CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AO BISPO DE AUTUM, CHÂLON E MÂCON
ABADE DE CLUNY
A D. Raymond SEGUY
Bispo de Autun, Châlon e Mâcon
Abade de Cluny
1. Neste ano em que se celebram o milénio da Comemoração dos Fiéis defuntos instituída por Santo Odilon, quinto Abade de Cluny, o centenário da fundação, pelo vosso predecessor Cardeal Perraud, da Arquiconfraria de Nossa Senhora de Cluny, encarregada de orar pelas almas do purgatório, e o quadragésimo aniversário do Boletim Lumière et vie, que promove a oração pelos defuntos, de bom grado associo-me com o pensamento a todos aqueles que, no decurso deste ano, vão participar nas celebrações oferecidas por aqueles que nos precederam. Com efeito, no dia seguinte à festa de Todos os Santos, quando a Igreja celebra na alegria a Comunhão dos Santos e a salvação dos homens, Santo Odilon quis exortar os seus monges a orarem de maneira particular pelos mortos, contribuindo assim misteriosamente para o seu acesso à bem-aventurança; a partir da abadia de Cluny expandiu- se pouco a pouco o costume de interceder solenemente em favor dos defuntos, mediante uma celebração a que Santo Odilon chamou a Festa dos Mortos, prática hoje em vigor na Igreja universal.
2. Orando pelos mortos, a Igreja contempla antes de tudo o mistério da Ressurreição de Cristo que, pela sua Cruz, nos obtém a salvação e a vida eterna. Deste modo, com Santo Odilon, podemos repetir sem cessar: «A Cruz é-me um refúgio, a Cruz é-me a via e a vida [...]. A Cruz é a minha arma invencível. A Cruz repele todo o mal. A Cruz dissipa as trevas». A Cruz do Senhor recorda-nos que a vida inteira é habitada pela luz pascal e jamais situação alguma está totalmente perdida, pois Cristo venceu a morte e nos abre o caminho da verdadeira vida. A redenção «realiza-se no sacrifício de Cristo, pelo qual o homem resgata a dívida do pecado e fica reconciliado com Deus» (Tertio millennio adveniente, 7).
3. A nossa esperança está fundada no sacrifício de Cristo. A sua Ressurreição inaugura «os últimos tempos» (1 Pd 1, 20; cf. Hb 1, 2). A fé na vida eterna que professamos no Credo é um convite à alegre esperança de vermos a Deus face a face. Crer na ressurreição da carne é reconhecer que existe um fim último, uma finalidade derradeira para toda a vida humana, que «de tal modo satisfaz o desejo do homem, que não deixa nada a desejar fora dela» (Tomás de Aquino, Suma Teológica I-II, q. 1, a. 5; cf. S. Paulino de Nola, Cartas 1, 2). É o mesmo desejo que exprimia de maneira admirável Santo Agostinho: «Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós» (Confissões I, 1). Todos nós, então, somos chamados a viver com Cristo, sentado à direita do Pai, a contemplar a Santíssima Trindade, pois «Deus é o objecto principal da esperança cristã» (Afonso de Ligório, Praticar o amor de Jesus Cristo 16, 2); com Job, já podemos exclamar: «Porque eu sei que o meu Redentor vive e aparecerá, finalmente, sobre a terra, e depois que a minha pele se desprender da minha carne, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo O contemplarei, os meus olhos vê-l'O-ão e não os olhos de outrem » (19, 25-27).
4. Recordamos também que o Corpo místico de Cristo está à espera da sua unidade, no final da história, quando todos os membros estiverem na bem-aventurança perfeita e Deus for tudo em todos (cf. Orígenes, Homilias sobre o Levítico, n. 7). Com efeito, a Igreja espera a salvação eterna para todos os seus filhos e para todos os homens. «Cremos que a Igreja é necessária à salvação, pois Cristo, que é o único mediador e via da salvação, torna-Se-nos presente no seu Corpo que é a Igreja. Mas o desígnio divino da salvação abrange todos os homens; e aqueles que, sem falta da sua parte, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas buscam a Deus sinceramente e, sob a influência da graça, se esforçam por cumprir a Sua vontade reconhecida pelas injunções da própria consciência, esses, num número que só Deus conhece, podem obter a salvação» (Paulo VI, Profissão de fé).
