DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS MEMBROS DO CORPO DIPLOMÁTICO
ACREDITADO JUNTO À SANTA SÉ
PARA AS FELICITAÇÕES DE ANO NOVO
Sala das Bênçãos
Quinta-feira, 9 de janeiro de 2025
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Excelências, Senhoras, Senhores,
Reunimo-nos de novo esta manhã para um momento de encontro que, para além do seu carácter institucional, quer ser acima de tudo familiar: um momento em que a família dos povos se reúne simbolicamente através da vossa presença, para trocar votos fraternos, deixando para trás as contendas que dividem, e redescobrir sobretudo o que une. No início deste ano, que para a Igreja Católica tem uma relevância particular, o nosso encontro tem um valor simbólico especial, uma vez que o próprio significado do Jubileu é “fazer uma pausa” no frenesim que marca cada vez mais a vida quotidiana, para nos revigorarmos e alimentarmos com o que é verdadeiramente essencial: redescobrir que somos filhos de Deus e n’Ele irmãos, perdoar as ofensas, amparar os fracos e os pobres, deixar repousar a terra, praticar a justiça e redescobrir a esperança. A isso são chamados todos aqueles que servem o bem comum e exercem aquela elevada forma de caridade que é a política.
É neste espírito que vos acolho, agradecendo antes de mais a Sua Excelência o senhor Embaixador George Poulides, Decano do Corpo Diplomático, pelas palavras com que se fez intérprete dos sentimentos comuns. A todos dirijo uma calorosa saudação de boas-vindas, agradecido pelo afeto e pela estima que os vossos povos e governos nutrem pela Sé Apostólica e que vós bem representais. Testemunham-no as visitas de mais de trinta Chefes de Estado ou de Governo que tive a alegria de receber no Vaticano em 2024, bem como a assinatura do Segundo Protocolo Adicional ao Acordo entre a Santa Sé e Burkina Faso sobre o estatuto jurídico da Igreja Católica e do Acordo entre a Santa Sé e a República Checa sobre algumas questões jurídicas, rubricados no decurso do último ano. No passado mês de outubro, o Acordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China sobre a nomeação dos Bispos foi renovado por mais quatro anos, sinal da vontade de prosseguir um diálogo respeitoso e construtivo em vista do bem da Igreja Católica no país e de todo o povo chinês.
Da minha parte, quis retribuir este afeto com a realização das recentes viagens apostólicas, que me levaram a visitar terras distantes como Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura, e mais próximas como Bélgica e Luxemburgo, e por fim a Córsega. Embora se trate, obviamente, de realidades muito diversas, cada viagem é para mim uma oportunidade de encontrar e dialogar com povos, culturas e experiências religiosas diferentes, e para levar uma palavra de encorajamento e conforto, em particular às pessoas mais vulneráveis. A estas viagens juntam-se as três visitas que fiz em Itália, às cidades de Verona, Veneza e Trieste.
É precisamente às autoridades italianas, nacionais e locais, que no início deste ano jubilar desejo exprimir, de modo especial, a minha gratidão pelos esforços que multiplicaram no sentido de preparar Roma para o Jubileu. O trabalho incessante destes meses, que causou não poucos incómodos, está agora a ser compensado com a melhoria de alguns serviços e espaços públicos, de modo que todos, cidadãos, peregrinos e turistas, possam aproveitar ainda mais as belezas da Cidade Eterna. Dirijo um pensamento particular aos romanos, que são conhecidos pela sua hospitalidade, agradecendo-lhes a paciência que tiveram nos últimos meses e a que terão para acolher os numerosos visitantes que chegarão. Desejo também agradecer de coração a todas as forças de segurança, à Proteção Civil, às autoridades de saúde e aos voluntários que, quotidianamente, se desvelam para garantir a segurança e o bom andamento do Jubileu.
