – com a derrubada das ideologias. A ilusão posta no presente e a desilusão que daí deriva constantemente pode provocar a fuga para o consumismo, sempre mais refinado e exasperado, o qual porém carece de perspectiva e se torna fonte de novas desilusões. E não se pode esperar superá-lo, enquanto se permanece no quadro imanente do secularismo. A esperança traz equilíbrio ao descompasso do presente, porque é abertura motivada para um futuro que tem a sua garantia na firmeza eterna de Deus. Hb 13,14 declara de modo peremptório: “Não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da que está para vir”. Nada é tão eficaz na explicitação de uma norma de ação e de vida como a consciência da dimensão efêmera na qual se move o que se deseja e se realiza no presente: cria-se necessariamente uma hierarquia dos valores na qual a referência última é feita a um outro, não só a si mesmo, a um futuro e não só ao presente. O Outro é o Senhor ressuscitado, que foi “preparar-nos um lugar” (Jo 14,2) e que também continua como interlocutor escondido de um quotidiano que experimenta todas as dificuldades e as alegrias da fé e da esperança. A fé impõe a superação do imediato. A esperança traz uma antecipação do futuro, em diálogo contínuo de amor com Aquele que é passado, presente e futuro. b. Apelo ao heroísmo 148. Por esse interlocutor suave, que enche e ilumina o futuro do crente, são apresentadas exigências e trazidas expectativas radicais. Elas têm a pretensão de ser o último valor e de exigir o sacrifício de qualquer outra coisa. Nasce aqui o apelo ao heroísmo do testemunho no sacrifício. O nosso tempo conhece muitos exemplos de martírio, de renúncia, motivada pelo amor, a um presente que pode ser sacrificado em vista de um futuro maior. Tem-se objetado à religião – e em particular ao cristianismo – que ela exerce sobre o presente o influxo nefasto que corta as asas ao empenho pela transformação do sistema inaceitável de opressão, resumido na expressão “ópio do povo”. O discípulo do Senhor ressuscitado sabe que isso não corresponde à verdade, porque a pertença ao Reino impõe a obrigação da luta por uma ordem sempre mais próxima àquela pela qual o seu Redentor morreu e cada dia continua a agir até a sua manifestação total. Exatamente porque Cristo ressuscitado antecipou e prepara esse futuro, tem sentido a subordinação de todos os valores intermediários e o máximo empenho no testemunho. No quadro desse empenho constata-se felizmente a harmonia que corre entre os objetivos intermediários autênticos e a meta final. Jesus empenhou-se em combater a doença e a fome exatamente em ordem àquela libertação final de todo mal que será alcançada no momento da perfeita união com ele. Nesse sentido, a esperança cristã não é simplesmente orientada para o futuro, mas tem diretas conseqüências morais para a vida presente. Essa é a implicação moral daquilo que pode ser chamado “escatologia realizada”, o que significa que o cristão se sente obrigado a viver agora em vista do futuro que a fé na ressurreição antecipa e deseja plenamente. A fé cristã na ressurreição corpórea e na transformação final do mundo criado pode também dar uma motivação moral e espiritual profunda no que se refere à ecologia e ao respeito pela vida humana (cf. Rm 8,18-21). c. Da perspectiva escatológica a uma concretização sempre nova 149. O quadro das finalidades na perspectiva revelada sugere válidas orientações para as novidades oferecidas por um quotidiano em contínuo movimento. A discussão que surge para as novas decisões move-se sempre no plano dos princípios, que se apelam aos valores da autonomia da decisão humana, dos direitos da ciência, da inviolabilidade da consciência e também, em última análise, da preferência a dar ao mais forte. O critério da tensão escatológica concorre para corrigir essas posições. O horizonte do ser humano não é delimitado pela sua personalidade mas sim pelo diálogo com uma personalidade bem maior e fidedigna; não se exaure nos confrontos do presente mas antes o ultrapassa para verificar-se num futuro que, só ele, será “final”. As suas decisões são portanto válidas somente se tomadas em diálogo com o seu Criador e Salvador, e somente se chegarem a uma realização que seja válida não só para o presente mas também para o futuro sem termo. 