DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO
AO CORPO DIPLOMÁTICO
ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ
Sala Régia
Segunda-feira, 13 de Janeiro de 2014
Eminência, Excelências,
Senhoras e Senhores!
Quer uma tradição, já longa e consolidada, que o Papa, no início de cada novo ano, encontre o Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé para formular venturosos votos e apresentar algumas reflexões, que brotam primariamente do seu coração de pastor, atento às alegrias e sofrimentos da humanidade. Por isso, é motivo de grande alegria o encontro de hoje. Permite-me formular a vós, pessoalmente, às vossas famílias, às autoridades e aos povos que representais os meus mais sinceros votos de um Ano rico de bênçãos e de paz.
Agradeço, antes de mais, ao Decano Jean-Claude Michel, que deu voz, em nome de todos, às expressões de afecto e estima que unem as vossas nações à Sé Apostólica. Sinto-me feliz por vos ver de novo aqui, tão numerosos, após o nosso primeiro encontro que teve lugar poucos dias depois da minha eleição. Entretanto foram acreditados uma série de novos Embaixadores, a quem renovo as boas-vindas; e, dentre aqueles que nos deixaram, não posso passar sem mencionar, como fez o vosso Decano, o falecido Embaixador Alejandro Valladares Lanza, durante muitos anos Decano do Corpo Diplomático, que o Senhor chamou a Si alguns meses atrás.
O ano que terminou foi particularmente denso de acontecimentos não só na vida da Igreja, mas também no âmbito das relações que a Santa Sé mantém com os Estados e as Organizações Internacionais. Lembro, em particular, o estabelecimento das relações diplomáticas com o Sudão do Sul, a assinatura de acordos, de base ou específicos, com Cabo Verde, Hungria e Chade, e a ratificação do acordo com a Guiné Equatorial que fora assinado em 2012. E, a nível continental, também cresceu a presença da Santa Sé, quer na América Central, onde se tornou Observador Extra-Regional junto do Sistema de la Integración Centroamericana, quer na África, com a acreditação do primeiro Observador Permanente junto da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental.
Na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, dedicada à fraternidade como fundamento e caminho para a paz, assinalei que «a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da família» (Mensagem para o XLVII Dia Mundial da Paz, 8 de Dezembro de 2013, 1), a qual, «por vocação, deveria contagiar o mundo com o seu amor» (Ibid., 1) e contribuir para fazer maturar aquele espírito de serviço e partilha que edifica a paz (cf. ibid., 10). Isto mesmo vemos narrado no Presépio, onde a Sagrada Família não aparece sozinha nem isolada do mundo, mas rodeada pelos pastores e os magos; por outras palavras, é uma comunidade aberta, na qual há espaço para todos, pobres e ricos, vindos de perto e de longe. Assim se compreendem as palavras do meu amado predecessor Bento XVI, quando sublinhava que «a linguagem familiar usa um léxico de paz» (Bento XVI, Mensagem para o XLI Dia Mundial da Paz, 8 de Dezembro de 2007, 3: AAS 100 (2008), 39).
Muitas vezes, infelizmente, isto não acontece, porque aumenta o número das famílias divididas e dilaceradas não só pela frágil consciência do sentido de pertença que caracteriza o mundo actual, mas também pelas difíceis condições em que muitas delas são forçadas a viver, chegando ao ponto de lhes faltarem os próprios meios de subsistência. Por isso, tornam-se necessárias políticas adequadas que apoiem, promovam e consolidem a família.
