MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
JOÃO PAULO II
PARA A CELEBRAÇÃO DO
XXXIV DIA MUNDIAL DA PAZ
1° DE JANEIRO DE 2001
DIÁLOGO ENTRE AS CULTURAS
PARA UMA CIVILIZAÇÃO DO AMOR E DA PAZ
1. No princípio de um novo milénio, torna-se mais viva a esperança de ver as relações entre os homens inspiradas pelo ideal de uma fraternidade verdadeiramente universal. Sem a partilha deste ideal, não será possível garantir estavelmente a paz. Muitos sinais levam a pensar que esta convicção está ganhando mais força na consciência da humanidade. O valor da fraternidade é proclamado pelas grandes « cartas » dos direitos humanos, tem forma visível nas grandes instituições internacionais e, de modo particular, na Organização das Nações Unidas, e finalmente é exigido — como nunca o fora antes — pelo processo de globalização que está a unir progressivamente os destinos da economia, da cultura e da sociedade. A própria reflexão dos crentes, nas diversas religiões, torna-se mais propensa a sublinhar que a relação com o único Deus, Pai comum de todos os homens, não pode deixar de ajudar a sentir-se irmãos e viver como tal. Na revelação de Deus em Cristo, este princípio aparece expresso com uma radicalidade extrema: « Aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor » (1 Jo 4,8).
2. Simultaneamente, porém, não se pode dissimular que as luzes referidas estão ofuscadas por vastas e densas sombras. A humanidade começa este novo trecho da sua História com feridas ainda abertas, é vítima de conflitos ásperos e sangrentos em muitas regiões, sente o peso duma solidariedade mais difícil nas relações entre homens de diversas culturas e civilizações à medida que estas se cruzam e têm de conviver no mesmo território. Todos sabem como é difícil harmonizar as razões dos contendentes, quando os ânimos estão acesos e exasperados por causa de ódios antigos e de graves problemas que tardam a encontrar solução. Mas, não menos perigosa seria, para o futuro da paz, a incapacidade de enfrentar sabiamente os problemas postos pela nova configuração que a humanidade está a assumir, em muitos países, devido à aceleração dos processos migratórios e da convivência inédita que daí resulta entre pessoas de cultura e civilização diversa.
3. Por isso, pareceu-me urgente convidar os crentes em Cristo, juntamente com todos os homens de boa vontade, a reflectirem a propósito do diálogo entre as diferentes culturas e tradições dos povos, vendo nele o caminho que é necessário seguir para a edificação de um mundo reconciliado, capaz de olhar com serenidade o seu futuro. Trata-se dum tema decisivo pelas perspectivas que abre para a paz. Alegro-me pelo facto de a Organização das Nações Unidas ter sentido e afirmado a mesma urgência, ao declarar o ano 2001 como « Ano internacional do diálogo entre as civilizações ».
Longe de mim, naturalmente, pensar que seja possível, para um problema como este, dar soluções fáceis e já prontas. Quão laboriosa é a simples leitura duma situação que está em contínua mutação, esquivando-se a esquemas predefinidos! A isto vem juntar-se a dificuldade de conjugar princípios e valores, que, embora idealmente harmonizáveis, na realidade concreta apresentam elementos de tensão que não facilitam a síntese. E, ainda mais radicalmente, há o esforço próprio do compromisso ético que todo o ser humano tem de fazer para levar a melhor sobre o próprio egoísmo e os seus limites.
Mas é precisamente por isso que vejo a utilidade duma reflexão conjunta sobre esta problemática. Com esta finalidade, limito-me aqui a oferecer alguns princípios orientadores, fruto da escuta do que o Espírito de Deus diz às Igrejas (cf. Ap 2,7) e a toda a humanidade, nesta viragem decisiva da sua História.
