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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
 AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO MUNDIAL
 DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL

Sala Régia
Sexta-feira, 15 de novembro de 2019

[Multimídia]


 

Distintas senhoras e senhores!

Em primeiro lugar, quero pedir desculpa pelo atraso. Desculpai, foi um erro de cálculo: dois importantes encontros que se prolongaram... Aconteceu o contrário do que sucedeu no livro de Josué: ali o sol voltou para trás; aqui o relógio, o sol, avançou. Desculpai-me, e obrigado pela vossa paciência.

Saúdo-vos cordialmente e, como no nosso precedente encontro, exprimo a minha gratidão pelo vosso serviço à sociedade e pela vossa contribuição para o desenvolvimento de uma justiça que respeite a dignidade e os direitos da pessoa humana. Gostaria de partilhar convosco algumas reflexões sobre temas que também dizem respeito à Igreja na sua missão de evangelização e de serviço à justiça e à paz. Agradeço as palavras da Professora Paola Severino.

Sobre o estado atual do direito penal

Desde há várias décadas que o direito penal tem vindo a incorporar — principalmente a partir de contributos de outras disciplinas — conhecimentos diferentes sobre certos problemas relacionados com o exercício da função sancionatória. Referi-me a alguns deles no encontro precedente.1

No entanto, apesar desta abertura epistemológica, o direito penal não conseguiu proteger-se das ameaças que, nos nossos dias, dominam as democracias e a plena força do Estado de direito. Por outro lado, o direito penal ignora frequentemente os dados reais, assumindo assim a forma de conhecimento meramente especulativo.

Vejamos dois aspetos relevantes do contexto atual.

1. A idolatria do mercado. A pessoa frágil e vulnerável encontra-se indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, que se tornaram a regra absoluta (cf. Evangelii gaudium, 56; Laudato si’, 56). Hoje, alguns setores económicos exercem mais poder do que os próprios Estados (cf. Laudato si’, 196): uma realidade ainda mais evidente em tempos de globalização do capital especulativo. O princípio da maximização do lucro, isolado de todas as outras considerações, conduz a um modelo de exclusão — automático! — que inflige violentamente os seus custos sociais e económicos àqueles que sofrem no presente, ao mesmo tempo que condena as gerações futuras a pagar os seus custos ambientais.

A primeira coisa que os juristas deveriam perguntar-se hoje é o que podem fazer com os seus conhecimentos para combater este fenómeno, que põe em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade. Em concreto, o presente desafio para cada penalista é conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, no aprisionamento em massa, no apinhamento e na tortura nas prisões, na arbitrariedade e no abuso das forças de segurança, no alargamento do âmbito da pena, na criminalização do protesto social, no abuso da prisão preventiva e na rejeição das mais básicas garantias penais e processuais.

2. Os riscos do idealismo penal. Um dos maiores desafios da ciência penal de hoje é superar a visão idealista que iguala a necessidade de estar com a realidade. A imposição de uma sanção não pode ser moralmente justificada pela alegada capacidade de reforçar a confiança no sistema normativo e pela expetativa de que cada indivíduo assuma um papel na sociedade e se comporte de acordo com o que se espera dele.

O direito penal, também nas suas correntes normativistas, não pode prescindir de dados elementares da realidade, como os que manifestam a operacionalidade concreta da função sancionatória. Qualquer redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, ajuda a esconder as caraterísticas mais autoritárias do exercício do poder.

O dano social dos crimes económicos

Uma das frequentes omissões do direito penal, consequência da seletividade sancionatória, é a escassa ou nenhuma atenção prestada aos crimes dos mais poderosos, em particular a macro-delinquência das corporações. Não estou a exagerar com estas palavras. Aprecio que o vosso Congresso tenha tomado esta questão em consideração.

O capital financeiro global está na origem de crimes graves não só contra a propriedade, mas também contra as pessoas e o ambiente. Trata-se da criminalidade organizada, que é responsável, entre outras coisas, pelo sobre-endividamento dos Estados e pela pilhagem dos recursos naturais do nosso planeta.

O direito penal não pode ficar alheio a comportamentos em que, aproveitando-se de situações assimétricas, abusa de uma posição dominante em detrimento do bem-estar coletivo. Isto acontece, por exemplo, quando os preços dos títulos da dívida pública são artificialmente reduzidos através da especulação, sem preocupação de que isso afete ou agrave a situação económica de nações inteiras (cf. Oeconomicae et pecuniariae quaestiones. Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspetos do atual sistema económico-financeiro, 17).

Trata-se de delitos que têm a gravidade de crimes contra a humanidade, quando levam à fome, à miséria, à migração forçada e à morte por doenças evitáveis, ao desastre ambiental e ao etnocídio dos povos indígenas.

Tutela jurídica e penal do ambiente

É verdade que a resposta penal é dada quando o crime foi cometido, que não repara o dano nem impede a repetição e que raramente tem efeitos dissuasivos. É também verdade que, devido à sua seletividade estrutural, a função sancionatória recai normalmente sobre os setores mais vulneráveis. Sei também que existe uma corrente punitivista que pretende resolver os mais variados problemas sociais através do sistema penal.