2.6. Sexto critério específico: O discernimento 150. Todos concordam que não se pode pôr no mesmo plano todas as regras morais enunciadas pela Bíblia, e também não se pode atribuir valor igual a todos os exemplos de moralidade que ela apresenta. Aqui, para escopos tanto pedagógicos como teóricos, pareceu-nos útil desenvolver a exposição em torno a uma noção-chave em teologia moral: a prudência. Ela implica, no plano da inteligência, que se possua o senso das proporções e, no plano da decisão prática, que se tomem precauções. Por um lado, de fato, é necessário distinguir as normas fundamentais, que têm valor obrigatório universal, dos simples conselhos ou ainda dos preceitos ligados a uma etapa da evolução espiritual. Por outro lado, a prudência exige que antecipadamente se pesem os próprios atos, que se reflita sobre o seu alcance, sobre suas conseqüências, de forma a identificar os danos que eles comportam e evitar, na aplicação dos princípios, os erros e mesmo os riscos inúteis. Em matéria de moral, a Sagrada Escritura fornece os elementos essenciais de um são discernimento. Isto se efetua em três planos: literário, espiritual comunitário, e espiritual pessoal. 2.6.1. Dados bíblicos a. Discernimento literário 151. Um juízo moral correto e depurado que se inspire na Escritura supõe necessariamente uma leitura crítica dos textos, que leve em conta, antes de tudo, a dimensão canônica (cf. Pontifícia Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, I.C.1.). 1) Contexto literário Por princípio, é imprudente referir-se a uma norma legislativa ou a um relato exemplar da Bíblia fazendo abstração do seu contexto literário. Devem-se observar também os gêneros e as formas literárias (imperativos, casuística, catálogos, códigos, exortações, sapienciais etc.), que muitas vezes indicam o peso de um discurso ético. A autoridade particular de certos textos, em matéria moral, resulta precisamente da sua posição literária. Já temos verificado esse critério de discernimento para o Decálogo e o Sermão da montanha, especialmente para as Bem-aventuranças, que são o fundamento respectivamente da primeira Lei e da nova Lei: a precedência exprime a autoridade máxima de um e do outro texto. Mais ainda, o lugar que ocupam no cânon da Escritura reforça a estrutura teológica de base “dom-lei” que explicamos detalhadamente na primeira parte. Relatos de salvação bem elaborados precedem o Decálogo, seja no livro do Êxodo seja no Deuteronômio, e o mesmo se verifica antes do Sermão da montanha. 2) Fundamento teológico Para fundamentar uma decisão moral hoje entre as normas enunciadas pela Bíblia, dar-se-á particular atenção àquelas que estão providas de um fundamento e uma justificação teológica. Chega-se assim a distinguir melhor o que reflete a cultura de uma época e o que tem valor transcultural. Por exemplo, na primeira parte do código da aliança (Ex 21,1—22,19), as prescrições não comportam qualquer fundamento teológico; elas correspondem provavelmente à elaboração escrita de um direito local usual, que reflete a justiça exercida à porta das cidades, visando regular as relações sociais. Na sua formulação e no seu conteúdo, essas leis casuísticas às vezes estão muito próximas de prescrições recolhidas nos diversos códigos do antigo Oriente Próximo: em particular, as leis que se referem à libertação periódica dos escravos (Ex 21,2-11). Ao contrário, na secção apodíctica do código da aliança (Ex 22,20—23,9), como no código deuteronômico, a lei é muitas vezes dotada de um fundamento teológico: por exemplo, a proximidade do SENHOR para com as categorias sociais mais pobres (Ex 22,20-26), ou ainda a referência explícita à história das origens de Israel (Dt 15,12-15; 16,10-12). Essa relação de continuidade e descontinuidade entre a reflexão moral das comunidades crentes e a da sociedade circunstante