Prezados Embaixadores,
Nas palavras do profeta Isaías que, segundo o relato transmitido pelo evangelista Lucas (4, 16-21), o Senhor Jesus faz suas na sinagoga de Nazaré, ao iniciar a sua vida pública, encontramos sintetizado não só o mistério do Natal que acabámos de celebrar, mas também o do Jubileu que estamos a viver. Cristo veio «para levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano da graça do Senhor» (Is 61, 1-2a).
Infelizmente, começamos este ano com o mundo dilacerado por numerosos conflitos, pequenos e grandes, mais ou menos conhecidos, e também pelo recomeço de atos de terror abomináveis, como os que ocorreram recentemente em Magdeburgo, na Alemanha, e em Nova Orleães, nos Estados Unidos.
Verificamos ainda que, em muitos países, existem cada vez mais contextos sociais e políticos exacerbados por contrastes crescentes. Deparamo-nos com sociedades cada vez mais polarizadas, nas quais fermenta um sentimento generalizado de medo e desconfiança em relação ao próximo e ao futuro. Esta situação é agravada pela contínua produção e difusão de fake news, que não distorcem apenas a realidade dos factos, como acabam por distorcer as consciências, suscitando falsas percepções da realidade e gerando um clima de suspeita que fomenta o ódio, prejudica a segurança das pessoas e compromete a convivência civil e a estabilidade de nações inteiras. Exemplos trágicos disso são os atentados sofridos pelo primeiro-ministro da República Eslovaca e pelo presidente eleito dos Estados Unidos da América.
Este clima de insegurança incita a que se ergam novas barreiras e se desenhem novos confins, enquanto outros, como o que divide a ilha de Chipre há mais de cinquenta anos e o que corta em duas a península coreana há mais de setenta, se mantêm firmes, separando famílias e seccionar casas e cidades. Os confins modernos pretendem ser linhas de demarcação identitária, onde a diversidade é motivo de suspeita, desconfiança e medo: «O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. […] Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o “meu” mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas “os outros”» [1]. Paradoxalmente, o termo confim indica não um lugar que separa, mas que une, “onde se acaba em conjunto” ( cum-finis), se pode encontrar o outro, conhecê-lo e dialogar com ele.
O meu desejo para este novo ano é que o Jubileu possa representar para todos, cristãos e não cristãos, uma oportunidade para repensar também as relações que nos unem, enquanto seres humanos e comunidades políticas; para superar a lógica do confronto e, em vez disso, abraçar a lógica do encontro; para que o tempo que nos espera não nos ache como errantes desesperados, mas peregrinos de esperança, isto é, pessoas e comunidades a caminho, empenhadas em construir um futuro de paz.
Por outro lado, perante a ameaça cada vez mais concreta de uma guerra mundial, a vocação da diplomacia é favorecer o diálogo entre todos, incluindo os interlocutores considerados mais “incómodos” ou que não se considerariam legitimados para negociar. É o único caminho para quebrar as cadeias de ódio e vingança que aprisionam e para desativar os engenhos do egoísmo humano, do orgulho e da soberba, que são a raiz de toda e qualquer vontade beligerante que destrói.
Excelências, Senhoras e Senhores,
à luz destas breves considerações, gostaria esta manhã de delinear convosco, a partir das palavras do profeta Isaías, alguns traços duma diplomacia da esperança, da qual todos somos chamados a tornar-nos arautos, a fim de que as densas nuvens da guerra possam ser dissipadas por um renovado vento de paz. Em termos gerais, gostaria de salientar algumas responsabilidades que todo o líder político deveria ter presente no desempenho das suas responsabilidades, a ser orientadas para a construção do bem comum e para o desenvolvimento integral da pessoa humana.
Levar a boa-nova aos que sofrem
Em todas as épocas e lugares, o homem sempre foi seduzido pela ideia de ser autossuficiente, de poder bastar-se a si mesmo e ser artífice do seu próprio destino. Sempre que se deixa dominar por esta presunção, por meio de acontecimentos e circunstâncias exteriores vê-se forçado a descobrir-se fraco e impotente, pobre e necessitado, afligido por males espirituais e materiais. Por outras palavras, descobre que é mísero e precisa de alguém que o tire da sua miséria.
