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ENCONTRO DE MOVIMENTOS POPULARES PROMOVIDO
PELO DICASTÉRIO PARA O SERVIÇO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Palácio São Calisto
Sexta-feira, 20 de setembro de 2024

[Multimídia]

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Comemoramos um momento que marcou a nossa história comum, a vossa e a minha. Há dez anos teve lugar o primeiro encontro mundial dos movimentos populares. Naquele dia, em Roma, plantamos uma bandeira: Terra, teto e trabalho. Terra, teto e trabalho são direitos sagrados. Que ninguém vos tire esta convicção, que ninguém vos roube esta esperança, que ninguém apague os sonhos.

A vossa missão é transcendente. Se o povo pobre não se resignar, se se organizar, se perseverar na construção quotidiana da comunidade e, ao mesmo tempo, lutar contra as estruturas de injustiça social, mais cedo ou mais tarde a situação há de melhorar. Como podeis ver, nisto não há ideologia alguma, nada. O povo!

Saístes da passividade e do pessimismo, não vos deixeis abater pela dor e resignação. Não aceitastes ser vítimas dóceis. Reconhecestes-vos como sujeitos, como protagonistas da História. Este é, talvez, a vossa contribuição mais bela: não recuais, ides em frente. Também não traçais planos no ar. Uma das coisas de que gosto é que não escreveis documentos ideológicos, não passais de conferência em conferência, não andais de conferência em conferência, pois não? Ou seja, avançais passo a passo no terreno sólido do betão, trabalhais corpo a corpo, pessoa a pessoa. Não vos limitais a protestar — é muito bom protestar! — mas realizais inúmeras obras, até com a mais absoluta precariedade, às vezes sem qualquer ajuda do Estado, e por vezes sois perseguidos. Acompanho-vos na vossa caminhada. Continuo a acreditar, como vos disse na Bolívia, que não só o vosso próprio futuro, mas talvez o de toda a humanidade, depende da ação comunitária dos pobres da terra. Depende desta ação!

Sim, todos nós dependemos dos pobres, todos, todos, até os ricos. Disse-o no início do pontificado. Cito-me a mim mesmo: “Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, e atacando as causas estruturais da iniquidade, não se resolverão os problemas do mundo e, em última análise, problema algum. A iniquidade é a raiz dos males sociais”. Sei que isto é irritante, mas é verdade!

Um irmão disse-me: “Padre, o senhor fala muito dos pobres e pouco da classe média”. Talvez seja verdade, e peço desculpa por isso. Quando o Papa fala, fala para todos, pois a Igreja é para todos. Mas não pode subtrair-se à centralidade dos pobres no Evangelho. E isto não é comunismo, é puro Evangelho! Não é o Papa, mas Jesus, que os coloca no centro, nesse lugar. É uma questão da nossa fé e não pode ser negociada. Se não aceitardes isto, não sois cristãos!

Um irmão também me disse: “Não sejas tão duro com os ricos!”. Jesus era mais duro do que eu, e vede o que diz dos ricos: “Ai de vós, ricos!”, e ainda... “Não sejas tão duro com os ricos!”. Reconheço, evidentemente, que os empresários criam empregos, contribuem para o desenvolvimento económico. É justo dizê-lo. Disse-o recentemente, em Singapura, olhando para a magnífica floresta de arranha-céus que testemunham essa contribuição. No entanto, os frutos do desenvolvimento económico não estão bem distribuídos. Esta é uma realidade evidente que, se não for modificada, irá gerar perigos cada vez maiores. Se não houver políticas, boas políticas, políticas racionais e equitativas que reforcem a justiça social para que todos tenham terra, teto e trabalho, para que todos tenham um salário justo e direitos sociais adequados, se não houver isto, a lógica do descarte material e humano alastrar-se-á, deixando atrás de si violência e desolação. Ou é a harmonia da justiça social ou é a violência depois da desolação.