Em vez disto, um senso elementar de justiça exigiria que certas condutas, pelas quais as corporações são geralmente responsáveis, não ficassem sem punição. Em particular, todas aquelas que podem ser considerados como «ecocídio»: a contaminação maciça do ar, dos recursos da terra e da água, a destruição em grande escala da flora e da fauna, e qualquer ação capaz de produzir um desastre ecológico ou de destruir um ecossistema. Devemos introduzir — estamos a pensar nisto — no Catecismo da Igreja Católica o pecado contra a ecologia, o «pecado ecológico» contra a casa comum, pois está em jogo um dever.

Neste sentido, recentemente, os padres sinodais da Região pan-amazónica propuseram definir o pecado ecológico como ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, contra a comunidade e contra o meio ambiente. É um pecado contra as gerações futuras e manifesta-se em ações e hábitos de poluição e destruição da harmonia do ambiente, em transgressões contra os princípios da interdependência e da rutura das redes de solidariedade entre as criaturas (cf. Catecismo da Igreja Católica, 340-344).2

Como foi destacado nos vossos trabalhos, «ecocídio» deve ser entendido como a perda, dano ou destruição de ecossistemas num determinado território, de modo que a sua fruição pelos habitantes tenha sido ou possa ser severamente afetado. Esta é uma quinta categoria de crimes contra a paz, que deve ser reconhecida como tal pela comunidade internacional.

Nesta ocasião, e através de vós, gostaria de apelar a todos os líderes e referentes no setor para que contribuam com os seus esforços a fim de assegurar uma proteção jurídica adequada da nossa casa comum.

Sobre alguns abusos de poder de sanção

Para concluir esta parte, gostaria de me referir a alguns problemas que se agravaram com os anos desde o nosso precedente encontro.

1. Utilização indevida da prisão preventiva. Eu tinha apontado com preocupação o uso arbitrário da prisão preventiva. Infelizmente, a situação piorou em vários países e regiões, onde o número de presos não condenados já ultrapassa largamente os 50% da população carcerária. Este fenómeno contribui para a deterioração das condições de detenção e é a causa da utilização ilícita de forças de segurança e militares para estes fins.3 A prisão preventiva, quando é imposta sem circunstâncias excepcionais ou por um período excessivo, viola o princípio de que todo o arguido deve ser tratado como inocente até que uma sentença definitiva estabeleça a sua culpa.

2. O incentivo involuntário à violência. As reformas da instituição de defesa legítima foram implementadas em vários países e o objetivo tem sido o de justificar os crimes cometidos por agentes das forças de segurança como formas legítimas de cumprimento do dever.4 É importante que a comunidade jurídica defenda os critérios tradicionais, a fim de evitar que a demagogia punitiva degenere em incentivos à violência ou ao uso desproporcionado da força. São condutas inaceitáveis no Estado de direito e, em geral, acompanham os preconceitos racistas e o desprezo pelos grupos sociais de marginalização.

3. A cultura do desperdício e a cultura do ódio. A cultura do desperdício, combinada com outros fenómenos psicossociais generalizados nas sociedades do bem-estar, está a mostrar a grave tendência a degenerar numa cultura do ódio. Verificam-se episódios infelizmente não isolados, sem dúvida necessitados de uma análise complexa, nos quais encontram uma saída os desconfortos sociais, tanto dos jovens como dos adultos. Não é ocasional que por vezes reapareçam emblemas e acções típicas do nazismo. Confesso que quando ouço alguns discursos, algum responsável pela ordem ou pelo governo, posso pensar nos discursos de Hitler em 1934 e 1936. Hoje. São ações típicas do nazismo que, com a sua perseguição dos judeus, ciganos e pessoas com orientação homossexual, representa o modelo negativo por excelência da cultura do descarte e do ódio. Fizeram assim naquela época e hoje estas coisas nascem de novo. É necessário vigiar, tanto no âmbito civil como eclesial, para evitar qualquer possível consenso — que se presume não intencional — a estas degenerações.

4. O lawfare. Verifica-se periodicamente que se recorre a falsas acusações contra líderes políticos, propostas concordemente por meios de comunicação social, adversários e órgãos judiciais colonizados.(5) Desta forma, com os instrumentos próprios do lawfare, instrumentaliza-se a luta, sempre necessária, contra a corrupção com a finalidade de combater os governos indesejados, reduzir os direitos sociais6 e promover um sentimento de antipolítica do qual beneficiam aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário.

Ao mesmo tempo, é curioso que o recurso aos paraísos fiscais, um estratagema que serve para ocultar todo o tipo de crimes, não seja sentido como um facto de corrupção e criminalidade organizada.(7) Da mesma forma, os fenómenos maciços de apropriação de fundos públicos passam despercebidos ou são minimizados como se fossem meros conflitos de interesse. Convido todos a refletir sobre isto.