Além disso, sucede que os idosos sejam considerados um peso, enquanto os jovens não vêem à sua frente perspectivas seguras para a sua vida. E, no entanto, idosos e jovens são a esperança da humanidade: os primeiros trazem a sabedoria da experiência, enquanto os segundos nos abrem ao futuro, impedindo de nos fecharmos em nós mesmos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 108). Sábia opção é não marginalizar os idosos da vida social, para se manter viva a memória dum povo. De igual modo, é bom investir nos jovens, com iniciativas adequadas que os ajudem a encontrar trabalho e fundar um lar doméstico. É preciso não apagar o seu entusiasmo! Conservo viva na mente a experiência da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Pude encontrar tantos jovens contentes! Havia tanta esperança e expectativa nos seus olhos e nas suas orações! Tanta sede de vida e tanto desejo de se abrir aos outros! O egoísmo e o isolamento criam sempre uma atmosfera asfixiante e pesada, que mais cedo ou mais tarde acaba por estiolar e sufocar. Ao contrário, serve um compromisso comum de todos para favorecer uma cultura do encontro, porque só quem consegue ir ao encontro dos outros é capaz de dar fruto, criar vínculos, criar comunhão, irradiar alegria, construir a paz.
Vimos uma confirmação disto mesmo – caso fosse necessária – nas imagens de destruição e morte que tivemos diante dos olhos no ano que passou. Quanto sofrimento, quanto desespero causa o fechamento em si mesmo, que pouco a pouco toma o rosto da inveja, do egoísmo, da rivalidade, da sede de poder e de dinheiro! Parece, às vezes, que tais realidades estejam destinadas a dominar; mas, o Natal infunde em nós, cristãos, a certeza de que a palavra última e definitiva pertence ao Príncipe da Paz, que muda «as espadas em relhas de arado e as lanças em foices» (cf. Is 2, 4) e transforma o egoísmo em dom de si mesmo e a vingança em perdão.
É com esta confiança que desejo olhar para o ano que está à nossa frente. Por isso, não cesso de esperar que tenha finalmente termo o conflito na Síria. A solicitude por aquela amada população e o desejo de evitar o agravamento da violência levaram-se a proclamar um dia de jejum e oração, em Setembro passado. Por vosso intermédio, agradeço de coração sincero a quantos nos vossos países, autoridades públicas e pessoas de boa vontade, se associaram a esta iniciativa. Agora requer-se uma renovada vontade política comum para pôr fim ao conflito. Nesta linha, espero que a Conferência «Genebra 2», convocada para o próximo dia 22 de Janeiro, marque o início do desejado caminho de pacificação. Ao mesmo tempo, é imprescindível o pleno respeito do direito humanitário. Não se pode aceitar que seja atingida a população civil inerme, sobretudo as crianças. Além disso, encorajo a todos a favorecer e garantir, de todos os modos possíveis, a assistência necessária e urgente de grande parte da população, sem esquecer o louvável esforço ??dos países, especialmente o Líbano e a Jordânia, que generosamente acolheram em seu território os inúmeros refugiados sírios.
Continuando no Médio Oriente, observo com preocupação as tensões que afectam, de vários modos, a Região. Com particular preocupação, vejo prolongar-se as dificuldades políticas no Líbano, onde se torna mais indispensável que nunca um clima de renovada cooperação entre as várias instâncias da sociedade civil e as forças políticas para evitar o agudizar-se de contrastes que podem minar a estabilidade do país. Penso também no Egipto, necessitado de reencontrar a concórdia social, assim como no Iraque, que tem dificuldade em chegar à almejada paz e estabilidade. Ao mesmo tempo, assinalo com satisfação os significativos progressos realizados no diálogo entre o Irão e o «Grupo 5+1» sobre a questão nuclear.