encontra-se igualmente no Novo Testamento. Assim, as “tábuas dos deveres domésticos” de Ef 5,21—6,9 e Cl 3,18—4,1, mesmo que não tenham paralelos literários estritos na literatura grega, são marcadas pela cultura e a sabedoria do seu tempo. A fé em Cristo dá um significado específico às relações sociais entre patrões e escravos e às relações familiares entre pais e filhos, entre maridos e mulheres, mesmo assumindo a cultura na qual elas têm origem. Para iluminar a ética familiar e social de hoje se dará portanto preferência às motivações teológicas: tomar Cristo como modelo (Ef 5,23.25-27.29), inspirar-se na pedagogia de Deus (6,4), fazer a sua “vontade” (6,6), imitar o “Senhor nos céus”, que “não faz acepção de pessoas” (6,9), procurar “o que é belo no Senhor” (Cl 3,20), cultivar o “temor do Senhor” (3,22) – compreendendo-o no sentido de um profundo respeito religioso – agir em tudo “para o Senhor” (3,23), na perspectiva da “recompensa” final (Ef 6,7-8; Cl 3,20—4,1). Quanto aos modelos sociológicos então em vigor, em boa e sã exegese, é claro que não se deve potenciá-los indevidamente a ponto de reconhecer-lhes um valor perene. A busca de modelos mais adequados ao nosso tempo, no caso em que faltem, se processará antes sobre outro aspecto essencial de discernimento: o discernimento espiritual, sobretudo comunitário. 3) Pano de fundo cultural Mesmo com falta de fundamento ou justificação teológica, chega-se muito bem a determinar se uma norma bíblica é ou não aplicável tal e qual na situação de hoje. A exegese concorre analisando o pano de fundo cultural. Tomemos dois exemplos de proibições alimentares. Antes de tudo, “não cozinharás o cabrito no leite de sua mãe” (Ex 23,19: 34,26; Dt 14,21). Esse costume cananeu, atestado em Ugarit, passou através três tradições bíblicas que se consideram geralmente diferentes e deu lugar no judaísmo a regras alimentares complexas, que a Igreja respeita mas não sentiu jamais a necessidade de assumi-las. Isso, porque, do ponto de vista da exegese cristã, elas dependem de uma cultura particular. O outro exemplo é mais delicado: “Não comer do sangue”. Também nesse caso, a proibição se encontra em mais de uma tradição do Antigo Testamento (Lv 3,17; 7,26; Dt 12,23-24); e o Novo Testamento assume-a sem reticência, ao ponto de impô-la aos cristãos vindos do paganismo (At 15,29; 21,25). Do ponto de vista da exegese, a justificação explícita da proibição não é propriamente teológica, mas provém antes de uma representação simbólica: “a vida (nefesh) de um ser vivo está no sangue” (Lv 17,11.14; Dt 12,23). Depois da idade apostólica, a Igreja não se sentiu mais obrigada, apenas com esse fundamento, a emitir regras precisas para o açougue e a cozinha, e menos ainda nos nossos tempos, para proibir as transfusões de sangue. O valor transcultural subjacente às duas proibições, o único que pode e deve inspirar toda a ética, é o respeito devido a cada criatura viva. E o valor transcultural subjacente à decisão particular da Igreja, em At 15, é a preocupação de favorecer a integração harmoniosa dos diversos grupos, mesmo a preço de compromissos provisórios. 4) Continuidade A continuidade com a qual um tema moral aparece em textos bíblicos diversos, tanto do ponto de vista das tradições literárias, dos autores e da datação, quanto dos gêneros literários, leva a considerar esse tema como estruturante e essencial para a interpretação moral de todo o córpus bíblico. Por exemplo, a atenção privilegiada aos pobres responde a esse critério de continuidade. Encontra-se esse tema de uma ponta à outra da Escritura. Baste aduzir um argumento a fortiori: Ben Sirá, embora sendo adepto da boa comida, do vinho e das viagens, faz da atenção aos pobres como um leitmotiv do seu escrito de sabedoria. 