São muitas as misérias do nosso tempo. Nunca como nesta época a humanidade experimentou tanto progresso, desenvolvimento e riqueza, e talvez nunca como hoje se encontrou tão sozinha e perdida, a ponto de preferir não poucas vezes os animais de estimação aos filhos. Há uma urgente necessidade de uma boa-nova. Um anúncio que, na perspetiva cristã, Deus nos oferece na noite de Natal! No entanto, todos – mesmo os que não são crentes – podem tornar-se portadores de um anúncio de esperança e de verdade.
Por outro lado, o ser humano é dotado de uma inata sede de verdade. Esta procura é uma dimensão fundamental da condição humana, na medida em que cada pessoa traz dentro de si uma nostalgia de verdade objetiva e um desejo inextinguível de conhecimento. Sempre foi assim, mas, nos nossos dias, a negação de verdades evidentes parece levar vantagem. Alguns desconfiam de argumentos racionais, considerados como instrumentos nas mãos de algum poder oculto, enquanto outros pensam possuir inequivocamente a verdade que eles próprios construíram, isentando-se assim do confronto e do diálogo com quem pensa de forma diferente. Tanto uns como os outros têm tendência para criar a sua própria “verdade”, desconsiderando a objetividade do verdadeiro. Estas tendências podem ser potenciadas pelos modernos meios de comunicação e pela inteligência artificial, utilizados abusivamente como meios de manipulação da consciência para fins económicos, políticos e ideológicos.
O progresso científico moderno, especialmente no domínio da informática e da comunicação, traz consigo indubitáveis vantagens para a humanidade. Permite-nos simplificar muitos aspetos da vida quotidiana, manter contacto com os nossos entes queridos, mesmo se estão fisicamente distantes, permanecer informados e aumentar os nossos conhecimentos. No entanto, as suas limitações e armadilhas não podem ser silenciadas, uma vez que contribuem frequentemente para a polarização, o estreitamento das perspectivas mentais, a simplificação da realidade, o risco de abusos, a ansiedade e, paradoxalmente, o isolamento, em especial através da utilização das redes sociais e dos jogos online.
O incremento da inteligência artificial amplifica as preocupações com os direitos de propriedade intelectual, a segurança do trabalho de milhões de pessoas, o respeito pela privacidade e a proteção do ambiente contra o lixo eletrónico (e-waste). Quase nenhum canto do mundo se manteve inalterado pela ampla transformação cultural causada pelos prementes progressos da tecnologia, e torna-se cada vez mais evidente um alinhamento com interesses comerciais, gerando uma cultura radicada no consumismo.
Este desequilíbrio ameaça subverter a ordem dos valores inerentes à criação de relações, à educação e à transmissão dos costumes sociais, enquanto pais, parentes próximos e educadores devem continuar a ser os principais canais de transmissão da cultura, em benefício dos quais os governos deveriam limitar-se a apoiar as suas responsabilidades educativas. Nesta perspetiva, inscreve-se também a educação como alfabetização mediática, destinada a fornecer instrumentos essenciais para promover as capacidades de pensamento crítico, a fim de dotar os jovens dos meios necessários ao seu crescimento pessoal e a uma participação ativa no futuro das suas sociedades.
Por isso, uma diplomacia da esperança é, antes de mais, uma diplomacia da verdade. Nos casos em que falta a ligação entre realidade, verdade e conhecimento, a humanidade já não consegue falar e compreender-se mutuamente, porque faltam os fundamentos de uma linguagem comum, ancorada na realidade das coisas e, portanto, universalmente compreensível. O objetivo da linguagem é a comunicação, que só é bem-sucedida quando as palavras são precisas e o significado dos termos é aceite de forma generalizada. O relato bíblico da Torre de Babel mostra o que acontece quando cada um fala apenas com a “sua” língua.