O homem e as várias culturas
4. Ao contemplar todo o percurso da humanidade, fica-se impressionado com as manifestações complexas e diversificadas das culturas humanas. Cada uma delas diverge da outra pelo itinerário histórico específico que a singulariza e pelos consequentes traços característicos que a tornam única, original e orgânica na sua estrutura. A cultura é expressão qualificada do homem e da sua existência histórica, tanto a nível individual como colectivo. De facto, ele sente-se incessantemente impelido pela inteligência e pela vontade a « desenvolver os bens e valores da natureza », (1) organizando em sínteses culturais cada vez mais elevadas e sistemáticas os conhecimentos fundamentais relativos a todos os aspectos da vida, e de modo particular os que dizem respeito à sua convivência social e política, à segurança e ao desenvolvimento económico, à formação dos valores e significados existenciais, sobretudo de natureza religiosa, que permitem à sua vida individual e comunitária desenrolar-se segundo modalidades autenticamente humanas.(2)
5. As culturas caracterizam-se sempre por alguns elementos estáveis e duradouros e por outros dinâmicos e contingentes. Quando alguém analisa pela primeira vez uma cultura, saltam à vista principalmente os aspectos particulares que a diferenciam da cultura do observador, dotando-a de uma expressão típica para a qual concorrem elementos da mais diversa natureza. Na maior parte dos casos, as culturas desenvolvem-se num território concreto, onde se entrelaçam, de modo original e irrepetível, elementos geográficos, históricos e étnicos. Esta « tipicidade » de cada cultura reflecte-se de forma mais ou menos saliente nas pessoas que a possuem, num dinamismo incessante da influência daquela sobre os indivíduos humanos e do contributo que estes lhe dão segundo a própria capacidade e engenho. De qualquer modo, ser homem significa necessariamente existir numa determinada cultura. Cada pessoa está marcada pela cultura que respira através da família e dos grupos humanos de que faz parte, dos percursos educativos e das mais diversas influências ambientais, da própria relação fundamental que mantém com o território onde vive. Em tudo isto, não há qualquer determinismo, mas uma dialéctica constante entre a pressão dos condicionalismos e o dinamismo da liberdade.
Formação humana e identidade cultural
6. A recepção de uma cultura própria como elemento estruturante da personalidade, sobretudo na primeira fase do crescimento, é um dado da experiência universal, cuja importância nunca será demais assinalar. Sem tal enraizamento num humus concreto, a pessoa arriscar-se-ia a ficar sujeita, ainda em tenra idade, a um cúmulo excessivo de estímulos contraditórios, que dificultariam o seu crescimento sereno e equilibrado. Sobre a base desta relação fundamental com as próprias « origens » — a nível seguramente familiar, mas também territorial, social e cultural —, forma-se nas pessoas o sentido da « pátria », e a cultura tende a assumir, nuns lados mais noutros menos, uma configuração « nacional ». O próprio Filho de Deus, ao fazer-Se homem, adquiriu, com uma família humana, também uma « pátria »; ficou para sempre Jesus de Nazaré, o Nazareno (cf. Mc 10,47; Lc 18,37; Jo 1,45; 19,19). Trata-se dum processo natural resultante duma interacção de exigências sociológicas e psicológicas, com efeitos normalmente positivos e construtivos. Por isso, o amor da pátria é um valor a cultivar, mas sem estreiteza de espírito, amando ao mesmo tempo toda a família humana (3) e evitando as formas patológicas que têm lugar quando o sentido patriótico assume tons de auto-exaltação e de exclusão da diversidade, gerando formas nacionalistas, racistas e xenófobas.
7. Por isso, se é importante ter apreço pelos valores da própria cultura, é preciso também estar consciente de que toda a cultura, enquanto produto tipicamente humano e historicamente condicionado, supõe necessariamente limites. Um antídoto eficaz para que o sentido de pertença cultural não provoque isolamento é o conhecimento, sereno e livre de preconceitos negativos, das outras culturas. De facto, à luz duma análise atenta e rigorosa, as culturas apresentam muitas vezes, sob as suas variantes mais externas, elementos comuns significativos. Pode-se constatar isto mesmo na sucessão histórica de culturas e civilizações. Iluminada por Cristo, que revela o homem a si mesmo, (4) e confirmada pela experiência vivida ao longo de dois mil anos de História, a Igreja está convencida de que, « subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam » (5) Uma tal continuidade assenta nas características essenciais e universais do projecto de Deus sobre o homem.