5) Refinamento da consciência Enfim, no discernimento moral importa levar em conta o refinamento progressivo da consciência moral, em particular na leitura global dos dois Testamentos. Não há necessidade de especificar sobre esse assunto. Múltiplos exemplos já foram aduzidos e comentados, quando expusemos o terceiro critério específico: a progressão. b. Discernimento comunitário 152. Com toda a evidência, o processo do discernimento não poderia limitar-se ao processo exegético, mesmo se quisesse usar os diversos recursos conjuntos dos vários métodos hoje em voga. A propósito da Escritura, a comunidade é um lugar essencial de discernimento. 1) Antigo Testamento A seu modo, o Antigo Testamento mostra-o desde o momento em que evoca a necessidade de uma evolução das regras da vida comunitária de Israel, em função de situações históricas ou sociais novas. Tomemos um exemplo, que não é banal, se se pensa na revalorização dos direitos femininos no nosso tempo. O livro dos Números trata de maneira inédita da questão da herança da descendência feminina de uma tribo ou clã (Nm 27,1-11; 36,1-12). Moisés é apresentado como o mediador habilitado para expor ao Senhor os pedidos da comunidade e para comunicar ao povo a resposta legislativa que dele provém. O texto alterna, portanto, a expressão das necessidades do povo, a intervenção de mediadores qualificados (Moisés, Eleazar), e a autoridade soberana do Senhor. 2) Novo Testamento Acontece que, nas escolhas a fazer, com referência à lei ou ao costume, se fica embaralhado nos detalhes. Detalhes aos quais se dá importância, ou também que momentaneamente têm de fato importância. Como fazer a distinção entre o essencial, não negociável, e o acessório, negociável? O Novo Testamento, em matéria de discernimento eclesial, deixou-nos um documento tocante: At 15,1-35. A problemática era nova. Alguns, na comunidade, queriam obrigar os pagãos, que faziam a opção pelo cristianismo, a fazerem também a opção pelo judaísmo por completo, incluindo a circuncisão, devidamente prescrita pela Torá (Gn 17,10-14), também para os estrangeiros residentes no país (Ex 12,48-49). No plano moral, isso colocava o problema da obediência a uma vontade expressa de Deus. O relato dos Atos indica os componentes essenciais de um discernimento prudente: um caminho comunitário, a busca de uma solução e a decisão: a) “Então os apóstolos e os anciãos reuniram-se para tratar desse assunto” (At 15,6). Hoje analisa-se esse tipo de procedimento em termos de corresponsabilidade, de sinodalidade. b) Para encontrar uma solução adequada, os responsáveis procuram distinguir o urgente (os valores de fundo a serem garantidos) e o possível (a possibilidade de absorpção de cada uma das partes em causa). Intervêm quatro personagens: Pedro dá a orientação de fundo (não impor fardos inúteis), invocando três motivos teológicos: Deus não faz distinção entre as pessoas; o Espírito Santo suscitou os mesmos sinais entre os pagãos como entre os judeus; e, sobretudo, a fé é pura gratuidade de Deus (15,7-11). Paulo e Barnabé fazem falar a experiência, a linguagem dos fatos (15,12). No fim Tiago, o sábio, propõe um compromisso: não obrigações extra; mas, ao menos, evitar os escândalos e ter em conta uns aos outros (15,13-21). Compromisso provisório, sobre um ponto ou outro, para resolver a crise aqui e agora. Pouco depois, o próprio Paulo circuncidará Timóteo... por respeito aos judeus (At 16,1-13). Quanto às proibições morais, as relativas aos idolótitos e às carnes pouco ou não sangradas (15,20), não continuaram por muito tempo na Igreja, como o informa a história posterior. O motivo dessa decisão prudencial então era claro e circunstancial: reconstituir a unidade na comunidade. Quanto ao valor transcultural subjacente, podemos exprimi-lo assim: a abertura à diferença, a um certo pluralismo sociológico, que já estava preparado pelo tema veterotestamentário da circuncisão do coração (Dt 10,16; Jr 4,4; cf. Rm 2,25-29). c) Enfim, comunica-se o resultado do discernimento por meio de uma carta coletiva (15,23-29). Quatro elementos chamam mais particularmente a atenção. Antes de tudo, o efeito divisor das decisões tomadas sem mandato, fora da comunhão da Igreja (15,24). Depois, a declaração: “Pois decidimos, o Espírito Santo e nós...” (15,28), sinal evidente de um discernimento propriamente espiritual, efetuado