A comunicação, o diálogo e o empenho em prol do bem comum exigem boa fé e a adesão a uma linguagem comum. Isto é particularmente importante no âmbito diplomático, de modo especial em contextos multilaterais. O impacto e o êxito de cada palavra, declaração, resolução e, em geral, de cada texto negociado dependem desta condição. É um facto que o multilateralismo só é forte e eficaz quando se concentra nas questões tratadas e utiliza uma linguagem simples, clara e concertada.
Por conseguinte, é particularmente preocupante a tentativa de instrumentalizar os documentos multilaterais, alterando o significado dos termos ou reinterpretando unilateralmente o conteúdo dos tratados sobre os direitos humanos, a fim de promover ideologias que dividem e espezinham os valores e a fé dos povos. Com efeito, trata-se de uma verdadeira colonização ideológica que, de acordo com programas minuciosamente estudados, procura erradicar as tradições, a história e os vínculos religiosos dos povos. É uma mentalidade que, presumindo ter ultrapassado o que considera “as páginas negras da história”, abre espaço à cultura do cancelamento, não tolera as diferenças e centra-se nos direitos dos indivíduos, negligenciando os deveres para com os outros, em particular os mais fracos e frágeis [2]. Neste contexto, é inaceitável, por exemplo, falar de um chamado “direito ao aborto” que contradiz os direitos humanos, nomeadamente o direito à vida. Toda a vida deve ser protegida, em cada um dos seus momentos, desde a conceção até à morte natural, porque nenhuma criança é um erro nem tem culpa de existir, tal como nenhuma pessoa idosa ou doente pode ser descartada e privada de esperança.
Esta abordagem é particularmente densa de consequências no âmbito dos vários organismos multilaterais. Penso, em particular, na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, da qual a Santa Sé é membro fundador, tendo participado ativamente nas negociações que, há meio século, conduziram ao Acordo de Helsínquia de 1975. É cada vez mais urgente recuperar o “espírito de Helsínquia”, com o qual Estados adversários, considerados “inimigos”, conseguiram criar um espaço de encontro e não abandonar o diálogo, enquanto instrumento de resolução de conflitos.
Pelo contrário, as instituições multilaterais, a maioria das quais surgiu no final da Segunda Guerra Mundial, há oitenta anos, já não parecem capazes de garantir a paz e a estabilidade, a luta contra a fome e o desenvolvimento, para o que foram criadas, nem de responder de forma verdadeiramente eficaz aos novos desafios do século XXI, como as questões ambientais e de saúde pública, culturais e sociais, bem como os desafios colocados pela inteligência artificial. Muitas delas precisam de ser reformadas, tendo em conta que qualquer reforma deve ser construída com base nos princípios da subsidiariedade e da solidariedade, e no respeito pela igual soberania dos Estados, embora seja doloroso constatar que existe o risco de “monadologia” e de fragmentação em like-minded clubs que só deixam entrar neles os que pensam da mesma forma.
No entanto, não faltaram e não faltam sinais encorajadores onde há boa vontade para o encontro. Estou a pensar no Tratado de paz e amizade entre a Argentina e o Chile, assinado na Cidade do Vaticano a 29 de novembro de 1984, que, com a mediação da Santa Sé e a boa vontade das partes, pôs fim ao conflito do Estreito de Beagle, demonstrando que a paz e a amizade são possíveis quando dois membros da Comunidade internacional renunciam ao uso da força e se comprometem solenemente a respeitar todas as regras do direito internacional e a promover a cooperação bilateral. E, mais recentemente, estou a pensar nos sinais positivos das retomadas negociações para voltar à plataforma sobre o acordo nuclear iraniano, com o objetivo de garantir um mundo mais seguro para todos.