Por toda a parte, a via para resolver as questões em aberto há-de ser o caminho diplomático do diálogo. É a estrada-mestra já apontada, com lúcida clareza, pelo Papa Bento XV, quando convidava os responsáveis das nações europeias a fazerem prevalecer «a força moral do direito» sobre a força «material das armas», para acabar com aquele «inútil massacre» (cf. Bento XV, Carta aos Chefes dos Povos beligerantes, 1 de Agosto de 1917: AAS 9 (1917), 421-423) que foi a I Guerra Mundial, cujo início teve lugar há cem anos. É preciso «a coragem de ultrapassar a superfície conflitual» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 228) para considerar os outros na sua dignidade mais profunda, a fim de que a unidade prevaleça sobre o conflito e seja «possível desenvolver uma comunhão nas diferenças» (Ibid., 228). Neste sentido, é positivo o facto de se terem retomado as negociações de paz entre israelitas e palestinianos, e espero que as Partes estejam determinadas a assumir, com o apoio da Comunidade Internacional, decisões corajosas a fim de se encontrar uma solução justa e duradoura para um conflito, cujo fim se revela cada vez mais necessário e urgente. Motivo incessante de preocupação é o êxodo dos cristãos do Médio Oriente e do Norte da África. O desejo deles é continuarem a fazer parte da colectividade social, política e cultural dos países que ajudaram a construir, e anelam concorrer para o bem comum das sociedades onde querem viver plenamente inseridos como artífices de paz e reconciliação.
Também noutras partes da África, os cristãos são chamados a dar testemunho do amor e da misericórdia de Deus. Não se deve jamais desistir de praticar o bem, mesmo quando é árduo e se padecem actos de intolerância, se não de verdadeira e própria perseguição. Em vastas áreas da Nigéria, não cessam as violências e continua a ser derramado tanto sangue inocente. Pelo meu pensamento perpassa sobretudo a República Centro-Africana, onde a população sofre por causa das tensões que o país atravessa e que já semearam destruição e morte, em várias ocasiões. Ao mesmo tempo que asseguro a minha oração pelas vítimas e os numerosos desalojados, constrangidos a viver em condições de indigência, espero que a solicitude da Comunidade Internacional contribua para fazer cessar as violências, restaurar o estado de direito e garantir a chegada das ajudas humanitárias mesmo nas zonas mais remotas do país. Por sua vez, a Igreja Católica continuará a assegurar a sua presença e colaboração, empenhando-se generosamente por fornecer toda a ajuda possível à população e sobretudo por reconstruir um clima de reconciliação e de paz entre todas as componentes da sociedade. Reconciliação e paz aparecem como prioridades fundamentais também noutras partes do continente africano. Refiro-me particularmente ao Mali, onde já se nota positivamente a restauração das estruturas democráticas do país, e também ao Sudão do Sul, onde, pelo contrário, a instabilidade política do último período já provocou numerosos mortos e uma nova emergência humanitária.
A Santa Sé acompanha com viva atenção também as vicissitudes da Ásia, onde a Igreja deseja compartilhar as alegrias e as aspirações de todos os povos que compõem aquele vasto e nobre continente. Por ocasião do cinquentenário das relações diplomáticas com a República da Coreia, quero implorar, de Deus, o dom da reconciliação na península, com a esperança de que, para bem de todo o povo coreano, as Partes envolvidas não se cansem de procurar pontos de encontro e possíveis soluções. Efectivamente a Ásia tem uma longa história de convivência pacífica entre as suas diversas componentes civis, étnicas e religiosas. É preciso incentivar tal respeito mútuo, sobretudo perante alguns sinais preocupantes do seu enfraquecimento, nomeadamente nas atitudes, em número crescente, de fechamento que, apoiando-se sobre motivos religiosos, tendem a privar os cristãos da sua liberdade e pôr em risco a convivência civil. Inversamente, a Santa Sé olha com viva esperança os sinais de abertura que provêm de países de grande tradição religiosa e cultural, com quem ela deseja colaborar para a edificação do bem comum.
A paz é ferida ainda por toda e qualquer negação da dignidade humana e, primariamente, pela impossibilidade de se alimentar de forma suficiente. Não podem deixar-nos indiferentes os rostos de quantos padecem fome, sobretudo das crianças, se pensarmos quanta comida é desperdiçada cada dia em tantas partes do mundo, mergulhadas naquela que já várias vezes defini como a «cultura do descarte». Infelizmente, objecto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres humanos, que acabam «descartados» como se fossem «coisas desnecessárias». Por exemplo, causa horror só o pensar que haja crianças que não poderão jamais ver a luz, vítimas do aborto, ou aquelas que são usadas ??como soldados, estupradas ou mortas nos conflitos armados, ou então feitas objecto de mercado naquela tremenda forma de escravidão moderna que é o tráfico dos seres humanos, que é um crime contra a humanidade.
