CARTA ENCÍCLICA
IMMORTALE DEI
DO SUMO PONTIFÍCIO
PAPA LEÃO XIII
A TODOS OS NOSSOS VENERÁVEIS
IRMÃOS, OS PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS
E BISPOS DO ORBE CATÓLICO,
EM GRAÇA E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CRISTÃ
DOS ESTADOS
Veneráveis Irmãos,
Saudação e Bênção Apostólica
1. A obra imortal do Deus de misericórdia, a Igreja, se bem que em si e por sua natureza tenha por fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a fonte de tantas e tais vantagens, que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo quando tivesse sido fundada sobretudo e diretamente em mira a assegurar a felicidade desta vida. Com efeito, onde quer que a Igreja tenha penetrado, imediatamente tem mudado a face das coisas e impregnado os costumes públicos não somente de virtudes até então desconhecidas, mas ainda de uma civilização toda nova. Todos os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura, pela equidade e pela glória dos empreendimentos.
2. E, todavia, acusação já bem antiga é que a Igreja, dizem, é contrária aos interesses da sociedade civil e incapaz de assegurar as condições de bem-estar e de glória que, com inteira razão e por uma aspiração natural, toda sociedade bem constituída reclama. Desde os primeiros dias da Igreja, como sabemos, os cristãos foram inquietados em conseqüência de injustos preconceitos dessa espécie, e expostos ao ódio e ao ressentimento, a pretexto de serem inimigos do Império. Naquela época, a opinião pública imputava de bom grado ao nome cristão os males que assaltavam a sociedade, ao passo que era Deus, o vingador dos crimes, quem infligia justas penas aos culpados. Essa odiosa calúnia indignou com toda razão o gênio de Santo Agostinho e lhe acusou o estilo. Foi principalmente no seu livro da “Cidade de Deus” que ele pôs em luz a virtude da sabedoria cristã em suas relações com a coisa pública, de tal sorte que ele parece haver menos advogado a causa dos cristãos de seu tempo do que alcançado um triunfo perpétuo sobre tão falsas acusações.
3. Todavia, o pendor funesto para essas queixas e para esses agravos não cessou, e muitos se comprouveram em buscar a regra da vida social fora das doutrinas da Igreja Católica. E, mesmo de então por diante, o “direito novo”, como lhe chamam, e que pretende ser o fruto de uma idade adulta e o produto de uma liberdade progressista, começa a prevalecer e a dominar por toda parte. Mas, a despeito de tantos ensaios, é fato que, para constituir e reger o Estado, nunca se achou sistema preferível àquele que é a florescência espontânea da doutrina evangélica.
Julgamos, pois, ser de suma importância e conforme ao Nosso múnus Apostólico confrontar as novas teorias sociais com a doutrina cristã. Destarte, temos a confiança de que a verdade dissipará, por um só brilho, toda causa de erro e de dúvida, de tal sorte que cada um facilmente poderá ver essas supremas regras de conduta que deve seguir e observar.
4. Não é muito difícil estabelecer que aspecto e que forma terá a sociedade se a filosofia cristã governa a coisa pública. O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus semelhantes, numa sociedade tanto doméstica quanto civil, única capaz de fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas, como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor.
5. Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. “Todo poder vem de Deus” (Rom 13,1).
6. Aliás, em si mesma a soberania não está ligada a nenhuma forma política; pode muito bem adaptar-se a esta ou àquela, contanto que seja de fato apta à utilidade e ao bem comum.
7. Mas, seja qual for a forma de governo, todos os chefes de Estado devem absolutamente ter o olhar fito em Deus, soberano Moderador do mundo, e, no cumprimento do seu mandato, a Ele tomar por modelo e regra. Com efeito, assim como na ordem das coisas visíveis Deus criou causas segundas, nas quais se refletem de algum modo a natureza e a ação divina, e que concorrem para conduzir ao fim para que tende este universo, assim também quis Ele que, na sociedade civil, houvesse uma autoridade cujos depositários fossem como que uma imagem do poder que Ele tem sobre o gênero humano, ao mesmo tempo que da sua Providência. Deve, pois, o mando ser justo; é menos o governo de um Senhor do que de um Pai, pois é justíssima a autoridade de Deus sobre os homens e se acha unida a uma bondade paternal. Deve ele, aliás, exercer-se para as vantagens dos cidadãos, pois os que tem autoridade sobre os outros são dela investidos exclusivamente para assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a autoridade civil servir à vantagem de um só ou de alguns, visto haver sido constituída para o bem comum.
8. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta, se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que eles exercerem e mais elevado o grau da dignidade de que estiverem investidos. “Os poderosos serão poderosamente punidos” (Sab 6, 7).