na deliberação e na oração. Notemos também, para a escolha dos delegados, a abertura a uma consulta mais ampla, que envolve “toda a Igreja” (15,22). Enfim o apelo, não à obediência cega, mas à consciência moral das comunidades destinatárias da mensagem (15,29b). c. Discernimento pessoal 153. No parágrafo precedente tratamos de um discernimento que se apóia, por assim dizer, sobre uma “consciência coletiva” iluminada pelo Espírito Santo. Como tal, o termo “consciência coletiva”, tornado popular sobretudo a partir de Émile Durkheim, pertence ao registro terminológico moderno. Na Bíblia, a palavra syneidêsis aplica-se estritamente ao campo da consciência pessoal, na maior parte das vezes em referência a um juízo moral. Uma vez, “consciência” moral e “pensamento” são colocados em paralelo; e duas vezes “consciência” e “coração” (kardía): este último na Bíblia hebraica (lêbâb) é sede e símbolo da reflexão, da opção fundamental, da decisão moral. Fala-se de consciência boa, má, pura ou purificada, bela, irrepreensível, débil ou falsa. Para o discernimento, a consciência pessoal, iluminada pelo Espírito Santo, é um terceiro lugar, importante entre todos. 1) Paulo dá um exemplo de discernimento sobre um problema que, no seu tempo, era espinhoso: podiam os cristãos, sem perturbação de consciência, comer carnes consagradas no quadro do culto idolátrico e depois vendidas no mercado (1Cor 8,1—11,1)? O apóstolo, com uma dialética hábil e apoiada na sua autoridade, confronta dois tipos de argumentos. Em favor do sim, alega um fundamento teológico: “um ídolo não é nada”, portanto, comer a carne em questão não tem em si qualquer qualificação moral (8,4.8; 10,19.23.30). Além disso, afirma um direito inalienável: a soberana liberdade do crente (9,1.4.19). Mas a essa argumentação opõe-se um princípio moral que parte da prudência prática e que, na decisão final, deve levar a melhor: a delicadeza na caridade. Esta pode mandar que se renuncie a um direito (9,5), que se retifique o próprio agir tendo em conta a “consciência fraca” dos outros, de modo a evitar o escândalo (8,7-13; 10,23-24.28-29.32-33). Aquele que come o idolótito sem ter em conta os outros não peca contra a fé (contraposição), mas sim contra o amor (dimensão comunitária). 2) Outro texto elaborado (1Cor 7,1-39) mostra ainda melhor como, a partir de uma questão espinhosa e nova, surgida na comunidade, se efetue o discernimento prático. Como julgar o valor respectivo dos estados de vida em relação à ética cristã? Aqui Paulo distingue quatro tipos de indicações, que se podem ordenar em gradação descendente, quanto à força obrigatória. a) Antes de tudo uma prescrição do próprio Senhor, portanto irreformável, pois se apóia numa palavra explícita do Evangelho: “a mulher não se separe do marido” (1 Cor 7,10: cf. Mt 5,32; 19,9). Quando apesar de tudo se verifica a separação, o mandamento implica ou não contrair outro matrimônio ou um processo de reconciliação (1Cor 7,10-11). b) Mas que fazer quando um caso não é previsto pelo evangelho? Paulo, tão pastor como teólogo, confronta-se com o problema concreto do matrimônio entre cristão e não cristão. Se este último “começa e continua a ser santificado” (nuance do perfeito grego) pelo seu cônjuge, isto é, se há co-habitação harmoniosa e certa abertura espiritual, o preceito evangélico realiza-se sem problema; mas se o cônjuge não cristão opta pela separação, o outro, na opinião de Paulo, fica livre. O apóstolo esclarece desde o início que ele se apóia somente na sua autoridade: “Sou eu que o digo, não o Senhor” (7,12-16). c) Paulo afronta a seguir a questão da virgindade (7,25-38), estado de vida que não era geralmente valorizado no mundo judaico. Ele a recomenda, mas só como um conselho: “não tenho nenhum mandamento do Senhor; mas como alguém que, por misericórdia de Deus, merece confiança, dou uma opinião”. Invoca dois argumentos: um de conveniência prática, evitar as preocupações (7,32-35); o outro teológico e espiritual, a brevidade do tempo (7,29-31). Mais brevemente Paulo aplica o mesmo tipo de discernimento