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MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
 JOÃO PAULO II
PARA A CELEBRAÇÃO DO
XIX DIA MUNDIAL DA PAZ

1° DE JANEIRO DE 1986

 

A PAZ É UM VALOR SEM FRONTEIRAS. 
NORTE - SUL, LESTE - OESTE : UMA SÓ PAZ

 

1. A paz como valor universal

No começo deste Novo Ano, tomando a inspiração de Cristo, Príncipe da Paz, quero renovar o meu compromisso e o de toda a Igreja Católica pela causa da paz. Ao mesmo tempo, dirijo a cada pessoa individualmente e a todos os Povos da terra a minha saudação sincera e os melhores votos: Paz a todos vós! Paz em todos os corações! A paz é um valor de uma importância tal, que deve ser repetidamente proclamada e promovida por todos. Não existe nenhum ser humano que não seja beneficiado com a paz. Não há nenhum coração humano que não se sinta aliviado quando reina a paz. As Nações do mundo só poderão realizar plenamente os seus destinos, intimamente ligados entre si, quando todas elas procurarem juntamente a paz como valor universal.

Por ocasião deste XIX Dia Mundial da Paz e no Ano Internacional da Paz, proclamado pela Organização das Nações Unidas, proponho a cada um, como mensagem de esperança, a minha profunda convicção : « A paz é um valor sem fronteiras ». É um valor que corresponde às esperanças e às aspirações de todos os Povos e de todas as Nações, dos jovens e dos anciãos e de todos os homens e mulheres de boa vontade. É isto que desejo proclamar a todos e a cada um dos homens e, de modo especial, aos que têm a missão de chefes do mundo.

O assunto da paz como valor universal precisa de ser encarado com grande honestidade intelectual, com lealdade de espírito e com vivo sentido de responsabilidade em relação a si próprio e em relação a todos os Povos da terra. Eu desejaria aqui pedir aos responsáveis pelas decisões políticas que afectam as relações entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste, que se convencessem de que pode existir unicamente UMA SÓ PAZ. Aqueles que orientam o futuro deste mundo, sejam quais forem a sua filosofia política, o seu sistema económico ou as suas convicções religiosas, estão todos chamados a contribuir para a edificação de uma paz única, fundada sobre as bases da justiça social e da dignidade e dos direitos de cada pessoa humana.

Esta tarefa exige uma abertura total em relação à humanidade inteira, com a convicção de que todas as Nações da terra estão ligadas umas com as outras. Estes vínculos mútuos expressam-se numa interdependência que pode demonstrar-se profundamente vantajosa ou profundamente destrutiva. Daqui o facto de a solidariedade e a cooperação a nível mundial constituirem imperativos éticos que fazem apelo às consciências dos indivíduos e ao sentido de responsabilidade de todas as Nações. E é neste contexto de imperativos éticos que me dirijo ao mundo inteiro, pelo dia 1° de Janeiro de 1986, proclamando o valor universal da paz.

2. As ameaças à paz 

Ao pôr em realce esta concepção da paz, no alvorecer de um novo ano, nós estamos profundamente cônscios de que a paz é também, na presente situação, um valor que assenta em alicerces muito frágeis. À primeira vista, o nosso intuito de fazer da paz um imperativo absoluto pode parecer utópico, dado que o nosso mundo apresenta uma tão ampla indiciação de excessivo interesse egoísta, no contexto de grupos políticos, ideológicos e económicos contrapostos entre si. Ilaqueados pelos laços destes sistemas, os chefes e os diversos grupos sentem-se impelidos a buscar a realização dos seus objectivos particulares e das suas ambições de poder, de progresso e de riqueza, sem ter em consideração suficientemente as necessidades e os deveres que implicam a solidariedade e cooperação internacionais, em prol do bem comum de todos os Povos que compõem a família humana.