9. Desta maneira, a supremacia do mando arrastará a homenagem voluntária do respeito dos súditos. De feito, se estes estiverem uma vez bem convencidos de que a autoridade dos soberanos vem de Deus, sentir-se-ão obrigados em justiça a acolher docilmente as ordens dos príncipes e a lhes prestar obediência e fidelidade, por um sentimento semelhante à piedade que os filhos tem para com seus pais. “Seja toda alma sujeita aos poderes mais elevados” (Rom 13,1).
10. Porquanto não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais do que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si mesmos para sua perda. “Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação” (Rom 5, 2). Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina.
11. Sendo a sociedade política fundada sobre estes princípios, evidente é que ela deve, sem falhar, cumprir por um culto público os numerosos e importantes deveres que a unem a Deus. Se a natureza e a razão impõem a cada um a obrigação de honrar a Deus com um culto santo e sagrado, porque nós dependemos do poder dele e porque, saídos dele, a Ele devemos tornar, à mesma lei adstringem a sociedade civil. Realmente, unidos pelos laços de uma sociedade comum, os homens não dependem menos de Deus do que tomados isoladamente; tanto, pelo menos, quanto o indivíduo, deve a sociedade dar graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão incontável dos seus bens. É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito descurar seus deveres para com Deus, e que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas, assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a Divindade, devem elas seguir estritamente as regras e o modo segundo os quais o próprio Deus declarou querer ser honrado.
12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela. E isso devem-no eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto existimos, somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso referir tudo, colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é que depende a completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um alcançar esse fim. Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer respeitar a santa e inviolável observância da religião, cujos deveres unem o homem a Deus.
13. Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar disso com prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a verdade das profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé, mesmo entre os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes, provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio Jesus Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar.
14. Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a que chamamos a Igreja, e encarregou-a de continuar através de todas as idades a missão sublime e divina que Ele mesmo recebera de seu Pai. “Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio” (Jo 20, 21). “E eis que eu estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois, que Jesus Cristo veio à terra a fim de que os homens “tivessem a vida e a tivessem mais abundantemente” (Jo 10, 10), assim também a Igreja propõe-se como fim a salvação eterna das almas; e, nesse intuito, é tal a sua constituição que ela abrange na sua extensão a humanidade inteira e não é circunscrita por limite algum nem de temo, nem de lugar. “Pregai o Evangelho a toda criatura” (Mt 16, 15).
15. A essa imensa multidão de homens o próprio Deus deu chefes com o poder de governá-los. À testa deles propôs um só de quem quis fazer o maior e o maior seguro mestre da verdade, e a quem confiou as chaves do reino dos céus. “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus” (Mt 16, 19). “Apascenta meus cordeiros... apascenta minhas ovelhas” (Jo 21, 16-17). “Roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça” (Lc 22, 32).
16. Se bem que composta de homens como a sociedade civil, essa sociedade da Igreja, quer pelo fim que lhe foi designado, quer pelos meios que lhe servem para atingi-lo, é sobrenatural e espiritual. Distingue-se, pois, e difere da sociedade civil. Além disso, e isto é da maior importância, constitui ela uma sociedade juridicamente perfeita no seu gênero, porque, pela expressa vontade e pela graça do seu Fundador, possui em si e de per si todos os recursos necessários à sua existência e ação. Como o fim a que a Igreja tende é de muito o mais nobre de todos, assim também o seu poder prevalece sobre todos os outros poderes, e de modo algum pode ser inferior ou sujeita ao poder civil. Efetivamente, Jesus Cristo deu plenos poderes aos seus apóstolos na esfera das coisas sagradas, juntando-lhes tanto a faculdade de fazer verdadeiras leis como o duplo poder que dela decorre, de julgar e de punir. “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide pois, ensinai todas as nações...ensinando-as a observar tudo o que eu vos prescrevi” (Mt 28, 18-20). E ainda: “Tende cuidado de punir toda desobediência” (2 Cor 10, 6). Demais: “Serei mais severo em virtude do poder que o Senhor me deu para a edificação e não para a ruína” (2 Cor 13, 10). À Igreja, pois, e não ao Estado, é que pertence guiar os homens para as coisas celestes, e a ela é que Deus deu o mandato de conhecer e de decidir de tudo o que concerne à religião; de ensinar todas as nações, de estender a tão longe quanto possível as fronteiras do nome cristão; em suma, de administrar livremente e a seu inteiro talante os interesses cristãos.
17. Essa autoridade perfeita em si e só de si mesma dependente, de há muito tempo atacada por uma filosofia aduladora dos príncipes, a Igreja nunca cessou de reivindicá-la, nem de exercê-la publicamente. Os primeiros de todos os seus paladinos foram os Apóstolos, que, impedidos pelos príncipes da Sinagoga de difundirem o Evangelho, respondiam com firmeza: “Devemos obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5, 29). Foi ela que os Padres da Igreja se aplicaram a defender por sólidas razões quando tiveram ensejo, e que os Pontífices romanos nunca deixaram de reivindicar com uma constância invencível contra os seus agressores.