Por isso, as diferenças culturais hão-de ser entendidas na perspectiva fundamental da unidade do género humano, dado histórico e ontológico primário à luz do qual é possível apreender o significado profundo das diversidades próprias. Na verdade, só a visão global dos elementos de unidade e das diferenças é que permite a compreensão e interpretação da verdade plena de cada cultura humana. (6)
Diversidade de culturas e mútuo respeito
8. Em tempos passados, as diferenças entre as culturas foram frequentemente fonte de incompreensões entre os povos e motivo de conflitos e guerras. E ainda hoje, infelizmente, é com crescente apreensão que assistimos, em várias partes do mundo, à polémica afirmação de algumas identidades culturais contra outras culturas. Este fenómeno, se exagerado, pode desembocar em tensões e conflitos desastrosos, e, no mínimo, torna penosa a condição de algumas minorias étnicas e culturais que têm de viver no meio de maiorias culturalmente diversas, propensas a atitudes e comportamentos hostis e racistas.
À vista de tal cenário, todo o homem de boa vontade não pode deixar de interrogar-se sobre as orientações éticas fundamentais que caracterizam a experiência cultural duma determinada comunidade. Efectivamente as culturas, à semelhança do homem que é o seu autor, estão permeadas pelo « mistério da iniquidade » que actua na História humana (cf. 2 Ts 2,7), precisando elas também de purificação e salvação. A autenticidade de cada cultura humana, o valor do ethos por ela transmitido, ou seja, a solidez da sua orientação moral, é possível de certo modo medi-los pela sua posição a favor do homem e da promoção da sua dignidade a todos os níveis e em qualquer contexto.
9. Se é motivo de grande preocupação a radicalização das identidades culturais que as torna impermeáveis a qualquer influxo exterior benéfico, não o é menos o risco da homologação servil das culturas, ou de alguns dos seus aspectos relevantes, a modelos culturais do mundo ocidental que, levantando ferros do ancoradouro cristão, foram inspirar-se numa concepção secularizada e praticamente ateia da vida e em formas de individualismo radical. Trata-se dum fenómeno de vastas proporções, apoiado por poderosas campanhas nos mass-media, nas quais se procura transmitir estilos de vida, projectos sociais e económicos, e, em última análise, uma visão global da realidade que corroem por dentro diversos sistemas culturais e civilizações nobilíssimas. Devido à sua elevada conotação científica e técnica, os modelos culturais do Ocidente apresentam-se atraentes e sedutores, mas revelam infelizmente, de forma cada vez mais clara, um progressivo empobrecimento humanista, espiritual e moral. A cultura que os gera caracteriza-se pela dramática pretensão de realizar o bem do homem pondo Deus, o sumo Bem, de lado. Mas, como adverte o Concílio Vaticano II, « sem o Criador, a criatura não subsiste ». (7) Uma cultura que recusa referir-se a Deus perde a própria alma e orientação tornando-se uma cultura de morte, como o testemunham os trágicos acontecimentos do século XX e os resultados niilistas hoje presentes em notáveis sectores do mundo ocidental.
O diálogo entre as culturas
10. De forma análoga ao modo como se realiza uma pessoa, ou seja, através do acolhimento magnânimo do outro e do dom generoso de si mesma, também as culturas, elaboradas pelos homens e ao seu serviço, hão-de ser modeladas segundo os dinamismos típicos do diálogo e da comunhão, assentes na unidade originária e fundamental da família humana, saída das mãos de Deus, que « fez, a partir de um só homem, todo o género humano » (Act 17,26).
À luz disto, o diálogo entre as culturas — tema desta Mensagem para o Dia Mundial da Paz — surge como uma exigência intrínseca à própria natureza do homem e da cultura. Enquanto expressões históricas diversas e geniais da unidade originária da família humana, as culturas encontram no diálogo a salvaguarda das suas peculiaridades e da sua mútua compreensão e comunhão. O conceito de comunhão, que, segundo a revelação cristã, tem a sua fonte e modelo sublime em Deus uno e trino (cf. Jo 17,11.21), não pode significar nunca redução à uniformidade ou então forçada homologação ou assimilação; mas é expressão da convergência duma multiforme variedade, tornando-se, por conseguinte, sinal de riqueza e promessa de crescimento.