Infelizmente, muitas vezes são precisamente os mais ricos que se opõem à realização da justiça social ou da ecologia integral, por pura ganância. Sim, disfarçam esta ganância com ideologia, mas trata-se da velha e conhecida ganância. Então, pressionam os governos para que apoiem más políticas, que os favoreçam economicamente. A minha avó repetia-nos sempre: “Tende cuidado, o diabo entra pelos bolsos”. O diabo entra pelos bolsos, sempre. Um suborno aqui, outro ali, outro acolá... e entra-te pelos bolsos. Contava-me um empresário internacional que na Argentina faz investimentos de extensão do que já levava em frente, que trabalha muito bem e que tem um bom acordo, e que foi apresentar a um ministro um plano de novas extensões; o ministro recebeu-o muito bem e disse-lhe: “Deixa isto comigo, voltarão a chamar-te”. No dia seguinte, o secretário do ministro telefonou-lhe e disse: “Olha, podes passar daqui a dois dias, para receber a licença e tudo”. Passou, deu-lhe toda a papelada, a assinatura, e quando estava prestes a levantar-se, disse-lhe: “E para nós, quanto? “E para nós, quanto?”. O suborno, não é verdade? O diabo entra pelos bolsos, não vos esqueçais.

Ouvi dizer que alguns dos homens mais ricos do mundo reconhecem isto. Dizem que o sistema que permitiu que pessoas ricas — e, consenti-me acrescentar, às vezes ridículas — acumulem fortunas é imoral e deve ser mudado. Que os bilionários deveriam pagar mais impostos. Isto é muito bom. E rezo para que quantos são economicamente poderosos saiam do isolamento, rejeitem a falsa segurança do dinheiro e se abram para compartilhar bens que têm um destino universal, porque todos derivam da Criação. Todos os bens derivam daí, todos os bens têm um destino universal.

É difícil que isto aconteça, é difícil, mas a Deus tudo é possível. Se esta percentagem tão pequena de bilionários que acumulam a maior parte da riqueza do planeta tivesse a coragem de a compartilhar... Mas não como esmola, não, a partilhá-la fraternalmente. Se tivessem a coragem de a compartilhar, que bom seria para eles próprios e como seria justo para todos! Peço aos privilegiados deste mundo que tenham a coragem de dar este passo. Serão muito mais felizes e seremos muito mais irmãos.

Mas há algum tempo eu disse também que “os pobres não podem esperar”. Se os movimentos populares não reclamarem, se não gritardes, se não lutardes, se não despertardes as consciências, a situação será mais difícil. Pergunto-vos, também às pessoas da classe média que devem sacrificar-se cada vez mais para chegar ao fim do mês, pergunto às pessoas que devem pagar rendas muito elevadas, que não conseguem poupar, que talvez deixem aos seus filhos uma situação pior do que aquela que receberam: acreditais que os mais ricos vão partilhar o que possuem com os outros, ou vão continuar a acumular insaciavelmente? Uma pergunta!

Não tenho o monopólio da interpretação da realidade social. Ouço. Também não tenho uma bola de cristal (e não existe uma bola de cristal mágica, isto é fraude). Mas vejo algo que me preocupa: que avança uma forma perversa de ver a realidade, uma forma que exalta a acumulação de riquezas, como se fosse uma virtude. Digo-vos: não é uma virtude, é um vício! As riquezas são para partilhar, criar, confraternizar. Acumular não é virtuoso, não é virtuoso, distribuir é virtuoso. Jesus não acumulava, mas multiplicava e os seus discípulos distribuíam. Lembrai-vos do que Jesus nos disse: “Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os consomem, e os ladrões, arrombando as paredes, os roubam. Pelo contrário, acumulai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem, nem os ladrões os arrombam e roubam. Onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Há como que uma atração — eu diria — de “namoro” entre o coração e as riquezas, mas não se trata do lindo namoro com a noiva, é o namoro com a sogra. Cuidado!

A competição cega por mais e mais dinheiro não é uma força criativa, mas uma atitude doentia, um caminho para a perdição. Este comportamento irresponsável, imoral e irracional destrói a criação e divide os povos. Não deixemos de o denunciar. Uma anedota da minha família: alguns primos do meu pai — ou seja, meus primos de segundo grau — um deles era muito rico, muito rico. Não tinham filhos, mas ele era ganancioso, ganancioso, ganancioso, e acumulava dinheiro, acumulava, acumulava. Era tão ganancioso que os filhos tomavam conta da mãe doente um dia cada um e tinham que lhe dar um iogurte de manhã e outro à tarde. Ele dava-lhe metade de um iogurte de manhã para poupar o da tarde, chegava a este nível. Ele morreu. Não pude ir ao enterro, mas telefonei a uma prima, dois ou três dias depois, e perguntei-lhe: “Como foi?”. Não sei. “Trágico”, disse-me. “O que aconteceu?”. Não conseguiram fechar o caixão. O quê? Ele queria levar tudo com ele. Mas teve que o deixar, não havia como fazer. É o destino!