18. Bem mais, tem ela tido por si, em princípio e de fato, o assentimento dos príncipes e dos chefes de Estados, que, nas suas negociações e transações, enviando e recebendo embaixadas e permutando outros bons ofícios, têm constantemente agido com a Igreja como com uma potência soberana e legítima. Por isto, não é sem uma disposição particular da Providência de Deus que essa autoridade foi munida de um principado civil, como da melhor salvaguarda da sua independência.
19. Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure próprio”. Todavia, exercendo-se a autoridade delas sobre os mesmos súditos, pode suceder que uma só e mesma coisa, posto que a título diferente, mas no entanto uma só e mesma coisa, incida na jurisdição e no juízo de um e de outro poder. Era, pois, digno da Sábia Providência de Deus, que as estabeleceu ambas, traçar-lhes a sua trilha e a sua relação entre si. “OS poderes que existem foram dispostos por Deus” (Rom 13, 1). Se assim não fora, muitas vezes nasceriam causas de funestas contenções e conflitos e muitas vezes o homem deveria hesitar, perplexo, como em face de um duplo caminho, sem saber o que fazer, em conseqüência das ordens contrárias de dois poderes cujo jugo em consciência ele não pode sacudir. Sumamente repugnaria responsabilizar por essa desordem a sabedoria e a bondade de Deus, que, no governo do mundo físico, todavia de ordem bem inferior, temperou tão bem umas pelas outras as forças e as causas naturais, e as fez harmonizar-se de maneira tão admirável, que nenhuma delas molesta as outras, e todas, num conjunto perfeito, conspiram para a finalidade a que tende o universo. Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenado, não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a união da alma com o corpo. Não se pode fazer uma justa idéia da natureza e da força dessas relações senão considerando, como dissemos, a natureza de cada um dos dois poderes, e levando em conta a excelência e a nobreza dos seus fins, visto que um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos, e o outro proporcionar os bens celestes e eternos.
20. Assim, tudo o que, nas coisas humanas, é sagrado por uma razão qualquer, tudo o que é pertinente à salvação das alas e ao culto de Deus, seja por sua natureza, seja em relação ao seu fim, tudo isso é da alçada da autoridade da Igreja. Quanto às outras coisas que a ordem civil e política abrange, é justo que sejam submetidas à autoridade civil, já que Jesus Cristo mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Tempos ocorrem às vezes, em que prevalece outros modo de assegurar a concórdia e de garantir a paz e a liberdade; é quando os chefes de Estado e os Sumos Pontífices se põem de acordo por um tratado sobre algum ponto particular. Em tais circunstâncias, dá a Igreja provas evidentes da sua caridade materna, levando tão longe quanto possível a indulgência e a condescendência.
21. Tal é, consoante o esboço sumário que havemos traçado, a organização cristã da sociedade civil, e essa teoria não é nem temerária nem arbitrária, mas se deduz dos princípios mais elevados e mais certos, confirmados pela própria razão natural. Essa constituição da sociedade política não tem nada que possa parecer pouco digno ou inconveniente para a dignidade dos príncipes. Longe de tirar o que quer que seja aos direitos da majestade, pelo contrário, torna-os mais estáveis e mais augustos. Muito mais: se olharmos isso mais de perto, reconheceremos nessa constituição uma grande perfeição que falta nos outros sistemas políticos; e ela produziria certamente frutos excelentes e variados se ao menos cada poder ficasse nas suas atribuições e pusesse todos os seus desvelos em cumprir o ofício e a tarefa que lhes foram determinados.
22. Com efeito, na constituição do Estado, tal como a acabamos de expor, o divino e o humano são delimitados numa ordem conveniente; os direitos dos cidadãos são assegurados e colocados sob a proteção das mesmas leis divinas, naturais e humanas; os deveres de cada um são tão sabiamente traçados quão prudentemente salvaguardada lhes é a observância. Todos os homens, nesse encaminhamento incerto e penoso para a cidade eterna, sabem que tem a seu serviço guias seguros para conduzi-los à meta, e auxiliares para atingi-la. Sabem, do mesmo modo, que outros chefes lhes foram dados para obter e conservar a segurança, os bens e as outras vantagens dessa vida.
23. A sociedade doméstica acha a sua solidez necessária na santidade do vínculo conjugal, uno e indissolúvel; os direitos e os deveres dos esposos são regulados com toda a justiça e equidade; a honra devida à mulher é salvaguardada; a autoridade do marido modela-se pela autoridade de Deus, o pátrio poder é temperado pelas atenções devidas à esposa e aos filhos; enfim, está perfeitamente provido para a proteção, para o bem estar e para a educação desses últimos.
24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns, ditadas não pela vontade e pelo juízo enganador da multidão, mas pela verdade e pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste uma espécie de caráter mais sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da justiça, nem exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.