Em semelhante conjuntura, surgiram e mantêm-se blocos, que dividem e opõem entre si os povos, os grupos e os indivíduos, tornando precária a paz e levantando sérios obstáculos ao desenvolvimento. As posições endurecem-se e o desejo excessivo de manter as próprias vantagens ou de aumentar a própria quota-parte de influência tornam-se, muitas vezes, a razão efectiva que prevalece para a actuação. Isto leva à exploração dos outros, ao mesmo tempo que se desenvolve a espiral no sentido de uma polarização que se alimenta dos frutos do interesse egoísta e de uma desconfiança crescente em relação aos outros. Numa situação assim, os que mais sofrem são os pequenos e os fracos, os pobres e os sem-voz. Isto pode suceder, directamente, quando um povo, pobre e relativamente indefeso, cai e é mantido subjugado pela força do poder. Pode suceder também, indirectamente, quando se usa o poder económico para privar alguém daquilo que legitimamente lhe pertence e mantê-lo em sujeição social e económica, que gera mal-estar e violência. Os exemplos disto, infelizmente, são muito numerosos nos nossos dias.

A este propósito, o exemplo mais dramático e insofismável continua a ser o espectro das armas nucleares, que tem a sua origem precisamente na oposição entre Leste e Oeste. As armas nucleares são de tal maneira potentes na sua capacidade destruidora e as estratégias nucleares são tão amplas e extensas nos seus planos, que a imaginação popular fica muitas vezes paralisada pelo medo. E não é destituído de fundamento este medo. O único caminho para se atenuar este temor justificado, em relação às consequências de uma destruição nuclear, consiste em manter abertas as negociações para a redução das armas nucleares e para acordos recíprocos sobre as medidas que diminuam a probabilidade de uma guerra nuclear. Desejaria pedir, uma vez mais, às potências nucleares que reflictam sobre a sua grave responsabilidade moral e política neste campo. É uma obrigação que alguns já assumiram, mesmo juridicamente, em acordos internacionais; e para todos constitui uma obrigação que dimana de uma corresponsabilidade básica pela paz e pelo desenvolvimento.

Entretanto, a ameaça das armas nucleares não é a única causa a fazer com que o conflito se torne permanente e ameaçador. A crescente venda e compra de armas convencionais, mas muito sofisticadas está a ter resultados horríveis. Com efeito, se as maiores potências têm conseguido evitar conflitos directos, as rivalidades entre elas fazem-se sentir, muitas vezes, noutras partes do mundo. Questões locais e divergências regionais foram agravadas e prolongadas, mediante o fornecimento de armamentos pelos Países mais ricos e mediante a ideologização de conflitos locais por parte das potências que buscam vantagens numa determinada região, explorando a condição dos pobres e dos indefesos.

O conflito armado não é a única forma de obrigar os pobres a suportar uma parte injusta dos fardos do mundo actual. Os Países em vias de desenvolvimento têm de afrontar colossais desafios, mesmo quando estão preservados de semelhante flagelo. Nos seus múltiplos aspectos, o subdesenvolvimento continua a ser uma ameaça, que vai sempre crescendo, para a paz mundial.

Com efeito, entre os Países que formam o « Bloco Norte » e os que constituem o « Bloco Sul » existe um abismo social e económico a separar os ricos dos pobres. As estatísticas dos últimos anos apresentam sinais de melhoria nalguns poucos Países; mas evidenciam também a amplificação das distâncias em muitos outros. A isto há que acrescentar a imprevisível e flutuante situação financeira, com o seu impacto directo em Países que têm grandes dívidas e que lutam para chegar a um desenvolvimento positivo.

Nestas condições, a paz como valor universal está em sério perigo. Ainda que não haja conflito armado como tal, em acto, onde há injustiças existe realmente uma causa e um factor potencial de conflito. Em todo o caso, uma situação de paz, no pleno sentido do valor da expressão não pode coexistir com a injustiça. A paz não pode ser reduzida à mera ausência de conflitos; ela é a tranquilidade e a plenitude da ordem. A paz perde-se por causa da exploração social e económica da parte de determinados grupos de interesses, que operam a nível internacional ou desempenham o papel de elites no interior dos Países em vias de desenvolvimento; perde-se, quando o uso da violência produz os frutos amargos do ódio e da divisão; perde-se, por causa das divisões sociais que instigam à confrontação entre ricos e pobres, entre os Estados ou no interior dos Estados; perde-se, quando a exploração económica ou as tensões internas nas estruturas sociais deixam o povo sem defesa e desiludido, tornando-o presa fácil das forças destruidoras da violência. Como valor, a paz acha-se continuamente em perigo, devido a interesses consolidados e a interpretações divergentes e opostas da mesma; ela pode chegar mesmo a ser manipulada ao serviço de ideologias e sistemas políticos, que têm como último objectivo a dominação.