Na expectativa de que a morte seja definitivamente vencida, uns «peregrinam sobre a terra, outros, passada esta vida, são purificados, outros, finalmente, são glorificados» e contemplam a Trindade na plena luz (Concílio Ecuménico Vaticano II, Lumen gentium, 49; cf. Eugénio IV, Bula Laetantur caeli). Unida aos méritos dos Santos, a nossa oração fraterna vai em socorro daqueles que estão à espera da visão beatífica. Tanto a intercessão pelos mortos como a vida dos vivos segundo os mandamentos divinos obtêm méritos, que servem para a plena realização da salvação. É uma expressão da caridade fraterna da única família de Deus, pela qual «correspondemos à íntima vocação da Igreja» (Lumen gentium, 51): «salvar almas que amarão a Deus eternamente» (Teresa de Lisieux, Orações, 6; cf. Manuscrito A 77 r°). Para as almas do purgatório, a espera da felicidade eterna, do encontro com o Bem-Amado, é fonte de sofrimentos por causa da pena devida ao pecado, que mantém longe de Deus. Mas há também a certeza de que, terminado o tempo de purificação, a alma irá ao encontro d'Aquele que ela deseja (cf. Sl 42 e 62).
5. A contemplação da vida dos homens que seguiram Cristo estimula-nos, para levarmos uma existência cristã bela e correcta, que nos torna «dignos do Reino de Deus» (2 Ts 1, 5). Por esta razão, somos chamados à «vigilância sobrenatural », segundo a expressão do Cardeal Perraud (Lettre à l'occasion du neuviéme centenaire de la fête pour les morts), a fim de nos prepararmos cada dia para a vida eterna. Como ressaltava o Cardeal John Henry Newman, «devemos não só crer, mas vigiar; não só amar, mas vigiar; não só obedecer, mas vigiar [...]. É possível que a vigilância seja a prova mesma em que se reconhece o cristão». Pois vigiar, é «estar separado daquilo que é presente e viver naquilo que é invisível; viver com o pensamento de que Cristo veio uma vez e há-de vir de novo; desejar o Seu advento» (Parochial and plain Sermons, IV, 8).
6. As orações de intercessão e de súplica, que a Igreja não cessa de dirigir a Deus, têm um valor enorme. Elas são «próprias dum coração conforme com a misericórdia de Deus» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2635). O Senhor deixa-Se sempre tocar pelas súplicas dos Seus filhos, pois é o Deus dos vivos. Durante a Eucaristia, mediante a oração universal e o memento pelos defuntos, a comunidade reunida apresenta ao Pai de todas as misericórdias aqueles que morreram, a fim de que, pela prova do purgatório, se esta lhes for necessária, sejam purificados e cheguem à felicidade eterna. Ao confiarmo-los ao Senhor, reconhecemo-nos solidários com eles e participamos na sua salvação, neste admirável mistério da Comunhão dos Santos. A Igreja acredita que as almas que estão retidas no purgatório «são ajudadas pela intercessão dos fiéis e sobretudo pelo sacrifício propiciatório do altar» (Concílio de Trento, Decreto sobre o Purgatório), assim como «pelas esmolas e as outras obras de piedade» (Eugénio IV, Bula Laetantur caeli). «Com efeito, a própria santidade já vivida, que deriva da participação na vida de santidade da Igreja, representa o primeiro e fundamental contributo para a edificação da própria Igreja, como "Comunhão dos Santos"» (Christifideles laici, 17).
7. Encorajo, pois, os católicos a orarem com fervor pelos defuntos, por aqueles das suas famílias e por todos os nossos irmãos e irmãs que morreram, a fim de obterem a remissão das penas devidas aos seus pecados e ouvirem o apelo do Senhor: «Vem, ó minha alma querida, ao repouso eterno entre os braços da Minha bondade, que te preparou as delícias eternas» (Francisco de Sales, Introdução à vida devota, 17, 4).
Ao confiar à intercessão de Nossa Senhora, de Santo Odilon e de São José, Padroeiro da boa morte, os fiéis que rezarem pelos mortos, concedo-lhes de todo o coração a minha Bênção Apostólica, assim como aos membros da comunidade diocesana de Autun, aos que estão inscritos na Arquiconfraria de Nossa Senhora de Cluny e aos leitores do Boletim Lumière et vie. De bom grado faço-a extensiva a todos os que, durante o ano milenário, orarem pelas almas do purgatório, participarem na Eucaristia e oferecerem sacrifícios pelos defuntos.
Vaticano, 2 de Junho de 1998.
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