25. Semelhantemente, nessa espécie dos deveres se colocam a caridade mútua, a bondade, a liberalidade. O homem, que é ao mesmo tempo cidadão e cristão, não mais rasgado em dois por obrigações contraditórias. Enfim, os bens consideráveis com que a religião cristã enriquece espontaneamente a própria vida terrena dos indivíduos são adquiridos para a comunidade e para a sociedade civil: donde ressalta a evidência destas palavras: “A sorte do Estado depende do culto que se tributa a Deus: e há entre ambos numerosos laços de parentesco e de estrita amizade” (Sacr. Imp. Ad Cyllirium Alexandr. Et Episcopos metrop. Cfr. Labbeum, Collect. Conc. T. III).
26. Em várias passagens Santo Agostinho, segundo o seu costume, salientou o valor desses bens, mormente quando interpela a Igreja Católica nestes termos: “Tu conduzes e instruis as crianças com ternura, os jovens com força, os velhos com calma, como o comporta a idade não somente do corpo, mas ainda da alma. Sujeitas as mulheres aos maridos por uma casta e fiel obediência, não para cevar a paixão, mas para propagar a espécie e constituir a sociedade da família. Dás autoridade aos maridos sobre as mulheres, não para zombarem do sexo, mas para seguirem as leis de um sincero amor. Subordinas os filhos aos pais por uma espécie de servidão livre e prepões os pais aos filhos por uma espécie de terna autoridade. Unes não só em sociedade, mas numa espécie de fraternidade, os cidadãos aos cidadãos, as nações às nações e os homens entre si pela lembrança dos primeiros pais. Ensinas os reis a velarem sobre os povos, e prescreves aos povos submeter-se aos reis. Ensinas com cuidado a quem é que é devida a honra, a quem a afeição, a quem o respeito, a quem o temor, a quem a consolação, a quem a advertência, a quem o incentivo, a quem a correção, a quem a reprimenda, a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são devidas a todos, a todos é devida a caridade, e a ninguém a injustiça” (De moribus Eccl., cap. XXX, n. 63).
27. Noutro lugar, o mesmo Doutor repreende nestes termos a falsa sabedoria dos políticos filósofos: “Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).
28. Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.
29. Se a Europa cristã domou as nações bárbaras e as fez passar da ferocidade para a mansidão, da superstição para a verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas, se guardou a supremacia da civilização, e se, em tudo que faz honra à humanidade, constantemente e em toda parte se mostrou guia e mestra; se brindou os povos com a verdadeira liberdade sob essas diversas formas, se sapientissimamente fundou uma multidão de obras para o alívio das misérias; é fora de toda dúvida que, assim, ela é grandemente devedora à religião, sob cuja inspiração e com cujo auxílio empreendeu e realizou tão grandes coisas.
30. Todos esses bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes houvesse perseverado, e havia razão para esperar outros ainda maiores, se a autoridade, se o ensino, se os conselhos da Igreja tivesses encontrado uma docilidade mais fiel e mais constante. Por quanto dever-se-ia ter como lei imprescritível aquilo que Yves de Chartres escreveu ao Papa Pascoal II: “Quando o mundo é bem governado, a Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a discórdia se interpõe entre eles, não somente as pequenas coisas não crescem, mas as próprias grandes deperecem miseravelmente” (Epist. 238).
31. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da sociedade civil. É a essa fonte que cumpre fazer remontar esses princípios modernos de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes perturbações do século último, como os princípios e fundamentos de um “direito novo”, até então desconhecidos e sobre mais de um ponto em desacordo não somente com o direito cristão, mas com o direito natural. Eis aqui o primeiro de todos esses princípios: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, “ipso facto”, iguais entre si na prática da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A soberania de Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não residisse inteira no próprio Deus.
32. Destarte, como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se governa por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos.
33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja.
34. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos; decretam leis sobre o vínculo conjugal, sua unidade, sua estabilidade; deitam mão aos bens dos clérigos e negam à Igreja o direito de possuir. Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita, e fosse uma mera associação semelhante às outras que existem no Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de poder legítimo de ação, fazem-no eles depender da concessão e do favor dos governantes.
35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos. Mas, como a Igreja não pode sofrê-lo pacientemente, pois seria para ela desertar os maiores e os mais sagrados dos deveres, e como reclama absolutamente o cumprimento religioso da fé que lhe foi jurada, muitas vezes nascem entre o poder espiritual e o poder civil conflitos, cujo desfecho quase inevitável é sujeitar aquele que é menos provido de meios humanos ao que é mais provido. Assim, nessa situação política que muitos favorecem hoje em dia, há uma tendência das idéias e das vontades para expulsar inteiramente a Igreja da sociedade, ou para mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas tomadas pelos governos inspiram-se nesse desígnio. As leis, a administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãos, reduzir a nada a liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.