espiritual à situação das viúvas, concluindo: “acho que eu também tenho o Espírito de Deus” (7,39-40). d) O outro parecer dado por Paulo corresponde diretamente à questão inicial trazida pela comunidade: o fundamento da abstinência sexual, por motivos espirituais, para um casal (7,1-9). Também aqui o apóstolo usa prudência no seu discernimento. Avalia os riscos concretos de uma posição radical demais, em matéria de sexualidade conjugal. Autoriza a abstinência como “uma concessão e não uma ordem”, com três condições: o acordo mútuo dos cônjuges, o caráter provisório (só “por um tempo”), e sobretudo o objetivo essencialmente espiritual (“dedicar-se à oração”). E aproveita a ocasião para afirmar a perfeita reciprocidade e igualdade dos cônjuges na livre disposição do corpo do outro. 2.6.2. Orientações para hoje 154. Evidentemente não é possível aplicar essas considerações a todas as problemáticas novas com as quais se defronta a moral no contexto atual: globalização da economia, das comunicações e dos intercâmbios, superpopulação, transtornos nos ofícios e profissões, desenvolvimento de tecnologias militares sofisticadas, emergência de uma sociedade de prazeres, desmonte da estrutura familiar tradicional, educação e confessionalidade etc. Baste indicar alguma amostra que possa ajudar não só os moralistas mas os grupos e indivíduos que querem inspirar-se na Escritura, para praticarem um são discernimento. 1) Em matéria de moralidade como em qualquer outro campo, a Igreja desaprova toda utilização fundamentalista da Escritura, que se faça, por exemplo, isolando um preceito bíblico do seu contexto histórico, cultural e literário. Uma sã leitura crítica ajuda a distinguir, por um lado, as normas ou as práticas válidas para todos os tempos e lugares e, por outro lado, aquelas que puderam ser necessárias em determinada época ou num ambiente geográfico particular e depois se tornaram desusadas, obsoletas e inaplicáveis. Mais que a exegese dos próprios textos é a teologia bíblica, com o seu olhar de conjunto sobre um e outro Testamento, que permite não tratar jamais um problema moral como um vaso estanque, mas sempre no eixo dos grandes horizontes da revelação de Deus. 2) Para boa parte dos casos, a ética recorre aos recursos da razão. Já vimos como a Bíblia tem muito em comum com a sabedoria dos povos (convergência). Mas ela sabe contestar, remar contra a corrente (contraposição). E superar (progressão). A moral cristã não pode de modo algum evoluir independentemente desse sopro novo e misterioso que lhe vem das luzes do Espírito Santo. Mais que racional e sapiencial, o discernimento moral dos crentes é espiritual. Intervém aqui o tema importantíssimo da formação da consciência. Embora o Novo Testamento associe apenas uma vez explicitamente os dois termos “consciência” moral e “Espírito Santo” (Rm 9,1), é claro que em regime cristão o “discernimento entre o bem e o mal” tem por fecho de abóbada “os elementos essenciais das palavras de Deus” (Hb 5,12-14), que conduzem “à perfeição” (6,1) “aqueles que, uma vez iluminados, saborearam o dom celeste e tiveram parte no Espírito Santo” (6,4). Paulo alude à “renovação do pensamento”, não em “conformidade com o mundo presente”, mas “discernindo o que é da vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12,1-2; cf. Ef 5,10; Hb 12,21). 3) Esse discernimento é eminentemente pessoal, e por isso na moral católica tem sido sempre apresentada a consciência como a última instância de decisão. Mas no processo – nunca definitivamente completado – da formação da consciência, o crente tem a responsabilidade e o dever de confrontar o seu próprio discernimento com o dos responsáveis pela comunidade. Nesse caso, os modelos fornecidos, entre outros, por At 15 e 1Cor 7-8, permanecerão sempre como fonte indispensável de inspiração no processo de discernimento eclesial frente às novas problemáticas. Em suma, a propósito da Escritura, a difícil conciliação entre a autonomia pessoal e a docilidade às luzes do Espírito Santo, dadas à Igreja e através da Igreja, fazem parte integrante do processo de discernimento moral.
