INTERVENÇÃO DA DELEGAÇÃO DA SANTA SÉ 21 de Março de 2002
Este é um momento verdadeiramente memorável. Os líderes e os especialistas no campo das finanças e do desenvolvimento, provenientes do mundo inteiro, reuniram-se para falar sobre as questões que nos hão-de ajudar a encontrar modos realistas e funcionais de abordar o problema da eliminação da pobreza e ainda o do progresso da família humana. O próprio facto da realização deste encontro é, de certa forma, já uma conquista em si mesmo. O caminho para Monte Rei teve início em 1997, com a adopção da Agenda para o Desenvolvimento e levou-nos a reflectir e a traçar caminhos para o financiamento do desenvolvimento. Além disso, em cada uma das recentes Conferências, Encontros e Sessões Especiais da Organização das Nações Unidas, foram promovidos debates nos campos da economia e do financiamento do desenvolvimento. No chamado Encontro do Milénio, os líderes dos vários governos voltaram a comprometer-se na consecução de uma série de objectivos na área do desenvolvimento, entre as quais a eliminação da pobreza e a oferta do acesso aos serviços sociais elementares, incluindo a saúde, a educação e a água potável. Senhor Presidente No mundo contemporâneo, um número demasiado elevado de famílias é obrigado a preocupar-se com a sua sobrevivência e não lhe é concedido o luxo de participar como actor no seu próprio desenvolvimento; demasiadas pessoas são forçadas a migrar e outras tantas continuam a ser esmagadas pela pobreza mais absoluta, vivendo em países onde o peso da dívida torna impossível o seu acesso aos serviços sociais básicos e à salvaguarda social em geral. Nesta perspectiva, o financiamento do desenvolvimento deve abordar todos os aspectos da vida, do indivíduo, da família, da comunidade e do mundo inteiro. Os acontecimentos dos últimos meses, que se verificaram diante dos nossos olhos, forçaram-nos a todos nós a reconhecer o carácter único do género humano. Estes acontecimentos, que continuam a ter um efeito nas nossas vidas e dizem respeito directo à vida de muitas outras pessoas, unem-nos no nosso caminho conjunto em ordem à promoção do bem-estar de todos os povos. Todos esperam poder dar testemunho de um renovado desejo colectivo de ajudar as pessoas que vivem dentro dos confins ideológicos, políticos e geográficos que estão para além da pobreza. O desenvolvimento é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma questão que diz respeito ao indivíduo. Os seres humanos constituem o centro das nossas solicitudes pelo desenvolvimento sustentável. Através do desenvolvimento, os povos do mundo inteiro recebem a oportunidade de alcançar o progresso. Estas oportunidades são com frequência o produto da laboriosidade humana e, através do desenvolvimento, o espírito humano da criatividade pode libertar-se, em benefício de toda a humanidade. Historicamente, o financiamento ocupou o seu lugar no contexto do debate acerca do desenvolvimento. Contudo, em muitos casos, a tarefa é demasiado grande para que uma comunidade ou nação a consiga realizar sozinha. O desafio latente é a adopção de uma atitude de solidariedade entre todos os povos. As decisões financeiras e os seus delineamentos sólidos contribuem de maneira evidente e eficaz para o desenvolvimento e, neste sentido, para o bem comum global. Enquanto são componentes essenciais, as boas intenções e a boa vontade não serão suficientes para realizar um desenvolvimento que seja verdadeiro e sustentável. O financiamento do desenvolvimento constitui uma mistura de boas intenções, recursos e várias abordagens, com o potencial da contribuição para o desenvolvimento e o bem-estar de todas e de cada pessoa. A Santa Sé tem demonstrado constantemente a sua solicitude pelo desenvolvimento social e económico dos povos do mundo inteiro e pelos modos de alcançar este mesmo desenvolvimento. Há mais de cem anos, o Papa Leão XIII publicou a primeira grande Carta Encíclica social, intitulada Rerum novarum. Nela, o Sumo Pontífice confirmou as ideias que haveriam de tornar-se uma inspiração para a política social dos anos vindouros: "Cada programa destinado a aumentar a produção não deve ter em vista outra finalidade senão a de servir a pessoa humana, nomeadamente: diminuir as desigualdades, eliminar a discriminação, libertar os homens das cadeias da servidão e torná-los capazes de melhorar a sua própria condição na ordem temporal, alcançar o desenvolvimento moral e aperfeiçoar os seus dotes espirituais. Quando falamos de desenvolvimento, devemos prestar atenção tanto ao progresso social como ao crescimento económico em geral"(1). Em 1967, na sua Carta Encíclica Populorum progressio, o Papa Paulo VI revigorou a posição da Igreja, no que diz respeito à ligação existente entre a paz e o desenvolvimento social e económico. Estas são as suas palavras: "Por conseguinte, quando combatemos a miséria e lutamos contra a injustiça, estamos a defender não só a prosperidade do homem, mas também o seu desenvolvimento espiritual e moral e, portanto, a promover o bem-estar de toda a raça humana"(2). Por este motivo, a Santa Sé continua a comprometer-se no processo permanente do desenvolvimento dos povos. Vinte anos depois da Encíclica Populorum progressio, o Papa João Paulo II considerou o trabalho que tinha sido levado a cabo no passado recente e formulou votos para a obra que daí derivaria, incluindo os debates desta Conferência: "Impõe-se verificar que, apesar dos louváveis esforços feitos nos últimos dois decénios, por parte das nações mais desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento e das Organizações internacionais, com o objectivo de encontrar as vias para sair da situação, ou pelo menos para remediar algum dos seus sintomas, as