O grito dos excluídos pode também despertar a consciência adormecida de tantos dirigentes políticos que, afinal, são aqueles que devem fazer respeitar os direitos económicos, sociais e culturais já consagrados pela Constituição, pelas leis, mas não são cumpridos. Direitos reconhecidos por quase todos os países, direitos reconhecidos pelas Nações Unidas, pela doutrina social de todas as religiões, mas que muitas vezes não se manifestam na realidade socioeconómica dos povos. Somos cristãos. Rezemos para que Deus nos conceda a sabedoria e a força para realizar a verdadeira justiça social.

A Justiça Social é uma expressão criada pela Igreja, é inseparável da compaixão. Deus tem três atributos: proximidade, misericórdia e compaixão. Se quisermos praticar uma ação de tipo social, por exemplo, devemos seguir estes três atributos. A justiça social é inseparável da compaixão. Na Indonésia, falei sobre isto. Sabeis em que consiste a compaixão? Tenho a certeza que sim. Compaixão significa padecer com o outro, partilhar os seus sentimentos. É uma palavra bonita. Como sabemos, na realidade, compaixão não consiste em dar esmola aos nossos irmãos e irmãs necessitados, em olhar para eles de cima para baixo, em vê-los a partir da própria segurança e privilégio, compaixão significa tornar-nos próximos uns dos outros. Quando confesso, porque Deus me deu a graça de perdoar, em 53 anos de sacerdócio nunca recusei a absolvição. Quando confesso, pergunto se dão esmola. A quem posso perguntar? Às pessoas adultas. Elas dizem que sim. E quando dás esmola, fitas os olhos da pessoa a quem dás esmola, tocas a sua mão ou atiras-lhe o dinheiro e fazes assim? Não sabem responder. Dão esmola, mas não têm aquela compaixão que é carnal, fraterna, profunda.

Quer partilhemos os mesmos padecimentos, quer fiquemos comovidos com o sofrimento dos outros. A verdadeira compaixão constrói a unidade dos povos e a beleza do mundo.

As ideologias desumanizadoras promovem uma cultura deveras horrível, a “cultura do vencedor”, que é um aspeto da “cultura do descarte”. Alguns chamam-lhe “meritocracia”, outros não lhe dão um nome, mas praticam-na. São pessoas que, concentradas em certos sucessos mundanos, se sentem no direito de desprezar, de olhar com altivez para os “perdedores”. É paradoxal que as grandes fortunas tenham muitas vezes pouco a ver com o mérito: são rendas, heranças, fruto da exploração de pessoas e da pilhagem da natureza, são produto da especulação financeira ou da evasão fiscal, derivam da corrupção ou do crime organizado. Em geral, muitas fortunas são acumuladas desta forma.

Ninguém, merecedor ou não, tem o direito de olhar para o outro de cima para baixo, como se não tivesse valor. Esta atitude arrogante é o oposto da compaixão: sentir-se superior em relação a quem está pior. E isto não acontece apenas com os mais ricos, pois muitas pessoas caem nesta tentação do nosso tempo. Olhar de longe, olhar de cima, olhar com indiferença, olhar com desprezo, olhar com ódio. É assim que germina a violência: é assim que nasce o silêncio da indiferença. Este silêncio indiferente que permite o rugido do ódio. O silêncio perante a justiça — perdão — perante a injustiça abre o caminho para a divisão social, e a divisão social abre o caminho para a violência verbal, e a violência verbal abre o caminho para a violência física, e a violência física  para a guerra de todos contra todos. É ali que está a cauda do diabo. Há uma semana, talvez um pouco menos, mostraram-me uma repressão, um vídeo de uma repressão. Trabalhadores, pessoas que reivindicavam os seus direitos na rua, e a polícia empurrava-os para trás com uma coisa que é a mais cara que existe, o gás pimenta de primeira qualidade, porque eles não tinham o direito de reivindicar. Porque eram desordeiros, comunistas, não, não, não, e o governo insistiu e, em vez de pagar com a justiça social, pagou com o gás pimenta, dado que lhe convinha. Tende isto em conta. Todos devemos elevar os outros. Todos devemos fazer isto.