155. Tendo em conta o desenvolvimento das abordagens interdisciplinares sempre mais sofisticadas para tratar as grandes questões que se referem ao ser humano, e ainda tendo em conta mais especificamente a complexidade atual das problemáticas morais tanto no plano individual como no plano coletivo, o presente documento não pretende ser outra coisa senão uma modesta semente de reflexão. Todavia, ele encerra pontos de originalidade não desprezíveis, dos quais destacamos sobretudo três. Além disso, o documento abre algumas perspectivas para o futuro. 156. 1) O fato de fundamentar na Sagrada Escritura o conjunto da nossa reflexão convida a considerar a moral antes de tudo não do ponto de vista do ser humano mas do ponto de vista de Deus. Daí o conceito de “moral revelada”, que pode ser útil, se for bem compreendido. Nele, como o vimos, a nossa abordagem distingue-se, desde o início, da ética e das morais naturais, fundadas essencialmente na razão. A vantagem potencial é dupla. Antes de tudo, no plano teórico: a moral assim concebida supera de longe o alcance de um código de comportamentos a adotar ou a evitar, ou também uma lista de virtudes a praticar e de vícios a combater para assegurar a ordem social e o bem-estar da pessoa. Ela inscreve-se num horizonte propriamente espiritual, onde a acolhida do dom gratuito de Deus precede e orienta a resposta do ser humano. Ora, em muitos dos nossos contemporâneos, cristãos e não cristãos, percebe-se uma forte necessidade de redefinir a visão das coisas num horizonte espiritual e uma busca ativa nesse sentido. Uma moral tão exigente como a propõe a Bíblia, tanto do ponto de vista espiritual quanto social, não é estranha às aspirações conscientes ou inconscientes da humanidade pós-moderna. Uma moral que não nos fecha em nós mesmos mas nos abre os olhos para os outros, especialmente para os pobres, de perto e de longe, e nos torna inquietos e nos impele à ação em seu favor. Segundo: no plano prático, uma abordagem como a que propomos ajuda a definir melhor três equívocos às vezes subtis, que ameaçaram e ainda ameaçam mais de uma instância educativa, tanto no plano dos valores humanos como no plano da fé: uma espécie de casuística, de legalismo e moralismo estreitos. Restituir cada espécie de preceitos ao horizonte de fundo do dom de Deus, como o sugere a Bíblia no seu conjunto, confere-lhes um relevo e uma força de expressão realmente nova. 157. 2) Em total respeito pelo texto fundador do Decálogo, propusemos uma sua leitura axiológica, isto é, em termos de valor, que abre um campo moral programático, em vez de somente proibitivo e prescritivo, um campo dinâmico, por certo mais exigente, mas paradoxalmente mais atraente, conforme às sensibilidades éticas e morais da maioria dos nossos contemporâneos. No seu Sermão da montanha, também ele da mesma forma fundamental e fundante, Jesus abre claramente a estrada nessa direção. A vantagem salta aos olhos: o desenvolvimento de uma moral percebida como estimulante mais que esmagadora, que respeita e favorece os caminhos, põe em movimento em direção ao Reino e educa as consciências, em vez de dar a impressão de uma capa de chumbo colocada sobre os ombros (cf. Mt 11,29-30). 158. 3) Outro elemento de originalidade deste documento consiste na apresentação sistemática de oito critérios gerais e específicos, deduzidos da própria Bíblia, para tratar questões morais atuais, mesmo na ausência de respostas definitivas que exigirão o recurso a outros mecanismos de reflexão e de decisão. Mais que fornecer diretivas claras e precisas, que superam em muitos casos as nossas competências de exegetas, desejamos simplesmente favorecer, com a nossa reflexão, a abordagem da moral, se necessário, segundo um espírito diferente, um sopro novo, haurido precisamente da Escritura. A moral cristã aparecerá assim em toda a riqueza dos seus traços complementares: - preocupada prioritariamente com a dignidade humana fundamental (conformidade à visão bíblica do ser humano); - procurando o seu