CARTA DO CARDEAL AGOSTINO CASAROLI,
Senhor Cardeal Com prazer foi informado Sua Santidade que se vai celebrar em breve em Acapulco o II Congresso Internacional sobre a família das Américas, organizado pela WOOMB, tendo o propósito de estudar e meditar detidamente sobre o modo de por em prática os ensinamentos e a Exortação Apostólica Familiaris Consortio. Por esse motivo, encarregou-me o Santo Padre de transmitir aos organizadores, peritos convidados e todos os participantes, a sua saudação, a sua mensagem e afectuosa bênção. É de notar, primeiramente, que este Encontro se realiza na América Latina, o continente da esperança, entre cujos traços humanos mais característicos sobressai o arraigado sentido da família (Puebla, 570), com os seus reconhecidos valores de amor entre os esposos, de sincera comunicação entre pais e filhos, de instintivo cuidado das crianças, de atenção quanto aos jovens, capacidade de sacrifício e ajuda interfamiliar em momentos de necessidade. Por outro lado, estas admiráveis particularidades, que são enobrecidas por um profundo substrato cristão comum, vêem-se envolvidas por vezes nos "resultados negativos do desenvolvimento" (Puebla, 571); isto é natural que desperte grande preocupação e faça que a família da América Latina seja credora de especial solicitude pastoral, como já indicou o Papa João Paulo II no discurso inaugural da III Assembleia Plenária do Conselho Episcopal LatinoAmericano em Puebla: "Fazei todos os esforços — dizia — para que haja uma pastoral familiar. Atendei a campo tão prioritário com a certeza de que a evangelização no futuro depende em grande parte da "Igreja doméstica". É a escola do amor, do conhecimento de Deus, do respeito à vida, à dignidade do homem. Esta pastoral é tanto mais importante quanto a família é objecto de muitas ameaças. Pensai nas campanhas favoráveis ao divórcio, no uso de práticas anticonceptivas e no aborto, que destroem a sociedade". Neste contexto, o vosso Congresso quer ser um serviço à família e à pastoral familiar. Ambos os aspectos têm vastíssimo horizonte, que se enquadra dentro da "nova cultura que está surgindo" e do "novo humanismo", de que fala a Exortação "Familiaris Consortio" (n. 8). Trata-se aqui duma cultura e dum humanismo alheios a todo o individualismo, em consonância com o ser próprio do homem "feito à imagem de Deus" e consequentemente reflexo do ser mesmo de Deus, que "no seu mistério mais íntimo não é uma solidão mas uma família", como belamente se expressou Sua Santidade na homilia feita em Puebla (Puebla, 582). Diante de tão vasto objectivo, a pastoral familiar, debaixo da guia responsável dos Bispos, consiste precisamente em despertar múltiplas iniciativas encaminhadas para fomentar o crescimento dos membros e a sua conexão entre eles dentro da grande família do Povo de Deus: o Corpo místico de Cristo, em que o amor divino se revela em toda a sua plenitude. "A família" — lemos na "Familiaris Consortio" (n. 17) — "recebe a missão de guardar, revelar e comunicar o amor, como reflexo vivo e participação real do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo Senhor pela Igreja Sua esposa". Daí que "remontar ao princípio do gesto criador de Deus seja uma necessidade para a família, se quer conhecer-se e realizar-se segundo a verdade interior do seu ser e da sua actuação histórica" (Ibid. n. 17). É certo que essa verdade, para ser entendida e aceita, há-de ser expressa com palavras e símbolos adequados à linguagem do homem moderno; mas não é menos certo que a beleza e a grandeza do amor humano são em todo o tempo uma participação, parcial ainda que não por isso menos autêntica, do amor de Deus e ao mesmo tempo como a forma normal em que o homem pode chegar a compreender a formosura e a plenitude do amor de Deus. Assim como a Igreja defende o .homem, a sua vida, a sua dignidade e os seus direitos, defende também o amor humano, "que é a sua vocação fundamental e congénita" (Familiaris Consortio, n. 11), nas suas diversas expressões como amor conjugal, paterno e materno, como amor virginal, de amizade, amor fraterno, etc. É precisamente o amor conjugal aquele que hoje parece encontrar-se especialmente ameaçado. Ameaça-o a instabilidade e a insegurança do vínculo matrimonial, e mesmo a negação dele por parte de tantos jovens, que hoje vivem um amor desprovido da solidez e profundidade que procura o ser fiel. O amor conjugal também se vê ameaçado por separar-se arbitrariamente a íntima relação que existe entre o amor dos esposos e a transmissão da vida. Esta é dom de Deus; tem por isso mesmo uma origem, que não está só no poder do homem, e uma dignidade inviolável. Os progressos científicos modernos tornaram possível e facilitaram relações sexuais desprovidas de toda a comunicação da mesma vida. Por estas razões, advertia já o Papa a necessidade dum aprofundamento da doutrina da Igreja neste importante capítulo, "facilitando a sua compreensão...; deste modo o plano divino poderá ser realizado cada vez mais plenamente para a salvação do homem e glória do Criador" (Familiaris Consortio, 31). Como parte constitutiva da concepção cristã do amor e particularmente do amor conjugal, é necessário acentuar a virtude da castidade, que leva a que a sexualidade se exercite no seu pleno sentido humano e cristão, segundo o querer de Deus. A educação para a castidade constitui uma "absoluta necessidade" (Familiaris Consortio, 33) para o crescimento são e pleno do amor humano. O amor entre esposos deve ser não puramente instintivo nas suas manifestações, mas humano, orientado pelos grandes ideais, e cristão, animado pelo Espírito do Senhor, compenetrado pelo amor de Cristo à Sua Igreja, do qual os esposos hão-de ser um reflexo o mais fiel possível. A vivência plenamente