A atitude oposta é “deixar caído” e, às vezes, além disso, zombar de quem caiu. Depois vêm as desculpas: “Sou porventura eu o guarda do meu irmão?”. Penso que esta é a segunda, não a primeira, justificação mais antiga da Bíblia: Sou porventura eu o guarda do meu irmão, “Não tenho tempo, que outro se ocupe dele”. “A culpa é dele, não olhou para onde pôs os pés, seguiu um caminho perigoso, não era suficientemente inteligente, não se esforçou como eu”. Esta atitude não é cristã, pior, também não é humana, não é a atitude de um homem de boa vontade: levantemos quem caiu, sempre, sempre! Só uma vez na vida, só numa situação podemos olhar para uma pessoa de cima para baixo: para a ajudar a levantar-se. Nunca noutra situação, sempre de frente. Levantemos sempre quem caiu, todos os caídos, bons ou maus, merecedores ou não. Que ninguém fique caído, por favor! E há tantas pessoas deitadas na rua, tantas pessoas que não têm nada para comer e que andam pelas ruas a pedir algo, que perderam as suas casas, que perderam o trabalho, ou simplesmente que não têm capacidade para ir em frente. Podem ser pessoas doentes, o que quiserdes, mas estão caídas. Olhemos para as pessoas caídas, que ninguém fique caído, e então, sim, olhemos de cima para baixo para as levantar.

Há alguns dias, quando visitei a Escola Irmãs Alma (em Díli, Timor-Leste), brotou do meu coração esta frase: “Sem amor isto não se compreende”. Estas pessoas fazem um trabalho, um trabalho com crianças portadoras de deficiência. Foram muito simpáticas, porque todas dançavam, e tudo mais, mas sem amor não se compreende. Sem amor, predomina o comportamento de nos livrarmos delas o mais depressa possível. Um episódio como este, de observação: vedes muitos anões na rua? Há muitos anões? Desapareceram. Quando eu era mais jovem, costumava vê-los. Agora já não há mais. Quando veem que será um anão, para o lixo. É uma política de deixar as pessoas caídas, que ninguém seja deixado para trás, que não selecionemos as pessoas porque são mais capazes do que outras, porque têm mais possibilidades, porque são mais ou menos inteligentes. Todos, todos, todos, todos! E aquela Escola Irmãs Alma, em Timor-Leste, ficou-me na memória porque acolhia crianças com algum tipo de malformação mental ou mostravam problemas desde a gestação. E foi aí que me brotou aquela frase: “Sem amor isto não se compreende”. Eliminar, selecionar a humanidade só se entende sem amor.

Se o amor for eliminado como categoria teológica, ética, económica e política, perderemos o rumo. Na matemática gananciosa da conveniência, do individualismo e da acumulação não há lugar para isto. Com o véu negro do desamor, caímos sempre nalguma forma de “darwinismo social”. E sabeis o que é isso? O darwinismo social é a lei do mais forte, que justifica primeiro a indiferença, depois a crueldade e por fim o extermínio. E isso vem sempre do Maligno.

A justiça social, também ecologia integral, só se entende a partir do amor. O direito natural à dignidade que todas as pessoas merecem, o mandato que todas as sociedades têm de garantir a satisfação das necessidades básicas, a obrigação universal de preservar a natureza para quantos vierem depois de nós — nada disto surge de uma ideologia ou de uma tabuada, mas do amor. Não nos esqueçamos de que “sem amor não somos nada”.

Todos temos a missão de tornar esse amor efetivo na nossa vida diária, nas nossas relações familiares, na ação específica de cada espaço comunitário. Nas micro e macrorrelações, temos o direito de fazer tudo isso. Em várias ocasiões constatei que do pequeno e das periferias nasce essa grande esperança do coração, que nos encoraja a elevar o olhar, para horizontes mais vastos, que nos dão força para empreender projetos de grande alcance, que abracem mais pessoas. Que a luz de cada experiência comunitária concreta irradie a sua luz, a fim de que toda a humanidade possa atravessar as falésias escuras e regressar ao caminho concreto.

E retomar o caminho, retomar o caminho significa gerar uma sociedade diferente, mas não a partir das lógicas fundacionais que, em última análise, acabam por reproduzir a cultura do descarte, neste caso, do descarte cultural. Olhemos com gratidão para a história que nos precedeu, olhemos com gratidão para essa história. É esse o nosso fundamento. Que ninguém nos roube a nossa memória histórica e o nosso sentido de pertença a um povo, nem sequer a memória histórica das coisas selvagens, brutais. Nós, argentinos, que temos apenas cerca de 600.000 aborígenes em 46 milhões de pessoas, lembremo-nos de Roca, que cortou a cabeça de todos os aborígenes, uma vergonha! Memória histórica total.