Não pode deixar-nos insensíveis o drama das multidões forçadas a fugir da carestia ou das violências e abusos, particularmente no Corno da África e na região dos Grandes Lagos. Muitos deles vivem como deslocados ou refugiados em campos onde já não são consideradas pessoas mas cifras anónimas. Outros, com a esperança duma vida melhor, empreendem viagens de fortuna, que não raro terminam tragicamente. Refiro-me de modo particular aos numerosos emigrantes que, da América Latina, se dirigem para os Estados Unidos, mas sobretudo a quantos, da África ou do Médio Oriente, buscam refúgio na Europa.
Continua viva na minha memória a breve visita que realizei a Lampedusa, no passado mês de Julho, para rezar pelos numerosos náufragos no Mediterrâneo. Perante tais tragédias, infelizmente, verifica-se uma indiferença geral, constituindo um sinal dramático da perda daquele «sentido da responsabilidade fraterna» (Homilia na Santa Missa em Lampedusa, 8 de Julho de 2013) sobre o qual assenta toda a sociedade civil. Naquela ocasião, porém, pude constatar também o acolhimento e a dedicação por parte de tantas pessoas. Desejo ao povo italiano – para quem olho com afecto, nomeadamente pelas raízes comuns que nos unem – que saiba renovar o seu louvável empenho de solidariedade para com os mais frágeis e indefesos e, com o esforço sincero e concorde de cidadãos e instituições, superar as dificuldades actuais, recuperando o clima de criatividade social construtiva que há muito o caracteriza.
Por fim, desejo mencionar outra ferida à paz, que deriva da ávida exploração dos recursos ambientais. Embora «a natureza esteja à nossa disposição» (cf. Mensagem para o XLVII Dia Mundial da Paz , 8 de Dezembro de 2013, 9), com muita frequência «não a respeitamos, nem a consideramos como um dom gratuito de que devemos cuidar e colocar ao serviço dos irmãos, incluindo as gerações futuras» (Ibid., 9). Também neste caso, há que chamar em causa a responsabilidade de cada um para que, com espírito fraterno, se persigam políticas respeitadoras desta terra, que é a casa de cada um de nós. Recordo um adágio popular, que diz: «Deus perdoa sempre, nós às vezes, mas a natureza – a criação – nunca perdoa quando é maltratada». Aliás permanecem diante dos olhos os efeitos devastadores de algumas catástrofes naturais recentes. Em particular, quero lembrar uma vez mais as numerosas vítimas e as graves devastações nas Filipinas e noutros países do sudeste asiático provocadas pelo tufão Haiyan.
Eminência, Excelências,
Senhoras e Senhores!
O Papa Paulo VI observava que «a paz não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens» (Paulo VI, Cart enc. Populorum progressio, 26 de Março de 1967, 76: AAS 59 (1967), 294-295). Este é o espírito que anima a acção da Igreja em todo o mundo, através dos sacerdotes, missionários, fiéis-leigos que, com grande espírito de dedicação, se prodigalizam, para além do mais, em múltiplas obras de carácter educativo, sanitário e assistencial, ao serviço dos pobres, doentes, órfãos e quem quer que precise de ajuda e conforto. A partir desta «atenção amiga» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 199), a Igreja coopera com todas as instituições que têm a peito tanto o bem dos indivíduos como o bem comum.
Por isso, no início deste novo ano, desejo reiterar a disponibilidade da Santa Sé, e particularmente da Secretaria de Estado, em colaborar com os vossos países para favorecer aqueles laços de fraternidade que são reflexo do amor de Deus e fundamento da concórdia e da paz. Sobre vós, as vossas famílias e os vossos povos, desça copiosa a bênção do Senhor. Obrigado!
DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO
AO CORPO DIPLOMÁTICO
ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ
Sala Régia
Segunda-feira, 13 de Janeiro de 2014
Eminência, Excelências,
Senhoras e Senhores!
Quer uma tradição, já longa e consolidada, que o Papa, no início de cada novo ano, encontre o Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé para formular venturosos votos e apresentar algumas reflexões, que brotam primariamente do seu coração de pastor, atento às alegrias e sofrimentos da humanidade. Por isso, é motivo de grande alegria o encontro de hoje. Permite-me formular a vós, pessoalmente, às vossas famílias, às autoridades e aos povos que representais os meus mais sinceros votos de um Ano rico de bênçãos e de paz.
Agradeço, antes de mais, ao Decano Jean-Claude Michel, que deu voz, em nome de todos, às expressões de afecto e estima que unem as vossas nações à Sé Apostólica. Sinto-me feliz por vos ver de novo aqui, tão numerosos, após o nosso primeiro encontro que teve lugar poucos dias depois da minha eleição. Entretanto foram acreditados uma série de novos Embaixadores, a quem renovo as boas-vindas; e, dentre aqueles que nos deixaram, não posso passar sem mencionar, como fez o vosso Decano, o falecido Embaixador Alejandro Valladares Lanza, durante muitos anos Decano do Corpo Diplomático, que o Senhor chamou a Si alguns meses atrás.
O ano que terminou foi particularmente denso de acontecimentos não só na vida da Igreja, mas também no âmbito das relações que a Santa Sé mantém com os Estados e as Organizações Internacionais. Lembro, em particular, o estabelecimento das relações diplomáticas com o Sudão do Sul, a assinatura de acordos, de base ou específicos, com Cabo Verde, Hungria e Chade, e a ratificação do acordo com a Guiné Equatorial que fora assinado em 2012. E, a nível continental, também cresceu a presença da Santa Sé, quer na América Central, onde se tornou Observador Extra-Regional junto do Sistema de la Integración Centroamericana, quer na África, com a acreditação do primeiro Observador Permanente junto da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental.
Na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, dedicada à fraternidade como fundamento e caminho para a paz, assinalei que «a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da família» (Mensagem para o XLVII Dia Mundial da Paz, 8 de Dezembro de 2013, 1), a qual, «por vocação, deveria contagiar o mundo com o seu amor» (Ibid., 1) e contribuir para fazer maturar aquele espírito de serviço e partilha que edifica a paz (cf. ibid., 10). Isto mesmo vemos narrado no Presépio, onde a Sagrada Família não aparece sozinha nem isolada do mundo, mas rodeada pelos pastores e os magos; por outras palavras, é uma comunidade aberta, na qual há espaço para todos, pobres e ricos, vindos de perto e de longe. Assim se compreendem as palavras do meu amado predecessor Bento XVI, quando sublinhava que «a linguagem familiar usa um léxico de paz» (Bento XVI, Mensagem para o XLI Dia Mundial da Paz, 8 de Dezembro de 2007, 3: AAS 100 (2008), 39).
Muitas vezes, infelizmente, isto não acontece, porque aumenta o número das famílias divididas e dilaceradas não só pela frágil consciência do sentido de pertença que caracteriza o mundo actual, mas também pelas difíceis condições em que muitas delas são forçadas a viver, chegando ao ponto de lhes faltarem os próprios meios de subsistência. Por isso, tornam-se necessárias políticas adequadas que apoiem, promovam e consolidem a família.