3. Para superar a situação actual

Há quem pretenda que a situação presente é natural e inevitável. As relações entre os indivíduos e entre os Estados - diz-se - são caracterizadas por um conflito permanente. Està visão doutrinal e política traduz-se num modelo de sociedade e num sistema de relações internacionais, que são dominados pela competição e pelo antagonismo, em que prevalece o mais forte. A paz que nasce de tal perspectiva só pode ser um « arranjo », uma situação de compromisso sugerida pelo princípio da Realpolitik; e, como tal não visa tanto resolver as tensões mediante a justiça e a equidade, quanto gerir as diferenças e os conflitos, de forma a manter uma espécie de equilíbrio que preserve tudo o que sirva os interesses da parte dominante. É óbvio que a « paz », construída e mantida sobre injustiças sociais e sobre conflitos ideológicos, jamais poderá tornar-se uma paz verdadeira para o mundo. Semelhante « paz » não poderá afrontar nunca as causas de fundo das tensões mundiais nem dar ao mundo uma visão e os valores que possam compor as divisões representadas pelos polos Norte-Sul e Leste-Oeste.

Àqueles que pensam que os blocos são algo inevitável, nós respondemos que é possível e até mesmo necessário implantar novos modelos de sociedade e de relações internacionais, que garantam a justiça e a paz assentes em fundamentos estáveis e universais. De facto, um são realismo leva a pensar que tais modelos não podem ser simplesmente impostos de cima ou de fora, nem realizados unicamente com métodos e técnicas. A razão disto é porque as raízes mais profundas das oposições e das tensões que mutilam a paz e comprometem o desenvolvimento devem ser buscadas no coração do homem. São sobretudo os corações e os comportamentos das pessoas que devem ser modificados. E isto exige uma renovação, uma conversão dos indivíduos.

Se estudarmos a evolução da sociedade nos últimos anos, poderemos verificar não só as feridas profundas, mas também os sinais de uma determinação, por parte de muitos dos nossos contemporâneos e de numerosos Povos, de quererem superar os obstáculos actuais, a fim de fazerem com que apareça um novo sistema internacional. Este é o caminho pelo qual a humanidade deve enveredar, se quiser entrar numa era de paz universal e de desenvolvimento integral.

4. O caminho da solidariedade e do diálogo

Qualquer novo sistema internacional, susceptível de superar a lógica dos blocos e das forças antagonistas, tem de basear-se no empenho pessoal de cada um por fazer das necessidades fundamentais e primárias da humanidade o imperativo prevalecente da política internacional. Hoje em dia, um sem número de seres humanos, em todas as partes do mundo, adquiriram um sentido bem vivo da sua igualdade fundamental, da sua dignidade humana e dos seus direitos inalienáveis. Ao mesmo tempo, dá-se uma crescente tomada de consciência de que a humanidade tem uma profunda unidade de interesses, de vocação e de destino e de que todos os Povos são chamados a formar uma só família, com a variedade e riqueza de suas características nacionais diferentes. Além disso, há também a consciência de que os recursos não são ilimitados e de que as necessidades são imensas. Por conseguinte, em vez de despender esses recursos ou de os sacrificar em mortíferas armas de destruição, é necessário usá-los primeiro que tudo para satisfazer as necessidades prioritárias e fundamentais da humanidade.

É igualmente importante notar que está a ganhar terreno a consciência do facto de que a reconciliação, a justiça e a paz entre os indivíduos e entre as Nações - dado o estádio a que a humanidade chegou e dadas as gravíssimas ameaças que pendem sobre o seu futuro - não são simplesmente um nobre apelo, dirigido e interessando apenas a alguns idealistas, mas uma condição para a própria vida subsistir. Por consequência, o estabelecimento de uma ordem baseada na justiça e na paz, hoje, é uma necessidade vital, impondo-se como claro imperativo moral, válido para todos os Povos e todos os regimes, acima das ideologias e dos sistemas. Ao mesmo tempo que se considera o bem comum próprio de uma Nação, é preciso ir além e considerar o bem comum da inteira família das Nações, pois trata-se, claramente, de um dever de natureza ética e jurídica.