Curar os desesperados
Uma diplomacia da esperança é também uma diplomacia do perdão que, num tempo cheio de conflitos abertos ou latentes, é capaz de tecer novamente as relações dilaceradas pelo ódio e pela violência, e assim enfaixar as feridas dos corações despedaçados de demasiadas vítimas. O meu desejo para este ano de 2025 é que toda a Comunidade internacional se esforce, antes de mais, para pôr fim à guerra que ensanguenta a martirizada Ucrânia há quase três anos e que causou um enorme número de vítimas, incluindo tantos civis. Alguns sinais encorajadores surgiram no horizonte, mas é necessário ainda muito trabalho no sentido de criar as condições para uma paz justa e duradoura e sarar as feridas infligidas pela agressão.
De igual modo, renovo o meu apelo a um cessar-fogo e à libertação dos reféns israelitas em Gaza, onde se vive uma situação humanitária muito grave e ignóbil, e apelo a que a população palestiniana receba toda a ajuda necessária. O meu desejo é que israelitas e palestinianos possam reconstruir as pontes do diálogo e da confiança mútua, a começar pelos mais jovens, para que as gerações vindouras possam viver lado a lado em dois Estados, em paz e segurança, e para que Jerusalém seja a “cidade do encontro”, onde cristãos, judeus e muçulmanos convivam em harmonia e respeito. Precisamente no passado mês de junho, nos jardins do Vaticano, recordámos todos juntos o 10º aniversário da Invocação pela Paz na Terra Santa, que a 8 de junho de 2014 contou com a presença do então Presidente do Estado de Israel, Shimon Peres, e do Presidente do Estado da Palestina, Mahmoud Abbas, juntamente com o Patriarca Bartolomeu I. Esse encontro tinha testemunhado que o diálogo é sempre possível e que não podemos render-nos à ideia do prevalecimento da inimizade e do ódio entre os povos.
No entanto, há que notar também que a guerra é alimentada pela proliferação contínua de armas, cada vez mais sofisticadas e destrutivas. Reitero esta manhã o apelo para que «com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna» [3].
A guerra é sempre um fracasso! O envolvimento de civis, especialmente crianças, e a destruição de infraestruturas não é só uma derrota, mas equivale a deixar que seja o mal a vencer entre os dois adversários. Não podemos aceitar, de forma alguma, o bombardeamento de populações civis ou o ataque a infraestruturas necessárias para a sua sobrevivência. Não podemos aceitar ver crianças a morrer de frio porque os hospitais foram destruídos ou foi atingida a rede energética de um país.
Toda a Comunidade internacional parece concordar sobre o respeito do direito internacional humanitário, mas a sua não aplicação plena e concreta levanta questões. Se esquecemos o que está na base, os fundamentos da nossa existência, da sacralidade da vida, dos princípios que movem o mundo, como podemos esperar que este direito seja efetivo? É preciso redescobrir estes valores e, por sua vez, encarná-los em preceitos da consciência pública, para que o princípio de humanidade esteja verdadeiramente na base da ação. Por isso, espero que este ano jubilar seja um momento propício no qual a Comunidade internacional se esforce ativamente para que os direitos invioláveis do homem não sejam sacrificados diante de exigências militares.
Tendo em conta estes pressupostos, apelo a que se continue a trabalhar a fim de que o incumprimento do direito internacional humanitário deixe de ser uma opção. São necessários mais esforços para pôr em prática o que se discutiu também na 34ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, que teve lugar no passado mês de outubro em Genebra. Acaba de ser celebrado o 75º aniversário das Convenções de Genebra, e continua a ser indispensável que as normas e os princípios em que se baseiam encontrem cumprimento nos demasiados teatros de guerra ainda abertos.
Entre eles, estou a pensar nos vários conflitos que persistem no continente africano, particularmente no Sudão, Sahel, Corno de África e em Moçambique, onde está em curso uma grave crise política, e nas regiões orientais da República Democrática do Congo, nas quais a população é afetada por graves carências sanitárias e humanitárias, agravadas por vezes pelo flagelo do terrorismo, provocando a perda de vidas e o deslocar-se de milhões de pessoas. A isto juntam-se os efeitos devastadores de inundações e secas, que agravam as condições já de si precárias em várias partes de África.