condições se agravaram consideravelmente. Todavia, é necessário denunciar a existência de mecanismos económicos, financeiros e sociais que, embora sejam conduzidos pela vontade dos homens, funcionam muitas vezes de maneira quase automática, tornando mais rígidas as situações de riqueza de uns e de pobreza dos outros. Estes mecanismos, manobrados - de maneira directa ou indirecta - pelos países mais desenvolvidos, com o seu próprio funcionamento favorecem os interesses de quem os manobra, mas acabam por sufocar ou condicionar as economias dos países menos desenvolvidos. Apresenta-se como necessário submeter mais adiante estes mecanismos a uma análise atenta, sob o aspecto ético-moral"(3). Senhor Presidente A Santa Sé acredita convictamente que qualquer esforço em benefício do desenvolvimento deve analisar as ramificações morais da actividade económica e do seu financiamento, à luz de uma visão comparativa da pessoa humana. Trata-se de uma interacção absolutamente essencial, um imperativo moral que, com muita frequência, tem sido esquecido no diálogo sobre a ética da vida económica. A verdadeira solicitude pelo desenvolvimento dos povos não se pode conceder a um reducionismo, mas há-de respeitar as reivindicações autênticas tanto da economia como da moral. A dignidade humana deve ser o valor central para o financiamento do desenvolvimento. Esta solicitude autêntica há-de ter em consideração o íntimo relacionamento existente entre a centralidade da pessoa humana e a actividade económica, realçando o carácter subjectivo do trabalho do homem e o seu lugar no contexto da criatividade humana. Como o Papa João Paulo II afirma: "As causas morais da prosperidade... residem numa vasta gama de virtudes: laboriosidade, competência, ordem, honestidade, iniciativa, frugalidade, parcimónia, espírito de serviço, cumprimento da palavra dada, ousadia - em síntese, amor pelo trabalho bem feito. Nenhum sistema ou estrutura social pode resolver, como se fosse por magia, o problema da pobreza fora destas virtudes"(4). Um dos princípios éticos fundamentais do ensinamento social da Santa Sé é o princípio do destino universal dos bens da criação. Uma expressão clarividente deste princípio foi proposta pelo Papa Paulo VI: "Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para o uso de todos os homens e de todas as nações, de tal maneira que as coisas criadas, justamente distribuídas, devem beneficiar todos os homens sob a orientação da justiça e tendo a caridade como companheira. Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, inclusive os direitos à propriedade e o direito ao livre comércio, hão-de subordinar-se a esta norma; não a podem impedir mas, pelo contrário, devem apressar a sua aplicação. Considere-se uma séria e urgente obrigação social, referir estes direitos à sua finalidade original"(5). O mundo contemporâneo está obscurecido por uma paz frágil e caracteriza-se por promessas não cumpridas. Um número demasiado alto de pessoas vive sem esperança, com poucas oportunidades de realizar um futuro melhor para si mesmo, os seus filhos e as gerações vindouras. É a busca de uma solução para esta falta de esperança, para esta obscuridade do desespero que há-de alimentar o trabalho permanente da comunidade mundial, e que ajudou os Governos a fazer esta declaração durante o Encontro Mundial sobre o Desenvolvimento Social: "Reunimo-nos aqui para nos comprometermos a nós mesmos, os nossos Governos e as nossas Nações na promoção do desenvolvimento social no mundo inteiro, de tal forma que os homens e as mulheres, de maneira especial aqueles que vivem na pobreza, possam exercer os direitos, utilizar os recursos e compartilhar as responsabilidades que os hão-de tornar capazes de levar uma vida satisfatória e contribuir para o bem-estar das suas famílias, das suas comunidades e de toda a humanidade(6)". Os governos não podem permitir que o Documento de Consenso de Monte Rei, nem os resultados dos debates e das deliberações consideradas durante estes dias, sejam esquecidos ou postos de parte. Não podemos permitir que o trabalho desta Conferência termine aqui; pelo contrário, devemos considerá-lo como uma renovação do compromisso que ele realmente é. E enfim, a Família das Nações não pode permitir que passe sequer um só dia sem que uma autêntica tentativa de alcançar as finalidades e de realizar o progresso sustentável em ordem à eliminação da pobreza seja procurada com toda a energia e resolução possíveis. Já se fez algum progresso durante os debates que levaram ao bom êxito desta Conferência. Façamos com que aqueles que observam o trabalho que já realizámos e olham com esperança para os próximos passos a dar na implementação e na cooperação, compreendam que há esperança, que há compromisso e que existe um movimento honesto rumo à eliminação da pobreza, ao desenvolvimento de todos os povos e sociedades e um bom fundamento para a edificação de um futuro melhor para toda a humanidade. Obrigado, Senhor Presidente! Notas 1) PAPA LEÃO XIII, Rerum novarum, sobre as condições das classes trabalhadoras, 34 (15 de Maio de 1891). 2) PAPA PAULO VI, Populorum progressio, sobre a promoção do desenvolvimento dos povos, 76 (26 de Março de 1967). 3) PAPA JOÃO PAULO II, Sollicitudo rei socialis, sobre a solicitude social, 16 (30 de Dezembro de 1987). 4) PAPA JOÃO PAULO II, "Discurso à Comissão Económica da Organização das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe", em: Origin 16 (16 de Abril de 1987), pág. 775. 5) PAPA PAULO VI, Populorum progressio, sobre a promoção do desenvolvimento dos povos, 22 (26 de Março de 1967). 6) Declaração de Copenhaga, n. 9, Encontro Mundial sobre o Desenvolvimento Social, Copenhaga, Dinamarca (6-12 de Março de 1995).
|
|