Recentemente alertei os timorenses sobre certos crocodilos — porque há uns crocodilos especiais que vêm da Austrália e diz-se que têm a mordida mais forte de todos os que mordem — e é curioso: quando vão à praia, caminham como os cangurus. Com a força das suas caudas dão saltos. Então, avisei-os: cuidado com os crocodilos que querem mudar a vossa cultura, morder a vossa história, fazer-vos esquecer quem sois. O colonialismo material e o colonialismo ideológico-cultural andam sempre de mãos dadas, devorando a riqueza material e imaterial dos povos. Penso nalgumas experiências no meu país, onde o colonialismo se chama “lítio” e muitas pessoas são exploradas.

Os valores universais, em contrapartida, crescem das raízes de cada povo, da sua própria beleza que contribui com um novo rosto para o maravilhoso poliedro da família humana e da casa comum. Há interesses que são globais, mas não universais. Lembremo-nos disto: globais, mas não universais. Em síntese, procuram uniformizar e submeter tudo. Tende cuidado com isso, pois os crocodilos vêm camuflados; tomai cuidado, mas não tenhais medo.

A cobardia leva muitos políticos a trocar as suas convicções pelas suas conveniências. Quando vos ungem a mão, não é verdade? Quanto vou receber? Foram submetidos à máquina de domesticação dos mass media, das redes sociais, tiveram medo e vacilaram. Depois, adotaram posições servis perante quantos eram economicamente poderosos, como naquela cena do Livro de Daniel em que “altos funcionários, autoridades, governadores, conselheiros, tesoureiros, juízes e magistrados” se prostraram para prestar culto a uma estátua de ouro, para se salvar da fornalha. Renunciar a ideais nobres e generosos para servir o deus dinheiro ou o poder é uma grande apostasia. Acontece não só com os dirigentes políticos, mas também com os agentes sociais, sindicalistas, artistas e intelectuais, e também com os sacerdotes. Dizem que as batinas têm bolsos enormes. É isso que acontece!

Cair nas graças de quem detém o poder real traz vantagens, ajuda a escalar, não vos esqueçais desse verbo, a escalar a pirâmide burocrática do poder formal. Como? Escalar a pirâmide burocrática do poder formal é uma traição. Aqueles que escalam, escalam e chegam ao topo — acho que já o disse. Quando chegam ao topo, quando estão no topo, o que mostram? A minha avó ensinou-me isso. Estão no topo e a única coisa que mostram é o rabo. É essa a essência da corrupção. E isto, às vezes, acontece de forma aberta, com discursos desumanos que se transformam em políticas injustas por ação; outra forma é encoberta, com discursos adocicados que também se transformam em políticas injustas por omissão. Para descobrir de que é feito um líder — e não esqueçamos isto — e quando digo líder, refiro-me ao sentido genérico da palavra, incluindo um sacerdote, um bispo. De que é feito um líder? Não é preciso ouvir tanto o que ele diz: é preciso ver o que ele faz. A realidade é sempre superior à ideia. Não vos esqueçais deste princípio: a realidade é superior à ideia. Podeis ter boas ideias e falar, mas qual é a vossa realidade?

É preciso ajudar os políticos para que não se entreguem aos crocodilos, para que não se ajoelhem perante a estátua de ouro com medo da fornalha. Deveis ser guardiães da justiça social. É preciso estar presente para lhes lembrar de quem estão ao serviço. Deveis estar presentes, como a viúva do Evangelho, insistindo, insistindo, pondo à prova a paciência para que façam justiça. Esta é uma tática que Jesus nos ensinou. Certamente encontrareis outras táticas, mas sempre no contexto da não-violência, por favor trabalhai sempre pela paz. A guerra é um crime!

E agora gostaria de falar  — falta pouco — gostaria de refletir sobre dois temas conclusivos, que têm a ver com a nossa tarefa comum entre a Igreja e os Movimentos populares. São temas que me preocupam muito.