No entanto, a perspetiva de uma diplomacia do perdão não é apenas chamada a sanar conflitos internacionais ou regionais. Ela investe cada pessoa com a responsabilidade de se tornar um artesão da paz, para que se possam construir sociedades verdadeiramente pacíficas, nas quais as legítimas diferenças políticas e também sociais, culturais, étnicas e religiosas, constituam uma riqueza e não uma fonte de ódio e divisão.
O meu pensamento vai em particular para Myanmar, onde a população sofre muito com os contínuos confrontos armados, que obrigam as pessoas a fugir das suas casas e a viver com medo.
É doloroso constatar que subsistem, sobretudo no continente americano, vários contextos de aceso confronto político e social. Estou a pensar no Haiti, onde desejo que, o mais rapidamente possível, possam dar-se os passos necessários para restabelecer a ordem democrática e pôr termo à violência. Estou também a pensar na Venezuela e na grave crise política que está a enfrentar. Esta crise só pode ser superada através da adesão sincera aos valores da verdade, da justiça e da liberdade, através do respeito pela vida, a dignidade e os direitos de todas as pessoas – incluindo as que foram detidas na sequência dos acontecimentos dos últimos meses –, através da rejeição de todo o tipo de violência e, esperançosamente, através do início de negociações baseadas na boa-fé e com o objetivo do bem comum do país. Estou a pensar na Bolívia, que atravessa uma situação política, social e económica preocupante; bem como na Colômbia, onde confio que, com a ajuda de todos, se possa ultrapassar a multiplicidade de conflitos que há tanto tempo têm dilacerado o país. Por fim, penso na Nicarágua, onde a Santa Sé, que está sempre disponível para um diálogo respeitoso e construtivo, segue com preocupação as medidas tomadas contra pessoas e instituições da Igreja e espera que a liberdade religiosa e outros direitos fundamentais sejam devidamente garantidos a todos.
Com efeito, não há verdadeira paz se não for também garantida a liberdade religiosa, que implica o respeito pela consciência dos indivíduos e a possibilidade de manifestar publicamente a própria fé e a pertença a uma comunidade. Neste sentido, são muito preocupantes as crescentes manifestações de antissemitismo, que veementemente condeno e que afetam um número cada vez maior de comunidades hebraicas no mundo.
Não posso ficar calado perante as numerosas perseguições contra várias comunidades cristãs, muitas vezes perpetradas por grupos terroristas, especialmente em África e na Ásia, nem perante formas mais “delicadas” de limitação da liberdade religiosa que, por vezes, se verificam mesmo na Europa, onde se multiplicam normas legais e práticas administrativas que «que limitam ou anulam praticamente, com os factos, os direitos que as Constituições reconhecem formalmente a cada um daqueles que acreditam e aos grupos religiosos» [4]. A este propósito, gostaria de reiterar que a liberdade religiosa constitui «uma aquisição de civilização política e jurídica» [5], porque quando é reconhecida, «a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos» [6].
Que os cristãos possam e queiram contribuir ativamente para a construção das sociedades em que vivem. Mesmo quando não são a maioria na sociedade, eles são cidadãos de pleno direito, especialmente nas terras onde vivem desde tempos imemoriais. Refiro-me, em particular, à Síria, que, após anos de guerra e devastação, parece estar a percorrer uma via de estabilidade. Espero que a integridade territorial, a unidade do povo sírio e as necessárias reformas constitucionais não sejam comprometidas por ninguém, e que a Comunidade internacional ajude a Síria a ser uma terra de convivência pacífica, onde todos os sírios, incluindo a parte cristã, possam sentir-se plenamente cidadãos e participar no bem comum daquela querida nação.