36. A simples razão natural demonstra o quanto se afasta da verdade esta maneira de entender o governo civil. O testemunho dela, com efeito, basta para estabelecer que tudo o que há de autoridade entre os homens procede de Deus, como de uma fonte augusta e suprema. Quanto à soberania do povo, que, sem levar em nenhuma conta a Deus, se diz residir por direito natural no povo, se ela é eminentemente própria para lisonjear e inflamar uma multidão de paixões, não assenta em nenhum fundamento sólido e não pode ter força bastante para garantir a segurança pública e a manutenção tranqüila da ordem. De feito, sob o império dessas doutrinas, os princípios cederam a ponto de, para muitos, ser uma lei imprescritível em direito político poder legitimamente levantar sedições. Porquanto prevalece a opinião de que os chefes do governo são meros delegados encarregados de executar a vontade do povo: donde esta conseqüência necessária: que tudo pode igualmente mudar ao sabor do povo, e que sempre há a temer distúrbios.
37. Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome. Efetivamente, quem quer que creia em Deus, se for conseqüentemente e não quer cair no absurdo, deve necessariamente admitir diferença, disparidade e oposição, mesmo sobre os pontos mais importantes, não podem ser todos igualmente bons, igualmente agradáveis a Deus.
38. Assim, também, a liberdade de pensar e publicar os próprios pensamentos, subtraída a toda regra, não é por si um bem de que a sociedade tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem de muitos males. A liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é verdadeiro e ao que é bom. Ora, a essência do bem e da verdade não pode mudar ao sabor do homem, mas persiste sempre a mesma, e, não menos do que a natureza das coisas, é imutável. Se a inteligência adere as opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois, permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis. Não há senão um caminho para chegar ao céu, para o qual todos nós tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras e prescrições da natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.
39. Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é m grande e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas conseqüências essa pretensa moral civil.
40. A verdadeira mestra da juventude e a guardiã dos costumes é a Igreja de Cristo. É ela quem conserva na sua integridade os princípios de onde emanam os deveres, e quem sugerindo os mais nobres motivos de vem viver, ordena não somente fugir às más ações, mas domar os movimentos da alma contrários à razão, ainda quando não se traduzem em ato.
41. Pretender sujeitar a Igreja ao poder civil no exercício do seu ministério é a um tempo uma grande injustiça e uma grande temeridade. Por essa mesma razão, perturba-se a ordem, pois se dá o passo às coisas naturais sobre as coisas sobrenaturais; estanca-se, ou, certamente, se diminui muito o afluxo dos bens com que, se estivesse sem peias, a Igreja cumularia a sociedade; e, demais, abre-se a voz a ódios e a lutas cuja grande e funesta influência sobre ambas as sociedades tem sido demonstrado por experiências mais do que freqüentes.
42. Essas doutrinas, que a razão humana reprova e têm uma influência tão considerável sobre a marcha das coisas públicas, os Pontífices romanos, Nossos predecessores, na plena consciência daquilo que deles reclamava o múnus apostólico, jamais sofreram fossem impunemente emitidas. Assim foi que, na sua Carta Encíclica “Mirari vos”, de 15 de agosto de 1832, Gregório XVI, com grande autoridade doutrinal, repeliu o que se avançava desde então, insto é, que em matéria de religião não há escolha a fazer: que cada um depende apenas da própria consciência e pode, além disso, publicar o que pensa e tramar revoluções no Estado. A respeito da separação da Igreja do Estado, exprime-se nestes termos esse Pontífice: “Não podemos esperar para a Igreja e para o Estado resultados melhores das tendências dos que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a concórdia mútua entre o sacerdócio e o império. É que, com efeito, os fautores de uma liberdade desenfreada temem essa concórdia, que sempre foi tão propícia e salutar aos interesses religiosos e civis”. Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se apresentou ensejo, condenou as falsas opiniões mais em voga, e que, em tal dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.
43. Dessas decisões dos Sumos Pontífices, cumpre absolutamente admitir que a origem do poder público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o direito à rebelião repugna a razão; que não fazer nenhum caso dos deveres da religião, ou tratar da mesma maneira as diferentes religiões, não é permitido nem aos indivíduos nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e d emitir em público os próprios pensamentos de modo algum deve ser colocada entre os direitos dos cidadãos, nem entre as coisas dignas de favor e de proteção.
44. Do mesmo modo, cumpre admitir que, não menos que o Estado, a Igreja, por sua natureza e de pleno direito, é uma sociedade perfeita; que os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar seja qual for dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo. Nas questões do direito misto, é plenamente conforme à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não separar um poder do outros, e ainda menos pô-los em luta, mas sim estabelecer entre eles essa concórdia que está em harmonia com os atributos especiais por cada sociedade recebidos da sua natureza.
45. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à constituição e ao governo dos Estados. Esses princípios e esses decretos, se se quiser julgar somente deles, não reprovam em si nenhuma das diferentes formas de governo, visto que estas nada têm que repugne à doutrina católica, e, se forem aplicadas com sabedoria e justiça, todos podem garantir a prosperidade pública. Bem mais, não se reprova em si que o povo tenha sua parte maior ou menor no governo; isto até, em certos tempos e sob certas leis, pode tornar-se não somente uma vantagem, mas um dever para os cidadãos. Demais, não há para ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga quer de uma justa tolerância, quer de uma são e legítima liberdade.
46. Efetivamente, se a Igreja julga não ser lícito por os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira religião, nem por isso condena os chefes de Estado que, em vista de um bem a alcançar ou de um mal a impedir, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no Estado.
47. É, aliás, costume da Igreja velar com o maior cuidado por que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente Santo Agostinho, “o homem não pode crer senão querendo” (tract. XXVI in Ioan., n. 2).
48. Pela mesma razão, não pode a Igreja aprovar uma liberdade que gera o desgosto das mais santas leis de Deus e sacode a obediência devida à autoridade legítima. Isso é mais uma licença do que uma liberdade, e Santo Agostinho lhe chama mui justamente “uma liberdade de perdição” (Epist. CV, ad Donatistas, cap. II, n. 9) e o Apóstolo S. Pedro “um véu de maldade” (1 Ped 2, 16). Muito mais: sendo oposta à razão, essa pretensa liberdade é uma verdadeira escravidão. “Aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).
49. Pelo contrário, liberdade verdadeira e desejável é a que, na ordem individual, não deixa o homem escravo nem dos erros, nem das paixões, que são os seus piores tiranos; e na ordem pública traça regras sábias aos cidadãos, facilita largamente o incremento do bem-estar e preserva do arbítrio de outrem a coisa pública. Essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova ao mais alto ponto, e, para garantir aos povos o firme e integral gozo dela, nunca cessou de lutar e de combater.
50. Sim, na verdade, tudo o que pode haver de salutar para o bem geral no Estado; tudo o que é útil para proteger o povo contra a licença dos príncipes que lhe não provêem ao bem; tudo o que impede as usurpações injustas do Estado sobre a comuna ou sobre a família; tudo o que interessa à honra, à personalidade humana e à salvaguarda dos direitos iguais de cada um; de tudo isso a Igreja Católica sempre tomou quer a iniciativa, quer o patrocínio, quer a proteção, como atestam os monumentos das idades precedentes. Sempre coerente consigo mesma, se, de uma parte, dela repele uma liberdade imoderada que, para os indivíduos e para os povos, degenera em licença ou em escravidão, de outra parte abraça com todo o gosto os progressos que todo dia nascem, se verdadeiramente contribuem para a prosperidade desta vida, que é como um encaminhamento para a vida futura e para sempre duradoura. Assim, pois, dizer que a Igreja vê com maus olhos as formas mais modernas dos sistemas políticos e repele em bloco todas as descobertas do gênio contemporâneo, é uma calúnia vã e sem fundamento. Sem dúvida, ela repudia as opiniões malsãs, reprova a inclinação perniciosa para a revolta, e mui particularmente essas predisposições dos espíritos em que já reponta a vontade de se afastar de Deus; mas, como tudo o que é verdadeiro não pode proceder senão de Deus, em tudo o que as investigações do espírito humano descobrem de verdade, a Igreja reconhece como que um vestígio da inteligência divina; e como não há nenhuma verdade natural que infirme a fé nas verdades divinamente reveladas, como há muitas que a confirmam, e como todo descobrimento da verdade pode levar a conhecer e a louvar ao próprio Deus, a Igreja acolherá sempre de bom grado e com alegria tudo o que contribuir para alargar a esfera das ciências; e, assim como sempre o fez para com as outras ciências, favorecerá e incentivará aquelas que tem por objeto o estudo da natureza. Nesse gênero de estudos, a Igreja não se opõe a nenhuma descoberta do espírito; vê sem desprezar tantas investigações que tem por fim o prazer e o bem-estar; e, mesmo, inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes. Ela tem incentivos para toda espécie de artes e indústrias, e, dirigindo por sua virtude todas essas investigações para um fim honesto e salutar, aplica-se a impedir que a inteligência e a indústria do homem não o desviem de Deus e dos bens celestes.
51. Esta maneira de agir, todavia tão racional e tão sábia, é que é desacreditada nestes tempos em que os Estados não somente recusam conformar-se aos princípios da filosofia cristã, mas parecem querer afastar-se dela cada dia mais. Não obstante, sendo próprio da luz irradiar por si mesma ao longe e penetrar aos poucos os espíritos dos homens, movidos como somos pela consciência das altíssimas e santíssimas obrigações da missão apostólica de que estamos investidos para com todos os povos, livremente proclamamos, consoante o Nosso dever, a verdade, não porque não levemos em nenhuma conta os tempos, ou julgamos dever proscrever os honestos e úteis progressos da Nossa idade; mas porque quereríamos ver os negócios públicos seguirem caminhos menos perigosos e repousarem em fundamentos mais sólidos, e isso deixando intacta a liberdade legítima dos povos; essa liberdade de que a verdade é entre os homens a fonte e a melhor salvaguarda: “A verdade vos libertará” (Jo 7, 32).