humana e religiosa do amor chega à plena valorização da vida, já que no acto de gerar um filho, o homem, em íntima união com Deus Criador, está dando vida, atributo que é próprio de Deus. Por isso o Concílio Vaticano II falou de "paternidade responsável", sinónimo de atitude cristã diante da transmissão da vida, como acto consciente, livre, praticado em íntima conexão com o desígnio criador de Deus, fonte assim de profunda espiritualidade. Quanto não foi desvirtuado o termo "paternidade responsável" ao fazê-lo aparecer quase como sinónimo de não paternidade, dum "não" à vida! Por isso é necessário lutar para lhe desenvolver o verdadeiro sentido. Para a tornar possível, o homem deve conhecer profundamente a sexualidade humana e as condições da fertilidade. Os conhecimentos científicos acerca do mundo externo e as suas leis levaram a um prodigioso progresso técnico que mudou em poucos decénios a face dó mundo. O conhecimento do homem mesmo, das profundidades do seu próprio ser e destino como ser livre e responsável, e o domínio que o homem alcançou de si mesmo e das suas capacidades, foi, não obstante, imensamente inferior. "O progresso da técnica e o desenvolvimento da civilização do nosso tempo... exigem um desenvolvimento proporcional da moral e da ética. Entretanto, este último parece, por desgraça, ter ficado atrás", escrevia o Santo Padre na Encíclica Redemptor Hominis (n. 15). O mau uso da liberdade, a incapacidade de assumir plenamente as suas responsabilidades, o enfraquecimento do sentido moral — na acepção mais ampla e profunda do termo — faz que o homem não seja dono de si mesmo nem dos descobrimentos que realiza, de maneira que estes se voltam contra ele, ameaçam-no e destroem-no como homem. Com razão pode perguntar o Santo Padre se todas essas invenções fizeram o homem mais homem, mais humano, mais aberto aos outros, mais disponível para dar ajuda a todos, especialmente aos mais necessitados (cf. Redemptor Hominis, n. 15). O conhecimento da sexualidade humana, dos seus ritmos de fecundidade, foi aumentando visivelmente nos últimos anos, graças ao trabalho paciente e competente de médicos, psicólogos, sociólogos e investigadores de diversas disciplinas. Devemos estar profundamente agradecidos a todos os que tornaram possível este melhor conhecimento da sexualidade humana e das condições da fecundidade. E nesta altura é necessário fazer uma menção especial ao casal Billings. E devemos ainda alegrar-nos de coração, por todo o progresso neste campo. Pensando na imensidade do trabalho por realizar, o Santo Padre exorta-vos a unir as forças, a evitar críticas entre grupos que representam diversos métodos e a trocar mutuamente as vossas experiências para mais rápido e eficaz progresso em tão importante campo. A Igreja apoia todos os esforços que se façam e se inspirem nos seus grandes princípios. A sua doutrina não se identifica, todavia, com nenhum dos métodos em particular. Esse conhecimento deve ser usado para o exercício duma autêntica paternidade responsável, que implica uma relação conjugal inspirada pelo respeito e pelo amor, alimentada pelo diálogo e vivida em todos os momentos da vida quotidiana. O vosso Encontro é uma ocasião privilegiada para trocar experiências, aprofundar os conhecimentos que em diversas partes do mundo fostes adquirindo, aperfeiçoar cada vez mais a aplicação do método que escolhestes, para assim prestar um serviço cada vez mais fecundo a este valioso trabalho em favor da pastoral da família. Os meros conhecimentos científicos não bastam para que se cumpram as finalidades que se buscam. A eles devem juntar-se as motivações éticas e a capacidade pessoal para as pôr em prática, que apenas são possíveis quando há profunda vida espiritual, alimentada pela Palavra divina e pelos Sacramentos. Deste modo, o vosso Encontro levar-vos-á a um crescimento mais profundo das fontes mesmas da espiritualidade cristã e farão destes dias um momento de graça para todos os participantes. Não podemos concluir estas considerações sem pensar que existem, apesar de tudo, numerosas famílias que vivem situações extremamente difíceis — pensemos por exemplo em vastos sectores de aguda pobreza do terceiro mundo — em que a realização da norma moral que expressa o ideal cristão pode apresentar-se como irrealizável. Sem deixar de manter a sua validez, deverá fazer-se grande esforço pastoral para fortalecer a fé dessas pessoas, levando-as gradualmente ao conhecimento e à realização do ideal evangélico (cf. Familiaris Consortio, n. 9), na medida efectiva das suas forças. Há-de também trabalhar-se afincadamente para ir superando as condições de vida próprias do subdesenvolvimento, que tornara quase impossível um desenvolvimento cultural, humano e espiritual, como Deus quer para os Seus filhos. As normas gerais da moral hão-de aplicar-se para iluminar os casos pessoais à luz da verdade e da misericórdia, segundo o exemplo de Jesus. É conhecido por todos vós o profundo interesse que Sua Santidade depositou na família. Desta depende o futuro da humanidade, desta depende em grande parte a evangelização no futuro. Por isso o Santo Padre está profundamente agradecido a todos os que trabalham pela família e compartilham com ela a esperança que deposita nas famílias cristãs para a renovação da sociedade e a vitalização da comunidade cristã. Neste espírito, a vós, aos cooperadores na organização do Encontro, a todos os vossos familiares e seres queridos, faz de coração que chegue a sua Bênção Apostólica, como penhor da luz e da ajuda divina. Aproveito esta ocasião para expressar-lhe, Senhor Cardeal, os meus sentimentos de sincera e devota estima em Cristo. Vaticano, 11 de Agosto de 1982.
AGOSTINO Card. CASAROLI
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