Chamada à responsabilidade

Gostaria de dirigir um convite a todos vós, peritos em direito penal e que, nas vossas diversas funções, sois chamados a desempenhar funções relacionadas com a aplicação da legislação penal. Tendo em conta que o objetivo fundamental do direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes para a comunidade, cada tarefa e cada missão nesta área tem sempre uma ressonância pública, um impacto na coletividade. Isto requer e implica, ao mesmo tempo, uma maior responsabilidade para o profissional do direito, seja qual for o nível em que se encontre, do juiz ao funcionário de chancelaria e ao defensor da lei.

Cada pessoa chamada a desempenhar uma tarefa neste campo deve ter sempre presente, por um lado, o respeito pela lei, cujas prescrições devem ser observadas com atenção e com um dever de consciência adequado à gravidade das consequências. Por outro lado, há que recordar que a lei, por si só, nunca poderá atingir os objetivos da função penal; deve também ser aplicada tendo em conta o bem real das pessoas em questão. Esta adaptação da lei à realidade dos casos e das pessoas é um exercício tão essencial quanto difícil. Para que a função judiciária penal não se torne um mecanismo cínico e impessoal, precisamos de pessoas equilibradas e preparadas, mas sobretudo apaixonadas — apaixonadas! — pela justiça, conscientes do seu grave dever e grande responsabilidade. Só assim a lei — qualquer lei, não só a lei penal — não será um fim em si mesma, mas estará ao serviço das pessoas envolvidas, quer elas sejam os autores dos crimes quer os ofendidos. Ao mesmo tempo, ao atuar como um instrumento de justiça substancial e não apenas formal, o direito penal poderá desempenhar a função de proteção real e efetiva dos bens jurídicos essenciais da coletividade. E devemos, naturalmente, caminhar para uma justiça penal restaurativa.

Rumo a uma justiça penal restaurativa

Em todos os crimes há uma parte lesada e há dois vínculos danificados: o da pessoa responsável pelo crime com a sua vítima e o da mesma pessoa com a sociedade. Salientei que existe uma assimetria entre o castigo e o crime8 e que o cometimento de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de executar o agressor.

Na visão cristã do mundo, o modelo de justiça encontra a sua perfeita encarnação na vida de Jesus, que, depois de ter sido tratado com desprezo e até violência que o levou à morte, em última instância, na sua ressurreição, traz uma mensagem de paz, perdão e reconciliação. São valores difíceis de alcançar, mas necessários para a boa vida de todos. E retomo as palavras que a professora Severino disse sobre as prisões: as prisões devem ter sempre uma «janela», isto é, um horizonte. Ter em vista uma reintegração. E devemos, sobre isto, pensar profundamente em como administrar uma prisão, como semear esperança de reintegração; e pensar se a pena é capaz de levar essa pessoa a isto; e também o acompanhamento com esta finalidade. E reconsiderar seriamente a prisão perpétua.

As nossas sociedades são chamadas a avançar para um modelo de justiça baseado no diálogo, no encontro, para que, sempre que possível, os laços afetados pelo crime possam ser restaurados e os danos reparados. Não acho que seja uma utopia, mas é um grande desafio. Este é um desafio que todos temos de enfrentar se quisermos lidar com os problemas da nossa convivência civil de uma forma racional, pacífica e democrática.

Queridos amigos, agradeço-vos por três coisas: pela vossa dupla paciência: ter esperado uma hora e, a outra paciência, ouvir este longo discurso. E agradeço-vos por este encontro. Obrigado. Asseguro-vos que continuarei a estar próximo de vós neste árduo trabalho ao serviço do homem na área da justiça. Não há dúvida de que, para quantos de vós que estais chamados a viver a vocação cristã do próprio Batismo, este é um campo privilegiado de animação evangélica do mundo. Todos, até aqueles de entre vós que não são cristãos, precisam da ajuda de Deus, fonte de qualquer razão e justiça. Invoco para cada um de vós, pela intercessão da Virgem Mãe, a luz e a força do Espírito Santo. Abençoo-vos de coração e, por favor, peço-vos que rezeis por mim. Obrigado.

 


1 cf. Discurso à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de outubro de 2014.

2 Cf. Documento final do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazónica: Novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia integral, 26 de outubro de 2019, 82.

3 Cf. Discurso à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de outubro de 2014.

4 Cf. Discurso do Santo Padre Francisco à Delegação da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, 17 de dezembro de 2018.

5 Cf. Homilia, 17 de Maio de 2018. L’Osservatore Romano.

6 Cf. Discurso ao encontro de Juízes do Continente Americano sobre os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana, 4 de junho de 2019.

7 Oeconomicae et pecuniariae quaestiones. Considerações para o discernimento ético sobre alguns aspetos do atual sistema económico e financeiro, 30.

8 Cf. Carta aos participantes do XIX Congresso Internacional da Associação Internacional de Direito Penal e do III Congresso da Associação Latino-americana de Direito Penal e Criminologia, 30 de maio de 2014.

 


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