Além disso, sucede que os idosos sejam considerados um peso, enquanto os jovens não vêem à sua frente perspectivas seguras para a sua vida. E, no entanto, idosos e jovens são a esperança da humanidade: os primeiros trazem a sabedoria da experiência, enquanto os segundos nos abrem ao futuro, impedindo de nos fecharmos em nós mesmos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 108). Sábia opção é não marginalizar os idosos da vida social, para se manter viva a memória dum povo. De igual modo, é bom investir nos jovens, com iniciativas adequadas que os ajudem a encontrar trabalho e fundar um lar doméstico. É preciso não apagar o seu entusiasmo! Conservo viva na mente a experiência da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Pude encontrar tantos jovens contentes! Havia tanta esperança e expectativa nos seus olhos e nas suas orações! Tanta sede de vida e tanto desejo de se abrir aos outros! O egoísmo e o isolamento criam sempre uma atmosfera asfixiante e pesada, que mais cedo ou mais tarde acaba por estiolar e sufocar. Ao contrário, serve um compromisso comum de todos para favorecer uma cultura do encontro, porque só quem consegue ir ao encontro dos outros é capaz de dar fruto, criar vínculos, criar comunhão, irradiar alegria, construir a paz.
Vimos uma confirmação disto mesmo – caso fosse necessária – nas imagens de destruição e morte que tivemos diante dos olhos no ano que passou. Quanto sofrimento, quanto desespero causa o fechamento em si mesmo, que pouco a pouco toma o rosto da inveja, do egoísmo, da rivalidade, da sede de poder e de dinheiro! Parece, às vezes, que tais realidades estejam destinadas a dominar; mas, o Natal infunde em nós, cristãos, a certeza de que a palavra última e definitiva pertence ao Príncipe da Paz, que muda «as espadas em relhas de arado e as lanças em foices» (cf. Is 2, 4) e transforma o egoísmo em dom de si mesmo e a vingança em perdão.
É com esta confiança que desejo olhar para o ano que está à nossa frente. Por isso, não cesso de esperar que tenha finalmente termo o conflito na Síria. A solicitude por aquela amada população e o desejo de evitar o agravamento da violência levaram-se a proclamar um dia de jejum e oração, em Setembro passado. Por vosso intermédio, agradeço de coração sincero a quantos nos vossos países, autoridades públicas e pessoas de boa vontade, se associaram a esta iniciativa. Agora requer-se uma renovada vontade política comum para pôr fim ao conflito. Nesta linha, espero que a Conferência «Genebra 2», convocada para o próximo dia 22 de Janeiro, marque o início do desejado caminho de pacificação. Ao mesmo tempo, é imprescindível o pleno respeito do direito humanitário. Não se pode aceitar que seja atingida a população civil inerme, sobretudo as crianças. Além disso, encorajo a todos a favorecer e garantir, de todos os modos possíveis, a assistência necessária e urgente de grande parte da população, sem esquecer o louvável esforço ??dos países, especialmente o Líbano e a Jordânia, que generosamente acolheram em seu território os inúmeros refugiados sírios.
Continuando no Médio Oriente, observo com preocupação as tensões que afectam, de vários modos, a Região. Com particular preocupação, vejo prolongar-se as dificuldades políticas no Líbano, onde se torna mais indispensável que nunca um clima de renovada cooperação entre as várias instâncias da sociedade civil e as forças políticas para evitar o agudizar-se de contrastes que podem minar a estabilidade do país. Penso também no Egipto, necessitado de reencontrar a concórdia social, assim como no Iraque, que tem dificuldade em chegar à almejada paz e estabilidade. Ao mesmo tempo, assinalo com satisfação os significativos progressos realizados no diálogo entre o Irão e o «Grupo 5+1» sobre a questão nuclear.