modelo perfeito em Deus e em Cristo (conformidade ao exemplo de Jesus). - respeitosa da sabedoria das diversas civilizações e culturas, e portanto capaz de ouvir e de dialogar (convergência); - corajosa em denunciar e refrear toda opção moral incompatível com a fé (contraposição); - inspirada na evolução das posições morais, no interior da Bíblia e na história posterior, para educar as consciências num refinamento moral sempre maior, que se inspira na “nova justiça” do Reino (progressão); - capaz de conciliar os direitos e as aspirações da pessoa, fortemente afirmados em nossos dias, com as exigências e os imperativos da vida coletiva, expressos na Escritura em termos de “amor” (dimensão comunitária); - hábil em sugerir um horizonte moral que, estimulado pela esperança de um futuro absoluto, supere o olhar míope que se limita às realidades terrestres (finalidade); - preocupada em abordar com prudência as questões difíceis, com o tríplice recurso aos progressos da exegese, à iluminação das autoridades eclesiais e à formação de uma consciência dirigida pelo Espírito Santo, de maneira a não causar “curto circuito” no delicado processo do juízo moral (discernimento). 159. O que precede mostra bem, por um lado, algumas linhas de força e, por outro lado, também o caráter inacabado, por certo impossível de levar a pleno cumprimento, de um documento da Comissão Bíblica sobre moral. Certos problemas continuam abertos. Recordemos, para citar apenas um exemplo, o conceito de “lei natural”, da qual se pensa encontrar um esboço em Paulo (cf. Rm 1,18-32; 2,14-15), mas que implica, pelo menos na sua formulação tradicional, categorias filosóficas exteriores à Escritura. Desejamos, porém, que a nossa reflexão possa suscitar três tipos de atividades complementares. 160. 1) Antes de tudo o diálogo. É desejável que não empenhe só os especialistas na Igreja católica, como teólogos moralistas e exegetas, mas que encontre um eco junto aos crentes de outras confissões cristãs, que participam do mesmo tesouro das Escrituras, e também junto aos crentes de outras religiões, que procuram também eles níveis elevados de vida moral. Mais em particular, um diálogo fecundo com os judeus, nossos “irmãos maiores”, pode ajudar-nos reciprocamente a situar as múltiplas leis, às vezes relativas, no eixo fundamental da Lei teológica, considerada como um “caminho” de salvação dado gratuitamente à humanidade. A moral bíblica não pode ser imposta a outros que não têm a mesma fé, porém, uma vez que ela visa melhorar a natureza e a condição do ser humano e da sociedade, é uma proposta válida que se espera seja tomada em séria consideração também por aqueles que estão empenhados num procedimento espiritual, mesmo se de outro tipo. 161. 2) Pensamos também que uma reflexão como a nossa, despertando algum interesse, poderia ajudar os pastores e os teólogos a encontrar estratégias mediáticas apropriadas a fim de que o ensinamento moral da Igreja seja percebido sob um aspecto positivo e em toda a sua riqueza. Por certo, para ser fiel a Cristo e ao serviço da humanidade, a Igreja não pode abster-se de apresentar com clareza os direitos e os deveres do crente e de cada ser humano, e por isso não pode prescindir de certas regras e proibições. Mas a contraposição, sobretudo quando assume o estilo de uma luta considerada necessária, não é senão um dos oito critérios que enunciamos. Apresentar a “moral revelada” em toda a sua amplidão e fecundidade, no eixo da Escritura, poderia traçar os contornos de uma pedagogia renovada. 162. 3) Enfim, para ter continuação, o presente documento necessitará, estamos convencidos, de um esforço de vulgarização. Só assim poderá levar ajuda aos pastores, aos animadores pastorais, aos catequistas, aos professores, sem esquecer os pais cristãos, que têm a missão bela e insubstituível de educar os seus jovens para a vida, para a fé, para o uso de uma liberdade responsável, e de guiá-los sobre a estrada da verdadeira felicidade, que culmina além do mundo presente.
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