O diálogo leva a reconhecer a riqueza da diversidade e predispõe os ânimos para a recíproca aceitação, em ordem a uma autêntica colaboração, de acordo com a primordial vocação à unidade de toda a família humana. Como tal, o diálogo é um instrumento sublime para realizar a civilização do amor e da paz, que o meu venerando predecessor Papa Paulo VI indicou como o ideal que deve inspirar a vida cultural, social, política e económica do nosso tempo. No início do terceiro milénio, é urgente propor novamente o caminho do diálogo a um mundo atribulado por demasiados conflitos e violências, por vezes desanimado e incapaz de perscrutar os horizontes da esperança e da paz.
Potencialidades e riscos da comunicação global
11. O diálogo entre as culturas é particularmente necessário hoje, quando se pensa no impacto das novas tecnologias da comunicação sobre a vida das pessoas e dos povos. Estamos na era da comunicação global, que está a plasmar a sociedade segundo modelos culturais novos, mais ou menos extrâneos aos do passado. Pelo menos em linha de princípio, pode-se afirmar que é praticamente acessível a toda a gente, em qualquer parte do mundo, uma informação rigorosa e actualizada.
Este livre fluxo de imagens e palavras à escala mundial está a transformar não só as relações entre os povos a nível político e económico, mas até a própria concepção do mundo. O fenómeno oferece numerosas potencialidades, outrora impensáveis, mas apresenta também alguns aspectos negativos e perigosos. O facto de o monopólio das « indústrias » culturais estar concentrado num número restrito de países, que distribuem os seus produtos por todos os cantos da terra a um público sempre mais vasto, pode constituir um poderoso factor de corrosão das especificidades culturais. É que tais produtos contêm e transmitem implicitamente sistemas de valor, podendo assim provocar, nos receptores, efeitos de expropriação e perda de identidade.
O desafio das migrações
12. O estilo e a cultura do diálogo são particularmente significativos para a complexa problemática das migrações, fenómeno social saliente no nosso tempo. A saída de grandes multidões duma região do planeta para outra, que muitas vezes constitui uma dramática odisseia humana para as pessoas nela envolvidas, tem como consequência a mistura de tradições e de usos diferentes, com notáveis repercussões nos países de origem e de destino. O acolhimento reservado aos migrantes pelos países que os recebem e a capacidade de eles se integrarem no novo ambiente humano servem também como parâmetro para avaliar a capacidade de diálogo entre as diferentes culturas.
Na realidade, sobre o tema da integração cultural, hoje muito debatido, não é fácil encontrar os sistemas e ordenamentos que garantam, de forma equilibrada e justa, os direitos e os deveres tanto de quem acolhe como daquele que é acolhido. Historicamente, os processos migratórios desenrolaram-se segundo formas muito diversas e com variado desfecho final. Muitas foram as civilizações que se desenvolveram e enriqueceram precisamente com os contributos trazidos pela imigração. Noutros casos, as diferenças culturais entre autóctones e imigrados não chegaram a integrar-se, mas demonstraram capacidade de conviver através duma praxe assente no mútuo respeito das pessoas e na aceitação e tolerância dos costumes diversos. Infelizmente, persistem ainda situações em que as dificuldades do relacionamento entre as culturas diversas nunca se resolveram, sendo as tensões que daí resultam motivo de conflitos periódicos.
13. Em matéria tão complexa, não existem fórmulas « mágicas »; no entanto, é forçoso individuar alguns princípios éticos fundamentais que sirvam de referência. Em primeiro lugar, há que recordar o princípio segundo o qual os imigrados hão-de ser sempre tratados com o respeito devido à dignidade de cada pessoa humana. A este princípio deve submeter-se o outro, que também é necessário, da consideração do bem comum, quando se trata de regular os fluxos imigratórios. Procurar-se-á então conjugar o acolhimento devido a todo o ser humano, sobretudo no caso de pobres, com a avaliação das condições indispensáveis para uma vida decorosa e pacífica tanto dos habitantes originários como dos adventícios. Quanto às exigências culturais que os imigrados apresentam, devem ser respeitadas e correspondidas na medida em que não estejam em antítese com os valores éticos universais, presentes na lei natural, nem com os direitos humanos fundamentais.