Por toda a parte, a via para resolver as questões em aberto há-de ser o caminho diplomático do diálogo. É a estrada-mestra já apontada, com lúcida clareza, pelo Papa Bento XV, quando convidava os responsáveis das nações europeias a fazerem prevalecer «a força moral do direito» sobre a força «material das armas», para acabar com aquele «inútil massacre» (cf. Bento XV, Carta aos Chefes dos Povos beligerantes, 1 de Agosto de 1917: AAS 9 (1917), 421-423) que foi a I Guerra Mundial, cujo início teve lugar há cem anos. É preciso «a coragem de ultrapassar a superfície conflitual» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 228) para considerar os outros na sua dignidade mais profunda, a fim de que a unidade prevaleça sobre o conflito e seja «possível desenvolver uma comunhão nas diferenças» (Ibid., 228). Neste sentido, é positivo o facto de se terem retomado as negociações de paz entre israelitas e palestinianos, e espero que as Partes estejam determinadas a assumir, com o apoio da Comunidade Internacional, decisões corajosas a fim de se encontrar uma solução justa e duradoura para um conflito, cujo fim se revela cada vez mais necessário e urgente. Motivo incessante de preocupação é o êxodo dos cristãos do Médio Oriente e do Norte da África. O desejo deles é continuarem a fazer parte da colectividade social, política e cultural dos países que ajudaram a construir, e anelam concorrer para o bem comum das sociedades onde querem viver plenamente inseridos como artífices de paz e reconciliação.
Também noutras partes da África, os cristãos são chamados a dar testemunho do amor e da misericórdia de Deus. Não se deve jamais desistir de praticar o bem, mesmo quando é árduo e se padecem actos de intolerância, se não de verdadeira e própria perseguição. Em vastas áreas da Nigéria, não cessam as violências e continua a ser derramado tanto sangue inocente. Pelo meu pensamento perpassa sobretudo a República Centro-Africana, onde a população sofre por causa das tensões que o país atravessa e que já semearam destruição e morte, em várias ocasiões. Ao mesmo tempo que asseguro a minha oração pelas vítimas e os numerosos desalojados, constrangidos a viver em condições de indigência, espero que a solicitude da Comunidade Internacional contribua para fazer cessar as violências, restaurar o estado de direito e garantir a chegada das ajudas humanitárias mesmo nas zonas mais remotas do país. Por sua vez, a Igreja Católica continuará a assegurar a sua presença e colaboração, empenhando-se generosamente por fornecer toda a ajuda possível à população e sobretudo por reconstruir um clima de reconciliação e de paz entre todas as componentes da sociedade. Reconciliação e paz aparecem como prioridades fundamentais também noutras partes do continente africano. Refiro-me particularmente ao Mali, onde já se nota positivamente a restauração das estruturas democráticas do país, e também ao Sudão do Sul, onde, pelo contrário, a instabilidade política do último período já provocou numerosos mortos e uma nova emergência humanitária.
A Santa Sé acompanha com viva atenção também as vicissitudes da Ásia, onde a Igreja deseja compartilhar as alegrias e as aspirações de todos os povos que compõem aquele vasto e nobre continente. Por ocasião do cinquentenário das relações diplomáticas com a República da Coreia, quero implorar, de Deus, o dom da reconciliação na península, com a esperança de que, para bem de todo o povo coreano, as Partes envolvidas não se cansem de procurar pontos de encontro e possíveis soluções. Efectivamente a Ásia tem uma longa história de convivência pacífica entre as suas diversas componentes civis, étnicas e religiosas. É preciso incentivar tal respeito mútuo, sobretudo perante alguns sinais preocupantes do seu enfraquecimento, nomeadamente nas atitudes, em número crescente, de fechamento que, apoiando-se sobre motivos religiosos, tendem a privar os cristãos da sua liberdade e pôr em risco a convivência civil. Inversamente, a Santa Sé olha com viva esperança os sinais de abertura que provêm de países de grande tradição religiosa e cultural, com quem ela deseja colaborar para a edificação do bem comum.
A paz é ferida ainda por toda e qualquer negação da dignidade humana e, primariamente, pela impossibilidade de se alimentar de forma suficiente. Não podem deixar-nos indiferentes os rostos de quantos padecem fome, sobretudo das crianças, se pensarmos quanta comida é desperdiçada cada dia em tantas partes do mundo, mergulhadas naquela que já várias vezes defini como a «cultura do descarte». Infelizmente, objecto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres humanos, que acabam «descartados» como se fossem «coisas desnecessárias». Por exemplo, causa horror só o pensar que haja crianças que não poderão jamais ver a luz, vítimas do aborto, ou aquelas que são usadas ??como soldados, estupradas ou mortas nos conflitos armados, ou então feitas objecto de mercado naquela tremenda forma de escravidão moderna que é o tráfico dos seres humanos, que é um crime contra a humanidade.