O verdadeiro caminho que conduz a uma comunidade mundial, na qual hão-de reinar a justiça e a paz sem fronteiras, entre os Povos e em todos os continentes, é o caminho da solidariedade, do diálogo e da fraternidade universal. Este é o único caminho possível. As relações e os sistemas políticos, económicos, sociais e culturais devem estar imbuídos dos valores da solidariedade e do diálogo, os quais, por sua vez, exigem uma dimensão institucional sob a forma de organismos especializados da comunidade mundial, que velem pelo bem comum de todos os Povos.

É claro que, para se chegar à formação efectiva de uma comunidade mundial deste tipo, é preciso abandonar atitudes mentais e concepções políticas contaminadas pela sede do poder, pelas ideologias, pela preocupação de defender os próprios privilégios e bem-estar, e substituí-las por uma disponibilidade para a compartilha e colaboração com todos, num espírito de confiança mútua.

Este apelo a reconhecer a unidade da família humana tem, na verdade, repercussões realíssimas para a nossa vida e o nosso empenho em prol da paz. Isto significa, antes de tudo, que rejeitamos aquelas formas de pensamento que levam às divisões e à exploração. Significa que nos comprometemos em favor duma nova solidariedade, a solidariedade da família humana. Significa reparar bem nas tensões Norte-Sul e substituí-las por um novo tipo de relações: a solidariedade social de  todos. Esta solidariedade social leva a encarar bem de frente, com honestidade, o abismo que existe hoje; mas não abdica diante de nenhuma espécie de determinismo económico. Reconhece a grande complexidade de um problema que, durante demasiado tempo, se deixou escapar a toda a espécie de controlo, mas que pode ser ainda equacionado rectamente pelos homens e mulheres que se considerem fraternamente solidários com todas as demais pessoas sobre a terra. É verdade que as mudanças nos modelos de crescimento económico afectaram todas as regiões do mundo e não apenas as mais pobres. Mas qualquer pessoa que considere a paz um valor universal deseja certamente aproveitar esta oportunidade para reduzir as diferenças entre o Norte e o Sul e favorecer um tipo de relações que os aproximem mais. Basta pensar nos preços das matérias primas, nas necessidades de competência técnica, na formação profissional da mão de obra, na produtividade potencial de milhões de desempregados, nas dívidas que gravam sobre as Nações pobres e numa utilização melhor e mais responsável dos fundos no interior dos Países em vias de desenvolvimento. Estou a pensar no grande número de elementos que isoladamente criaram tensões e que no seu conjunto polarizaram as relações Norte-Sul. Tudo isto pode e deve ser mudado.

Se a justiça social é o meio para se poder caminhar no sentido da paz para todos os Povos, isto significa que nós consideramos a paz como um fruto indivisível de relações justas e honestas a todos os níveis social, económico, cultural e ético da vida dos homens sobre a terra. Esta conversão para uma atitude de solidariedade social serve também para pôr em relevo as deficiências da situação actual Leste-Oeste. Na mensagem que dirigi à II Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o Desarmamento, analisei muitos dos elementos que são requeridos para melhorar a situação existente entre os dois maiores blocos de poder do Leste e do Oeste. Todas as medidas então recomendadas, e confirmadas desde essa altura, se baseiam na solidariedade da família humana, caminhando juntamente pelas sendas do diálogo. O diálogo pode abrir muitas portas fechadas pelas tensões que marcaram as relações Leste-Oeste. O diálogo é um meio pelo qual os homens se desvendam uns aos outros e descobrem mutuamente as esperanças de bem e as aspirações à paz que, muitas vezes, se encontram escondidas nos seus corações. O diálogo autêntico vai além das ideologias e, por ele, as pessoas encontram-se ao nível das realidades humanas da sua vida. O diálogo desfaz os preconceitos e derruba as barreiras artificiais. O diálogo leva os homens a entrar em contacto uns com os outros, como membros de uma só família humana, com toda a riqueza da diversidade das suas culturas e histórias. A conversão do coração compromete as pessoas a promoverem a fraternidade universal; e o diálogo ajuda a alcançar este objectivo.