Respeito das culturas e « fisionomia cultural » do território
14. Mais difícil é determinar até onde chega o direito dos imigrados ao reconhecimento jurídico público das suas expressões culturais específicas que não sejam fáceis de harmonizar com os costumes da maioria dos cidadãos. A solução deste problema, no quadro duma substancial abertura, está ligada à avaliação concreta do bem comum num determinado momento histórico e numa concreta situação territorial e social. Isso depende muito da crescente abertura das mentes a uma cultura do acolhimento que, sem cair no indiferentismo dos valores, saiba conjugar as razões da identidade com as do diálogo.
Por outro lado, como há pouco salientei, não se pode subestimar a importância da cultura característica dum território para o crescimento equilibrado, principalmente na fase evolutiva mais delicada, daqueles que ali vivem desde o nascimento. Deste ponto de vista, pode considerar-se uma directriz razoável a de garantir a determinado território um certo « equilíbrio cultural », conexo com a cultura que prevalentemente o marcou; um equilíbrio que, com abertura às minorias e no respeito dos seus direitos fundamentais, consinta a permanência e desenvolvimento duma determinada « fisionomia cultural », ou seja, daquele património fundamental de língua, tradições e valores que estão geralmente ligados à experiência da nação e ao sentido da « pátria ».
15. É evidente, porém, que esta exigência de « equilíbrio », no que diz respeito à « fisionomia cultural » dum território, não pode ser satisfeita simplesmente com instrumentos legislativos, porque estes seriam ineficazes, se privados de fundamento no ethos da população, e além disso estariam naturalmente destinados a mudar quando uma cultura perdesse realmente a capacidade de animar um povo e um território, tornando-se apenas uma herança conservada em museus ou monumentos artísticos e literários.
Se verdadeiramente uma cultura é vital, não tem motivos para temer o seu desaparecimento; mas não há lei que possa mantê-la em vida, quando estiver morta nos espíritos. Do ponto de vista do diálogo entre as culturas, não se pode impedir a uma pessoa de propor a outrem os valores em que acredita, desde que o faça respeitando a liberdade e a consciência das pessoas. « A verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte ». (8)
A consciência dos valores comuns
16. O diálogo entre as culturas, instrumento privilegiado para construir a civilização do amor, assenta na consciência de que há valores comuns a todas as culturas, porque radicados na natureza da pessoa. É nesses valores que a humanidade exprime os seus traços mais autênticos e qualificantes. Deixando cair ressalvas ideológicas e egoísmos de grupo, é preciso cultivar nos espíritos a consciência destes valores, para alimentar aquele humus cultural de natureza universal que torna possível o fecundo desenrolar dum diálogo construtivo. Também as várias religiões podem e devem dar um contributo decisivo para o efeito. A experiência que me ficou de tantos encontros com Representantes doutras religiões — recordo de modo particular o encontro de Assis em 1986, e o da Praça de S. Pedro em 1999 — confirma a minha esperança de que, da recíproca abertura entre os seguidores das diversas religiões, podem derivar grandes benefícios para a causa da paz e do bem comum da humanidade.
O valor da solidariedade
17. À vista das desigualdades crescentes no mundo, o primeiro valor que necessita de uma maior consciencialização é certamente o da solidariedade. Toda a sociedade está assente sobre a base da interrelação originária das pessoas, construída em círculos cada vez mais amplos de relacionamento desde a família passando pelos demais grupos sociais intermédios até à sociedade civil no seu todo e à comunidade estatal. Por sua vez, os Estados não podem prescindir de estabelecerem mútuas relações: a situação actual de interdependência planetária ajuda a perceber melhor a comunhão de destino da família humana inteira, fomentando em todas as pessoas conscientes a estima pela virtude da solidariedade.
A tal respeito convém, todavia, assinalar que o incremento da interdependência levou a descobrir muitas disparidades, tais como o desequilíbrio entre países ricos e pobres, a fractura social dentro de cada país entre quem vive na opulência e quem vê lesada a sua dignidade porque lhe falta inclusive o necessário, a degradação ambiental e humana provocada e acelerada pelo uso irresponsável dos recursos naturais. Em alguns casos, tais diferenças e desequilíbrios sociais têm vindo a aumentar até deixar os países mais pobres completamente à deriva.