52. Se, pois, nessas conjunturas difíceis os católicos Nos escutarem, como é seu dever, saberão exatamente quais são os deveres de cada um na “teoria” como na “prática”. Na teoria, primeiro, é necessário ater-se com decisão inabalável a tudo o que os Pontífices romanos têm ensinado ou ensinarem, e, todas as vezes que as circunstâncias o exigirem, fazer disso profissão pública. Particularmente no que diz respeito às “liberdades modernas”, como lhes chamam, deve cada um ater-se ao julgamento da Sé Apostólica e conformar-se com suas decisões. Cumpre resguardar-se de se deixar enganar pela honestidade especiosa dessas liberdades, e lembrar-se de que fontes elas emanam e por que espírito se propagam e se sustentam. A experiência já tem feito suficientemente conhecer os resultados que elas têm tido para a sociedade, e o quanto os frutos que elas têm dado inspiram com toda razão pesares aos homens funestos e prudentes. Se existe algures, ou pelo pensamento se imaginar um Estado que persiga disfarçada e tiranicamente o nome cristão, e se o confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último poderá parecer mais tolerável. Certamente, os princípios em que este último se baseia são de tal natureza, como dissemos, que em si mesmo por ninguém devem ser aprovados.
53. Na prática, a ação pode exercer-se já nos negócios privados e domésticos, já nos negócios públicos. Na ordem privada, o primeiro dever de cada um é de conformar exatamente a própria vida e os próprios costumes aos preceitos do Evangelho, e de não recuar ante o que a virtude cristã impõe de um pouco difícil de sofrer e aturar. Todos devem, além disso, amar a Igreja como sua Mãe comum, obedecer às suas leis, prover à sua honra, salvaguardar-lhe os direitos, e tomar cuidado de que aqueles sobre os quais exercem alguma autoridade a respeitem e a amem com a mesma piedade filial.
54. À salvação pública importa ainda que os católicos emprestem sensatamente o seu concurso à administração dos negócios municipais e se apliquem sobretudo a fazer com que a autoridade pública atenda à educação religiosa e moral da juventude, como convém a cristãos: daí depende sobretudo a salvação da sociedade. Será geralmente útil e louvável que os católicos estendam a sua ação além dos limites desse campo demasiado restrito, e se cheguem aos grandes cargos do Estado. “Geralmente”, dizemos, porque aqui os Nossos conselhos se dirigem a todas as nações. Aliás, pode suceder algures que, por motivos os mais graves e os mais justos, absolutamente não seja conveniente participar dos negócios públicos seria tão repreensível como não trazer à utilidade comum nem desvelo nem concurso: tanto mais quanto, em virtude mesmo da doutrina que professam, os católicos são obrigados a cumprir esse dever com toda integridade e consciência. Aliás. Abstendo-se eles, as rédeas do governo passarão sem contestação às mãos daqueles cujas opiniões certamente não oferecem grande esperança de salvação para o Estado.
55. Seria isso, ademais, pernicioso aos interesses cristãos, porque os inimigos da Igreja teriam todo o poder e os defensores dela, nenhum. Evidentemente é, pois, que os católicos têm justos motivos para participar da vida política; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas, mas para tirar dessas próprias instituições, tanto quanto possível, o bem público sincero e verdadeiro, propondo-se infundir em todas as veias do Estado, como uma seiva e um sangue reparador, a virtude e a influência da religião católica.
56. Assim foi nas primeiras idades da Igreja. Nada estava mais distanciado das máximas e costumes do Evangelho do que as máximas e costumes dos pagãos; viam-se, todavia, os cristãos, incorruptíveis em plena superstição e sempre semelhantes a si mesmos, entrarem corajosamente em toda parte onde se abria um acesso. De uma fidelidade exemplar para com os príncipes e de uma obediência às leis do Estado tão perfeita como lhes era lícito, eles lançavam de toda parte um maravilhoso brilho de santidade, esforçavam-se por ser úteis a seus irmãos e por atrair os outros a seguirem Nosso Senhor, dispostos entretanto a ceder o lugar e a morrer corajosamente se não pudessem, sem vulnerar a sua consciência, conservar as honras as magistraturas e os cargos militares. Desse modo, introduziram eles rapidamente as instituições cristãs não somente nos lares domésticos, mas nos acampamentos, na cúria, e até no palácio imperial. “Somos apenas de ontem, e já enchemos tudo o que é vosso, vossas cidades, vossas ilhas, vossas fortalezas, vossos municípios, vossos conciliábulos, vossos próprios acampamentos, as tribos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum” (Tertull., Apol., n. 37). Por isso, quando foi permitido professar publicamente o Evangelho, a fé cristã apareceu em grande número de cidades não em vagidos ainda, porém forte e já cheia de vigor.