Hoje este diálogo é necessário mais do que nunca. Armas e sistemas de armamento, estratégias militares e alianças, abandonados a si mesmos, tornam-se instrumentos de intimidação e fonte de recriminações recíprocas, com o consequente terror que, no momento actual, repercute tão profundamente em boa parte da humanidade. O diálogo, ao contrário, considera estes instrumentos na sua relação com a vida humana. Estou a pensar, antes de mais, nos diversos diálogos em Genebra, que têm em vista negociar as reduções e as limitações dos armamentos. Mas há também os diálogos que estão a decorrer no contexto do processo multilateral, que se iniciou com o Acto Final de Helsínquia, da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa. Este processo irá ser novamente examinado no próximo ano, em Viena, e continuará. Pelo que diz respeito ao diálogo e cooperação entre o Norte e o Sul, pode pensar-se nas responsabilidades importantes confiadas a algumas organizações, como a Conf erência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento ( UNCTAD ) e a Convenção de Lomé na qual a Comunidade Europeia está comprometida. Pode pensar-se também nas diversas formas de diálogo que se instaura quando as fronteiras se abrem e as pessoas podem deslocar-se livremente. Pense-se, ainda, no diálogo que se estabelece quando uma cultura é enriquecida pelo contacto com outra cultura, quando os estudiosos podem comunicar livremente entre si, quando os trabalhadores podem reunir-se livremente, quando os jovens conjugam os seus esforços em ordem ao futuro e quando as pessoas idosas permanecem junto daqueles que lhes são queridos. O caminho do diálogo é um caminho de descobertas; e quanto mais nós avançarmos na descoberta uns dos outros, tanto mais poderemos substituir as tensões do passado com os laços da paz.

5. Novas relações baseadas na solidariedade e no diálogo

Com um espírito de solidariedade e mediante os instrumentos do diálogo aprenderemos:

- a respeitar cada pessoa humana;
- a respeitar os valores autênticos e as culturas dos outros;
- a respeitar a autonomia legítima e a autodeterminação dos outros;
- a olhar para além de nós mesmos, a fim de compreender e apoiar o que há de bom nos outros;
- a contribuir com os próprios recursos para a solidariedade social em favor do desenvolvimento e do crescimento, que promanem da equidade e da justiça;
- a construir estruturas que proporcionem à solidariedade social e ao diálogo serem características permanentes do mundo em que vivemos.

As tensões que provocam os dois blocos serão revezadas com êxito pelas relações mútuas da solidariedade e do diálogo, quando nos acostumarmos a afirmar o primado da pessoa humana. A dignidade da pessoa, homem ou mulher, e a defesa dos seus direitos humanos estão em jogo, porque tais valores são afectados sempre, de uma maneira ou de outra, pelas consequências dessas tensões e divergências dos blocos que estamos a considerar. Isso pode acontecer nos Países onde muitas liberdades individuais estão garantidas, mas onde o individualismo e o consumismo alteram e falseiam os valores da vida. Isso acontece em sociedades onde a pessoa é como que submergida pela colectividade. Isso pode acontecer em Países jovens, que estão ansiosos por tomar as rédeas dos seus próprios destinos, mas que, muitas vezes, se vêem forçados pelas grandes potências a actuar determinadas políticas ou são seduzidos pelo sonho do lucro imediato, à custa da própria população. Em todos estes casos é preciso insistir no primado da pessoa.

6. A visão e o empenho dos cristãos

Os meus irmãos e irmãs na fé cristã encontram em Jesus Cristo, na mensagem do Evangelho e na vida da Igreja razões nobres e também motivos que os impulsionam a envidar todos os esforços, no sentido de se tornar realidade uma só paz no mundo de hoje. A fé cristã tem o seu ponto focal em Jesus Cristo, que estende os seus braços na Cruz num gesto de congregar os filhos de Deus que andavam dispersos (cf. Jo 11, 52) e como que para derrubar o muro da inimizade que divide (cf. Ef 2, 14) e para reconciliar os povos na fraternidade e na paz. A Cruz, erguida sobre o mundo, abraça de maneira simbólica o Norte e o Sul, bem como o Leste e o Oeste, e tem o poder de os reconciliar.