Do mesmo modo, penso no amado Líbano, esperando que o país, com a ajuda decisiva da sua componente cristã, possa ter a estabilidade institucional necessária para enfrentar a grave situação económica e social, reconstruir o sul do país afetado pela guerra e implementar plenamente a Constituição e os Acordos de Taife. Que todos os libaneses trabalhem para que o rosto do País dos Cedros nunca mais seja desfigurado pela divisão, mas brilhe sempre pela “vida em conjunto” e o Líbano continue a ser um país-mensagem de coexistência e de paz.
Anunciar a libertação aos escravos
Dois mil anos de cristianismo contribuíram para eliminar a escravatura de todos os sistemas jurídicos. No entanto, continuam a existir múltiplas formas de escravatura, a começar pela que diz respeito ao trabalho; é pouco reconhecida mas muito praticada. Demasiadas pessoas vivem como escravas do seu trabalho, que de meio se transformou num fim da própria vida, e são frequentemente escravas de condições laborais desumanas, em termos de segurança, horários e salário. Há que envidar esforços para criar condições dignas e para que o trabalho, em si mesmo nobre e enobrecedor, não se torne um obstáculo à realização e ao crescimento da pessoa humana. Ao mesmo tempo, é necessário garantir a existência de verdadeiras possibilidades de emprego, sobretudo onde o desemprego generalizado favorece o trabalho não declarado e, consequentemente, a criminalidade.
Há ainda a terrível escravatura da toxicodependência, que afeta sobretudo os jovens. É inaceitável constatar quantas vidas, famílias e países são arruinados por este flagelo, que parece estar a alastrar-se cada vez mais, sobretudo devido ao aparecimento de drogas sintéticas, muitas vezes mortais e amplamente disponibilizadas pelo abominável fenómeno do narcotráfico.
Entre outras escravaturas do nosso tempo, uma das mais terríveis é a praticada pelos traficantes de seres humanos: gente sem escrúpulos que exploram a necessidade de milhares de pessoas em fuga de guerras, carestias, perseguições ou dos efeitos das alterações climáticas e que procuram um lugar seguro para viver. Uma diplomacia da esperança é uma diplomacia de liberdade, que exige o empenho conjunto da Comunidade internacional para eliminar este miserável comércio.
Ao mesmo tempo, temos de cuidar das vítimas deste tráfico, que são os próprios migrantes, forçados a percorrer a pé milhares de quilómetros na América Central e no deserto do Saara, ou a atravessar o Mar Mediterrâneo ou o Canal da Mancha em embarcações improvisadas e sobrelotadas, para depois serem rejeitados ou se encontrarem clandestinos numa terra estrangeira. Esquecemo-nos facilmente de que nos encontramos perante pessoas que precisam de ser acolhidas, protegidas, promovidas e integradas [7].
Todavia, com grande deceção, registo que a migração continua envolta numa escura nuvem de desconfiança, em vez de ser vista como uma fonte de desenvolvimento. As pessoas que se deslocam são consideradas apenas como um problema a gerir. Não podem ser assemelhadas a objetos para colocar num determinado lugar, mas têm dignidade e recursos para oferecer aos outros; têm as suas próprias experiências, necessidades, medos, aspirações, sonhos, competências, talentos. Só nesta perspetiva é possível fazer progressos na abordagem de um fenómeno que exige uma intervenção conjunta de todos os países, nomeadamente através da criação de percursos regulares e seguros.
Continua, portanto, a ser crucial enfrentar as causas profundas da emigração, de tal modo que deixar a própria casa para procurar outra seja uma escolha e não uma “obrigação de sobrevivência”. Nesta perspetiva, considero crucial um compromisso conjunto no sentido de investir na cooperação para o desenvolvimento, a fim de ajudar a erradicar algumas das causas que levam as pessoas a emigrar.