57. Nos tempos em que estamos, há toda razão para renovar esses exemplos de nossos pais. Antes de tudo, é necessário que todos os católicos dignos deste nome se determinem a ser e mostrar-se filhos dedicados da Igreja; que repilam sem hesitar tudo o que seja incompatível com essa profissão; que se sirvam das instituições públicas, tanto quanto o puderem fazer em consciência, em proveito da verdade e da justiça; que trabalhem para que a liberdade não exceda o limite traçado pela lei natural e divina; que tomem a peito reconduzir toda constituição pública a essa forma cristã que havemos proposto para modelo.
58. Não é coisa fácil determinar um modo único e certo para realizar esses dados, visto dever ele convir a lugares e a tempos mui dispares entre si. Não obstante, cumpre antes de tudo conservar a concórdia das vontades e tender à uniformidade da ação. Obter-se-á seguramente esse duplo resultado se cada um tomar como regra de conduta as prescrições da Sé Apostólica e a obediência aos bispos, que “o Espírito Santo estabeleceu para reger a Igreja de Deus” (At 20, 28). A defesa do nome cristão reclama imperiosamente que o assentimento às doutrinas ensinadas pela Igreja seja da parte de todos unânime e constante, e, por este lado, cumpre resguardar-se ou de estar, no que quer que seja, de conivência com as falsas opiniões, ou de combatê-las mais molemente do que comporta a verdade. Quanto às coisas sobre que se pode discutir livremente, será lícito discutir com moderação e no intuito de procurar a verdade, mas pondo de lado as suspeitas injustas e as acusações recíprocas.
59. Para este fim, no medo de que a união dos espíritos seja destruída por acusações temerárias, eis aqui o que todos devem admitir: a profissão íntegra da fé católica absolutamente incompatível com as opiniões que se aproximam do “racionalismo” e do “naturalismo”, e cujo capital é destruir completamente as instituições cristãs e estabelecer na sociedade a autoridade do homem em lugar da de Deus. Não é, tão pouco, permitido ter duas maneira de proceder: uma em particular e outra em público, de modo a respeitar a autoridade da Igreja ma vida privada e a rejeitá-la na vida pública; isso seria aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo, quando, ao contrário, deve ele sempre ser coerente, e em nenhum gênero de vida ou de negócios afastar-se da virtude cristã. Mas se se tratar de questões puramente políticas, do melhor gênero de governo, de tal ou tal sistema de administração civil, divergências honestas são lícitas. A justiça não sobre, pois, que se criminem homens cuja piedade é aliás conhecida, e cuja mente é inteiramente disposta a aceitar docilmente as decisões da Santa Sé, por serem de opinião diferente sobre os pontos em questão. Injustiça muito maior ainda seria suspeitar-lhes a fé ou acusá-los de traí-la, como mais de uma vez o havemos lamentado. Seja esta lei uma imprescritível para os escritores e sobretudo para os jornalistas.
60. Numa luta em que os maiores interesses estão em jogo, não se deve deixar lugar algum às dissensões intestinas ou ao espírito de partido; mas, num acordo unânime dos espíritos e dos corações, todos devem perseguir o escopo comum, que é salvar os grandes interesses da religião e da sociedade. Se, pois, no passado, tiveram lugar alguns dissentimentos, cumpre sepultá-los num sincero esquecimento; se alguma temeridade, se alguma injustiça foi cometida, seja qual for o culpado, cumpre tudo reparar por uma caridade recíproca tudo redimir por um comum assalto de deferências para com a Santa Sé. Deste modo, obterão os católicos duas vantagens importantíssimas: a de ajudarem a Igreja a conservar e a propagar a doutrina cristã, e a de prestarem o serviço mais assinalado à sociedade, cuja salvação está fortemente comprometida pelas más doutrinas e pelas más paixões.
61. É isso, Veneráveis Irmãos, o que julgamos dever ensinar a todas as nações do orbe católico sobre a constituição cristã dos Estados e os deveres privados dos súditos. Resta-Nos implorar por ardentes preces o socorro celeste, e suplicar a Deus fazer Ele próprio atingirem o termo desejado todos os Nossos desejos e todos os Nossos esforços para a sua glória e para a salvação do gênero humano, Ele que é só quem pode iluminar os espíritos e tocar os corações dos homens. Como penhor das bênçãos divinas e em testemunho da Nossa paternal benevolência, damo-Vos na caridade do Senhor, Veneráveis Irmãos, a Vós bem como ao clero e ao povo inteiro confiado à Vossa guarda e à Vossa vigilância, a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, em S. Pedro, a 1° de novembro de 1885, oitavo ano do Nosso Pontificado.
LEÃO XIII, PAPA.
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