Não pode deixar-nos insensíveis o drama das multidões forçadas a fugir da carestia ou das violências e abusos, particularmente no Corno da África e na região dos Grandes Lagos. Muitos deles vivem como deslocados ou refugiados em campos onde já não são consideradas pessoas mas cifras anónimas. Outros, com a esperança duma vida melhor, empreendem viagens de fortuna, que não raro terminam tragicamente. Refiro-me de modo particular aos numerosos emigrantes que, da América Latina, se dirigem para os Estados Unidos, mas sobretudo a quantos, da África ou do Médio Oriente, buscam refúgio na Europa.
Continua viva na minha memória a breve visita que realizei a Lampedusa, no passado mês de Julho, para rezar pelos numerosos náufragos no Mediterrâneo. Perante tais tragédias, infelizmente, verifica-se uma indiferença geral, constituindo um sinal dramático da perda daquele «sentido da responsabilidade fraterna» (Homilia na Santa Missa em Lampedusa, 8 de Julho de 2013) sobre o qual assenta toda a sociedade civil. Naquela ocasião, porém, pude constatar também o acolhimento e a dedicação por parte de tantas pessoas. Desejo ao povo italiano – para quem olho com afecto, nomeadamente pelas raízes comuns que nos unem – que saiba renovar o seu louvável empenho de solidariedade para com os mais frágeis e indefesos e, com o esforço sincero e concorde de cidadãos e instituições, superar as dificuldades actuais, recuperando o clima de criatividade social construtiva que há muito o caracteriza.
Por fim, desejo mencionar outra ferida à paz, que deriva da ávida exploração dos recursos ambientais. Embora «a natureza esteja à nossa disposição» (cf. Mensagem para o XLVII Dia Mundial da Paz , 8 de Dezembro de 2013, 9), com muita frequência «não a respeitamos, nem a consideramos como um dom gratuito de que devemos cuidar e colocar ao serviço dos irmãos, incluindo as gerações futuras» (Ibid., 9). Também neste caso, há que chamar em causa a responsabilidade de cada um para que, com espírito fraterno, se persigam políticas respeitadoras desta terra, que é a casa de cada um de nós. Recordo um adágio popular, que diz: «Deus perdoa sempre, nós às vezes, mas a natureza – a criação – nunca perdoa quando é maltratada». Aliás permanecem diante dos olhos os efeitos devastadores de algumas catástrofes naturais recentes. Em particular, quero lembrar uma vez mais as numerosas vítimas e as graves devastações nas Filipinas e noutros países do sudeste asiático provocadas pelo tufão Haiyan.
Eminência, Excelências,
Senhoras e Senhores!
O Papa Paulo VI observava que «a paz não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens» (Paulo VI, Cart enc. Populorum progressio, 26 de Março de 1967, 76: AAS 59 (1967), 294-295). Este é o espírito que anima a acção da Igreja em todo o mundo, através dos sacerdotes, missionários, fiéis-leigos que, com grande espírito de dedicação, se prodigalizam, para além do mais, em múltiplas obras de carácter educativo, sanitário e assistencial, ao serviço dos pobres, doentes, órfãos e quem quer que precise de ajuda e conforto. A partir desta «atenção amiga» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 199), a Igreja coopera com todas as instituições que têm a peito tanto o bem dos indivíduos como o bem comum.
Por isso, no início deste novo ano, desejo reiterar a disponibilidade da Santa Sé, e particularmente da Secretaria de Estado, em colaborar com os vossos países para favorecer aqueles laços de fraternidade que são reflexo do amor de Deus e fundamento da concórdia e da paz. Sobre vós, as vossas famílias e os vossos povos, desça copiosa a bênção do Senhor. Obrigado!
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