Os cristãos, iluminados pela fé, sabem que a causa última, pela qual o mundo em vez de ser um lugar de fraternidade verdadeira é um campo de divisões, de tensões, de rivalidades, de blocos e de desigualdades injustas, é o pecado; o que equivale a dizer, está numa desordem moral do homem. Mas os cristãos também sabem que a graça de Cristo, que pode transformar esta condição humana, está a ser oferecida continuamente ao mundo, de modo que « onde abundou o pecado, superabundou a graça » (Rom 5, 20). A Igreja, que continua a obra de Cristo e é dispenseira da sua graça redentora, tem como missão, precisamente, a reconciliação de todas as pessoas tomadas individualmente e de todos os Povos, na unidade, na fraternidade e na paz. «Promover a unidade afirma o Concílio Vaticano II é algo que se harmoniza com a missão profunda da Igreja, pois ela é, "em Cristo, como que o sacramento ou sinal e o instrumento da união íntima com Deus e unidade de todo o género humano" » (Gaudium et spes, 42). E ainda, a mesma Igreja, que é una e universal na diversidade dos povos que congrega, « pode constituir um vínculo estreitíssimo entre as diferentes comunidades humanas e Nações, contanto que estas tenham confiança nela e lhe reconheçam de facto uma autêntica liberdade para ela cumprir a sua missão » (ibid).

Esta visão e estas exigências, que brotam do próprio coração da fé, deveriam, primeiro que tudo, induzir os cristãos a tomarem cada vez mais consciência das situações que não estão de harmonia com o Evangelho, para as purificar e corrigir. E, ao mesmo tempo, os cristãos deveriam reconhecer e saber apreciar os sinais positivos que manifestam que estão a ser feitos esforços no sentido de encontrar remédio para essas situações; são esforços que eles têm o dever de apoiar, encorajar e procurar, de uma maneira eficaz, que se intensifiquem.

Animados por uma viva esperança, capazes de esperar contra toda a esperança (cf . Rom 4, 18), os cristãos têm de saber superar as barreiras das ideologias e dos sistemas, a fim de poderem entrar em diálogo com todos os homens de boa vontade e criar novas relações e novas formas de solidariedade. A este propósito, desejaria ter aqui uma palavra de apreço e de encómio para com todos aqueles que, a nível de voluntariado, estão empenhados em trabalhos de alcance internacional e se dedicam a actividades de vário género, que visam criar, por cima dos diferentes blocos, elos feitos de compartilha e fraternidade.

7. Ano Internacional da Paz e apelo final

Caros amigos, todos vós, irmãos e irmãs:
No começo de um novo ano, desejo reiterar-vos o meu apelo para que ponhais de parte as hostilidades, para que despedaceis as cadeias das tensões que existem no mundo. Sim, dirijo-vos o meu apelo para que transformeis essas tensões entre o Norte e o Sul e entre o Leste e o Oeste em relações novas de solidariedade social e de diálogo. A Organização das Nações Unidas proclamou o ano de 1986 Ano Internacional da Paz. Este nobre esforço merece o nosso encorajamento e o nosso apoio. Que via melhor se poderia escolher para servir os objectivos deste Ano da Paz do que aquela que visa fazer das relações Norte-Sul e Leste-Oeste as bases de uma paz universal ?

Apelo para vós, homens de Estado e homens políticos: dai directrizes que estimulem as pessoas a renovar esforços neste sentido!

Apelo para vós, homens de negócios, para vós, que sois responsáveis pelas organizações financeiras e comerciais: considerai bem, uma vez mais, as vossas responsabilidades para com todos os vossos irmãos e irmãs !

Apelo para vós, responsáveis pela estratégia militar, oficiais, cientistas e técnicos: fazei uso das vossas competências respectivas naqueles campos que possam favorecer o diálogo e a compreensão!

Apelo para vós, os que sofreis, que sois deficientes, que sois fisicamente diminuídos: oferecei as vossas orações e as vossas vidas para que sejam abatidas as barreiras que dividem o mundo!

Apelo para vós, todos os que acreditais em Deus: vivei cada dia da vossa vida com consciência de serdes membros de uma só e mesma família dos filhos de Deus e sob a Sua paternidade!

Apelo, enfim, para todos e cada um de vós, jovens, anciãos, fracos e poderosos: escolhei todos a paz como o grande valor que pode unificar as vossas vidas! Onde quer que vivais sobre a face da terra, exorto-vos instantemente a procurar, em solidariedade e em diálogo sincero, a Paz como valor sem fronteiras : do Norte ao Sul e de Leste a Oeste, em toda a parte um só povo unido numa única Paz.

Vaticano, 8 de Dezembro de 1985.

 

IOANNES PAULUS PP. II



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