Primeiro: o narcotráfico, a prostituição infantil, o tráfico de seres humanos, a violência brutal nos bairros e todas as formas de crime organizado crescem, aumentam. Penso numa corajosa mulher argentina, Peressutti, que foi presa por ter denunciado todas estas coisas. Crescem, aumentam em terras lavradas pela miséria e pela exclusão, que em última análise são a sua condição de possibilidade. Crescem quando não há integração sócio-urbana e os bairros dos pobres são deixados à margem, sem água, esgotos, eletricidade, aquecimento, calçadas, parques, centros comunitários, clubes e paróquias. Não há nada disso. Crescem quando nos territórios rurais não há distribuição adequada das terras, não há ordenamento equilibrado do território, não há apoio constante à agricultura familiar, não há respeito pela família rural, que acaba por ser submetida a poderes criminosos. É preciso atacar as causas estruturais; entretanto, devemos enfrentar isto. As duas coisas ao mesmo tempo.

Sei que não sois polícias, sei que não podeis enfrentar diretamente os bandos criminosos, como fazem tantos bons polícias, mas peço-vos, por favor, que os enfrenteis indiretamente: o trabalho de base que vós e tantas pessoas da Igreja realizam é, muitas vezes, a última barreira de contenção. Continuai a combater a economia criminosa com a economia popular. Não sei se é lícito falar de “economia popular”. Penso que sim. E se é algo que ninguém entende, colocai-a em ação, para que a entendam. Não renuncieis, por favor! Sei que peço algo difícil, mas é muito necessário. Nenhuma pessoa, especialmente nenhuma criança, pode ser uma mercadoria fungível nas mãos dos traficantes de morte, aqueles mesmos traficantes que depois lavam o dinheiro ensanguentado e jantam com cavalheiros respeitáveis nos melhores restaurantes. E quando falo de crianças, falo também de idosos. Ou seja, a cultura humana de um povo vê-se pelo modo como cuida das suas crianças e como cuida dos seus idosos. Se manda os seus idosos para o “depósito geriátrico”, se os deixa morrer sozinhos, não têm uma cultura humana. Se as crianças não forem acolhidas, nem cuidadas, se não as deixarem crescer, esse povo não tem futuro. Não vos esqueçais disto: cultura, crianças e idosos, cuidai das crianças e dos idosos. Certa vez li nalgum lugar, não me recordo onde, uma declaração dos direitos das crianças e dos direitos dos idosos, que incluíram na Constituição desse país. Depois vieram outros e tiraram-nos, como se dissessem: “O nosso país, constitucionalmente, não se preocupa com as crianças nem com os idosos”. Uma mensagem pesada!

Quero falar-vos também de outras situações destrutivas que se infiltram nos setores mais pobres, mas atingem todas as classes sociais: as apostas online e a utilização abusiva das redes. Fico muito triste quando vejo que alguns jogos de futebol e estrelas desportivas promovem plataformas de apostas. Isto não é jogo, é vício. É pôr a mão no bolso das pessoas, sobretudo dos trabalhadores e dos pobres. Contaram-me que numa cidade que conheço bem, o fenómeno difundiu-se, e as mulheres reformadas retiram a pensão e vão imediatamente jogar. É tremendo! E isso destrói famílias inteiras. Prestai atenção a isto, cuidai dos outros. Contai a todos o que me contaram, e exponde as enfermidades mentais, o desespero, os suicídios que isso causa em cada casa, quando há um casino através do telemóvel.

É uma das coisas negativas da tecnologia, que contudo tem tantas coisas positivas. A tecnologia faz bem, mas também traz estas coisas. É preciso encontrar um equilíbrio nisto, não pode ser deixado à lógica da ganância. Aos empresários das tecnologias da informação, das plataformas digitais, das redes sociais, da inteligência artificial, peço: deixai de lado a arrogância de acreditar que estais acima da lei. Respeitai os países onde trabalhais e sede também responsáveis pelo que ocorre nas plataformas que controlais.

Tendes a obrigação de evitar a propagação do ódio — uma das missões do assistente social — a propagação do ódio, da violência, das notícias falsas — as notícias falsas que tanto dominam — da polarização extrema e do racismo. Tendes também a obrigação de impedir que as redes sejam utilizadas para difundir a ludomania, a pornografia infantil ou facilitar o crime organizado. Não podeis explorar em vosso benefício exclusivo os dados fornecidos pelos cidadãos ou criados por entidades públicas sem dar algo em troca às pessoas. Por favor, não penseis que sois superiores a ninguém, um conselho: pagai os impostos. É muito importante! Não me lembro de alguma vez ter ouvido: “Acuso-me de não pagar impostos”. Pelo contrário, são mestres em fazer fraude. Quantas vezes vamos a um restaurante ou a um supermercado e quando vamos pagar dizem-nos: “Quer o recibo ou não?”.