É por isso que, no coração duma autêntica cultura da solidariedade, tem-se de colocar a promoção da justiça. E não se trata apenas de dar o supérfluo a quem passa necessidade, mas de « ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades ».(9)
O valor da paz
18. A cultura da solidariedade está intimamente ligada ao valor da paz, objectivo primário de toda a sociedade, nomeadamente da comunidade nacional e internacional. No caminho para uma melhor compreensão entre os povos, são ainda numerosos os desafios que o mundo deve enfrentar e que colocam a todos opções improrrogáveis. O aumento preocupante dos arsenais de armas, enquanto tarda a consolidar-se o compromisso de não proliferação das armas nucleares, traz consigo o risco de alimentar e estender uma cultura da competição e conflito, que envolve não apenas os Estados mas também entidades não institucionais, como grupos paramilitares e organizações terroristas.
O mundo ainda se encontra a braços com as consequências de guerras passadas e presentes e com as tragédias provocadas pelo uso das minas anti-pessoa e pelo recurso a terríveis armas químicas e biológicas. E que dizer do risco permanente de conflitos entre nações, de guerras civis dentro de vários Estados e duma violência tão generalizada que as organizações internacionais e os governos nacionais se mostram quase impotentes para a debelar? Frente a tais ameaças, todos devem sentir o dever moral de tomar decisões concretas e oportunas, para promover a causa da paz e da compreensão entre os homens.
O valor da vida
19. Um diálogo autêntico entre as culturas não pode deixar de incentivar, para além do sentimento de respeito mútuo, uma viva sensibilidade pelo valor da vida. A vida humana não pode ser vista como um objecto de que se possa dispor arbitrariamente, mas como a realidade mais sagrada e inviolável que exista sobre a face da terra. Não pode haver paz, quando falta a salvaguarda deste bem fundamental. Não se pode invocar a paz e desprezar a vida. O nosso tempo conhece exemplos luminosos de generosidade e dedicação ao serviço da vida, mas também o triste cenário de centenas de milhões de homens expostos, por crueldade ou por indiferença, a um destino doloroso e brutal. Trata-se de uma trágica espiral de morte que compreende homicídios, suicídios, abortos, eutanásia, e ainda as práticas de mutilação, as torturas físicas e psicológicas, as formas de injusta coacção, a prisão arbitrária, o recurso desnecessário à pena de morte, as deportações, a escravatura, a prostituição, o comércio de mulheres e de crianças. A esta lista há que acrescentar as práticas irresponsáveis de engenharia genética, tais como a clonação e o uso de embriões humanos para a investigação, procurando justificá-las com um apelo ilegítimo à liberdade, ao avanço da cultura, ao fomento do progresso humano.
Quando os sujeitos mais frágeis e indefesos da sociedade sofrem tais atrocidades, a própria noção de família humana, assente nos valores da pessoa, da confiança e do respeito e auxílio recíprocos, acaba por ficar gravemente danificada. Uma civilização baseada sobre o amor e a paz deve opor-se a estas experimentações indignas do homem.
O valor da educação
20. Para edificar a civilização do amor, o diálogo entre as culturas deve procurar remover todo o egoísmo etnocêntrico para conjugar o cuidado pela liberdade própria com a compreensão dos outros e o respeito da diversidade. Para isso, é fundamental a responsabilidade da educação. Esta deve transmitir aos sujeitos a consciência das suas próprias raízes e proporcionar pontos de referência que lhes permitam definir a sua colocação pessoal no mundo. Ao mesmo tempo deve empenhar-se no ensino do respeito pelas outras culturas. É preciso estender o olhar para além da experiência individual imediata e aceitar as diferenças, descobrindo a riqueza da história dos outros e dos seus valores.
O conhecimento das outras culturas, feito com o devido sentido crítico e com sólidos pontos de referência ética, conduz a uma maior consciência dos valores e limites presentes na nossa própria cultura e, simultaneamente, mostra a existência duma herança comum a todo o género humano. Em virtude precisamente desta abertura de horizontes, a educação tem uma função particular na construção dum mundo mais solidário e pacífico. Ela pode contribuir para a consolidação daquele humanismo integral, aberto à dimensão ética e religiosa, que sabe atribuir a devida importância ao conhecimento e apreço das culturas e dos valores espirituais das diversas civilizações.