Anunciar a liberdade aos prisioneiros
Por fim, a diplomacia da esperança é uma diplomacia de justiça, sem a qual não pode haver paz. O ano jubilar é um período propício à prática da justiça, ao perdão das dívidas e à comutação das penas dos prisioneiros. No entanto, não há dívida que permita a ninguém, nem ao Estado, exigir a vida de outrem. A este respeito, reitero o meu apelo para que a pena de morte seja eliminada em todas as nações [8], uma vez que não encontra atualmente justificação entre os instrumentos adequados para reparar a justiça.
Por outro lado, não podemos esquecer que, num certo sentido, somos todos prisioneiros, porque somos todos devedores: devemos a Deus, aos outros e também à nossa amada Terra, da qual retiramos o alimento quotidiano. Como recordei na recente Mensagem do Dia Mundial da Paz, «cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita» [9]. A natureza parece estar a insurgir-se, sempre mais, contra a ação humana, através de manifestações extremas do seu poder. Exemplos disso são as inundações devastadoras na Europa Central e em Espanha, bem como os ciclones que atingiram Madagáscar na primavera e, pouco antes do Natal, o Departamento francês de Mayotte e Moçambique.
Não podemos continuar indiferentes a tudo isto! Não temos esse direito! Pelo contrário, temos o dever de envidar o máximo esforço para cuidar da nossa casa comum e daqueles que a habitam e habitarão.
Durante a COP 29, em Baku, foram tomadas decisões para garantir mais recursos financeiros para a ação climática. Espero que elas permitam a partilha de recursos em benefício dos muitos países vulneráveis à crise climática e sobrecarregados pelo peso de uma dívida económica opressiva. Nesta linha, apelo às nações mais ricas para que perdoem as dívidas dos países que nunca as poderiam pagar. Não se trata apenas de um ato de solidariedade ou de magnanimidade, mas sobretudo de um ato de justiça, marcada também por uma nova forma de iniquidade da qual estamos hoje cada vez mais conscientes: a “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul [10].
Ainda em função da dívida ecológica, é importante encontrar modos eficazes de converter a dívida externa dos países pobres em políticas e programas eficientes, criativas e responsáveis de desenvolvimento humano integral. A Santa Sé está disposta a acompanhar este processo, consciente de que não há fronteiras nem barreiras, políticas ou sociais, atrás das quais nos possamos esconder [11].
Antes de concluir, gostaria aqui de apresentar as minhas condolências e dizer que rezo pelas vítimas e por aqueles que estão a sofrer devido ao terramoto que, há dois dias, atingiu o Tibete.
Prezados Embaixadores,
Na perspetiva cristã, o Jubileu é um tempo de graça. E como eu gostaria que este ano de 2025 fosse verdadeiramente um ano de graça, rico de verdade, perdão, liberdade, justiça e paz! «No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expetativa do bem» [12] e cada um de nós é chamado a fazê-la florescer ao seu redor. A todos vós, estimados Embaixadores, às vossas famílias, aos governos e povos que representais, deixo este meu cordial voto: que a esperança floresça nos nossos corações e o nosso tempo encontre a paz que tanto anseia. Muito obrigado.
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[1] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 27.
[2] Cf. Encontro com as Autoridades civis, com os Representantes das populações indígenas e com o Corpo Diplomático (Citadelle de Québec, 27 de julho de 2022).
[3] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 262; cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 51.
[4] João Paulo II, Mensagem para o XXI Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 1988), 2.
[5] Bento XVI, Mensagem para o XLIV Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 2011), 5.
[7] Cf. Francisco, Discurso aos participantes no Fórum Internacional sobre Migrações e Paz (21 de fevereiro de 2017).
[8] Cf. Francisco, Mensagem para o LVIII Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 2025), 11.
[10] Cf. Francisco, Bula Spes non confundit (9 de maio de 2024),16; Francisco, Carta enc. Laudato si' (24 de maio de 2015), 51.
[11] Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si' (24 de maio de 2015), 52.
[12] Francisco, Bula Spes non confundit (9 de maio de 2024), 1.
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