Cada fortuna é produto do trabalho de muitas pessoas e de muitas gerações, é produto de investimento público em conhecimentos científicos e no desenvolvimento estatal de infraestruturas. Todas as “maravilhas” que temos hoje são, em parte, fruto do engenho empresarial, mas também da mais humilde mãe que educa os filhos dos seus trabalhadores. Por isso, além de necessário, é justo que os frutos de tanto esforço intergeracional e coletivo sejam distribuídos por todos os membros da sociedade. Por isso, gostaria de recordar a vossa proposta: salário mínimo universal para que, em tempos de automatização e inteligência artificial, em tempos de informalidade e precariedade laboral, ninguém seja excluído dos bens básicos necessários para a subsistência. Isto é compaixão, porque não se explica sem amor, mas estritamente é também justiça.

Para concluir, queridas irmãs, queridos irmãos: todos nós mudamos nestes anos, alguns estão mais maduros, outros mais velhos. Confesso-vos algo em que penso muito ultimamente, talvez seja a idade. Como gostaria que as novas gerações encontrassem um mundo muito melhor do que aquele que recebemos! No entanto, talvez vos possa dizer que a nossa posteridade vai receber  um mundo pior: não é pessimismo, um mundo ensanguentado por guerras, violência, ferido pela desigualdade crescente, devastado pela exploração da natureza, alienado por modos de comunicação desumanizados, completamente desinformado por formas de gestão da informação interessadas em si mesmas, sem paradigmas políticos, sociais e económicos que orientem o caminho, com poucas utopias e enormes ameaças. Se não concordais, debatei e corrigi-me. É assim que me sinto!

Neste contexto, dá-me esperança ver que sustentais as bandeiras de terra, teto e trabalho. Os  “3t s”. Agradeço-vos por isso. Até diante de toda esta carga de pessimismo, continuo a acreditar no fermento, que tem mais força. Se fordes o fermento, a situação mudará. Sei ainda que mudastes a composição da comissão do Encontro, que passou o testemunho a dirigentes mais jovens, e isso também me agrada. Por favor, não caiais no vício da acumulação. Não cedais ao erro de monopolizar espaços e de vos agarrar a eles. Fazei sempre pressão sobre processos que se renovam de modo permanente. Criadores de processos. O tempo nunca nos atraiçoa quando estamos conscientes de que o caminho não começa nem acaba connosco. Como dizia aquela idosa: “Comigo e sem mim”.

O nosso caminho continua a sonhar e a trabalhar em conjunto para que todos os trabalhadores tenham direitos, todas as famílias um teto, todos os agricultores terra, todas as crianças educação, todos os jovens futuro, todos os idosos uma boa reforma, todas as mulheres direitos iguais, todos os povos soberania, todos os indígenas território, todos os migrantes acolhimento, todas as etnias respeito, todos os credos liberdade, todas as regiões paz, todos os ecossistemas proteção. É um caminho permanente, haverá avanços e retrocessos, haverá erros e sucessos, mas não tenhais dúvida: é o caminho certo! E se um dia vos aborrecerdes e quiserdes confrontar-vos, confrontai-vos com o sorriso de um bebé, de uma criança e com o sorriso esperto de um velhinho ou de uma velhinha. Esta será a pedra de toque!

Falo-vos de coração: rezo por vós, oro convosco e peço ao nosso Pai que vos ampare e abençoe, que vos encha do seu amor e vos guie no vosso caminho, concedendo-vos generosamente a força que nos sustenta, a força que é a esperança. A esperança não desilude, é a virtude mais frágil, é a mais fraca, mas não desilude. Aquela esperança que não desilude. Não nos cansemos de dizer: ninguém sem dignidade, ninguém sem esperança!

E, por favor, orai por mim. Também eu preciso. Sou pecador. E se algum de vós não puder rezar, respeito isso, mas pelo menos mandai-me energia positiva, por favor. Muito obrigado!

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L'Osservatore Romano, Edição semanal em português, Ano LV, número 39, quinta-feira 26 de setembro de 2024, p. 8.

 

 



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