O perdão e a reconciliação
21. Durante o Grande Jubileu pelos dois mil anos do nascimento de Jesus, a Igreja viveu, com particular intensidade, o requisito exigente da reconciliação. Esta é um requisito significativo também no âmbito da complexa temática do diálogo entre as culturas. Com efeito, muitas vezes o diálogo torna-se difícil, porque sobre ele pesa a hipoteca de trágicos legados de guerras, conflitos, violências e ódios, que a memória continua a alimentar. O caminho a percorrer para superar as barreiras da incomunicabilidade é o do perdão e da reconciliação. Em nome de um realismo desencantado, muitos consideram esta estrada utópica e ingénua. Na perspectiva cristã, pelo contrário, é o único caminho para se alcançar a meta da paz.
O olhar dos crentes detém-se a contemplar o ícone do Crucificado. Pouco antes de morrer, Jesus exclama: « Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem » (Lc 23,34). O malfeitor crucificado à sua direita, ao ouvir estas derradeiras palavras do Redentor moribundo, abre-se à graça da conversão, acolhe o Evangelho do perdão e obtém a promessa da Bem-aventurança eterna. O exemplo de Cristo dá-nos a certeza de que se podem realmente abater os numerosos muros que bloqueiam a comunicação e o diálogo entre os homens. A visão do Crucificado infunde-nos a confiança de que o perdão e a reconciliação podem tornar-se prática normal da vida quotidiana e de toda a cultura, e consequentemente oportunidade concreta de construir a paz e o futuro da humanidade.
Recordando a significativa experiência jubilar da purificação da memória, desejo dirigir um apelo particular aos cristãos para que se tornem testemunhas e missionários de perdão e reconciliação, apressando, numa diligente invocação ao Deus da paz, a realização da profecia estupenda de Isaías, que pode ser alargada a todos os povos da terra: « Naquele dia, haverá um caminho do Egipto para a Assíria; os assírios entrarão no Egipto e os egípcios na Assíria. O Egipto e a Assíria renderão culto ao Senhor. Naquele dia, Israel unir-se-á como terceiro ao Egipto e à Assíria, como objecto de bênção no meio da terra. O Senhor dos exércitos abençoá-los-á nestes termos: "Bendito seja o meu povo, Egipto, a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança" » (Is 19,23-25).
Um apelo aos jovens
22. Desejo concluir esta Mensagem de paz com um apelo especial a vós, jovens do mundo inteiro, que sois o futuro da humanidade e as pedras vivas para construir a civilização do amor. Conservo no coração a lembrança dos encontros, densos de emoção e esperança, que tive convosco durante a recente Jornada Mundial da Juventude, em Roma. A vossa adesão era feliz, convicta e promissora. Na vossa energia e vitalidade e no vosso amor por Cristo, vislumbrei um futuro mais sereno e humano para o mundo.
Ao ver-vos ao meu redor, dentro de mim surgia um sentimento profundo de gratidão ao Senhor, que me dava a graça de contemplar, através do colorido mosaico das vossas línguas, culturas, costumes e mentalidades diversas, o milagre da universalidade da Igreja, do seu ser católica, da sua unidade. Vi, em vós, a admirável composição da diversidade na unidade da mesma fé, da mesma esperança, da mesma caridade, como expressão sumamente eloquente da realidade estupenda da Igreja, sinal e instrumento de Cristo para a salvação do mundo e a unidade do género humano. (10) O Evangelho chama-vos a reconstruir aquela unidade originária da família humana que tem a sua fonte em Deus Pai, Filho e Espírito Santo.
Queridos jovens de todas as línguas e culturas, espera-vos uma tarefa grandiosa e exaltante: ser homens e mulheres capazes de solidariedade, paz e amor à vida, no respeito por todos. Sede artífices duma nova humanidade, onde irmãos e irmãs, todos membros da mesma família, possam finalmente viver em paz!
Vaticano, 8 de Dezembro de 2000.
IOANNES PAULUS PP. II
Notas
1) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 53.
2) Cf. João Paulo II, Discurso às Nações Unidas, 15 de Outubro de 1995.
3) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 75.
4) Cf. ibid., 22.
5) Ibid., 10.
6) Cf. João Paulo II, Discurso à UNESCO, 2 de Junho de 1980, n. 6.
7) Const. past. Gaudium et spes, 36.
8) Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanæ, 1.
9) João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 58.
10) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1.
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