PAPA PAULO VI
AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira,15 de Setembro de 1971
A mensagem da Cruz segundo os ensinamentos do Concílio
Ontem, 14 de Setembro, a Igreja celebrou uma festa de origem antiquíssima, a festa da exaltação da Santa Cruz. Os historiadores dizem que teve início em Jerusalém, onde existiam duas basílicas, mandadas construir pelo Imperador Constantino: a anástasis e o martyrion. O aniversário da dedicação das duas basílicas era celebrado, todos os anos, com grande solenidade. Acorriam, de diversas partes, bispos, eclesiásticos, monges e fiéis, muitos dos quais como peregrinos. Nessa ocasião, apresentavam-se à veneração pública as relíquias da Cruz do Senhor. Esta cerimónia prevaleceu sobre a cerimónia comemorativa da dedicação das duas basílicas e deu nome á festa que, ainda hoje, é celebrada.
Da Palestina, a festa da Exaltação da Santa Cruz também passou ao Ocidente, onde se difundiu. Em Roma, era celebrada na basílica do Salvador em Latrão e na basílica de Santa Cruz em Jerusalém. A outra festa, a da inventio, ou seja, do encontro da Cruz, celebrada no dia 3 de Maio, e de origem galicana posterior, já não figura no Calendário, reformado depois do Concílio, realizando-se, deste modo, um projecto que, em vão, tinha sido proposto desde o tempo de Bento XIV, há mais de dois séculos.
Esta referência litúrgica leva-nos a fazer duas considerações, mais conformes com o estilo das nossas costumadas alocuções nas audiências gerais. A primeira convida-nos a interrogar, também sobre este ponto, o recente Concílio: o que diz o Concílio sobre a Cruz de Cristo? E, assim, como instrumento da Paixão de Cristo, ao ministro da Cruz, como símbolo da Redenção, sinal de extremo opróbrio para Jesus, Rei dos Judeus, crucificado, e sinal da única e suprema salvação, para nós e para o mundo (cfr. S. TomAs de Aquino, Summa Theologiae, II, q. 25, a. 4, ad 1).
Os documentos do Concílio, como é natural, não descrevem a crucifixão, nem apresentam uma lição dogmática sobre a Redenção. Não são uma história, nem um catecismo ou um tratado sistemático de teologia. Estão, porém, impregnados da doutrina da salvação e, por isso, fazem, continuamente, referências à Cruz, onde se consumou o sacrifício redentor e de onde se irradiam, como de um símbolo extremamente expressivo, a história, a memória, a eficácia e o mistério de Cristo Salvador. A Cruz é o distintivo, o sinal da nossa religião, a representação sensível e sintética da nossa fé.
Vejamos algumas das referências que os textos conciliares fazem à Cruz. O Concílio declara imediatamente que, na Cruz, se consumou o sacrifício religioso de Jesus, sacerdote e, ao mesmo tempo, vítima (aspecto este que tem insondável profundidade teológica), sacrifício que, na Missa, se reflecte e se renova de um modo incruento (cfr. Sacrosanctum Conciliam, 5,7 e 47; Lumen Gentium, 3). E repete, várias vezes (cfr. Lumen Gentium, 3; Dignitatis Humanae, 11), as palavras do Senhor: « E Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim. E dizia isto para indicar de que morte ia morrer» (Jo 12, 32-33). Poderemos encontrar, se procurarmos, nos textos conciliares, outras referências directas à Cruz, tiradas das citações bíblicas, como, por exemplo, nas passagens em que a Cruz é chamada meio de reconciliação e de paz entre os judeus e pagãos (cfr. Ef 2, 16; Nostra Aetate, 4); instrumento de libertação da escravidão do pecado (cfr. Gaudium et Spes, 2) e de purificação das actividades humanas (cfr. Ibid., 37).
Mas é numa expressão, que entrou com a máxima honra na nossa linguagem, que a obra redentora de Cristo, consumada por meio da Cruz, assume a importância de uma ideia dominante na teologia e espiritualidade do Concílio. Referimo-nos à expressão « mistério pascal», com a qual se pretendem explicar, sintèticamente, os principais factos que constituem a obra salvadora de Cristo, ou seja, a Sua Paixão e Morte, e também a Sua Ressurreição e Ascensão ao céu. Estes factos não só se verificaram na santa humanidade do Senhor Jesus, mas também se realizaram com a intencional e amorosa virtude de serem comunicados a quem tem fé n'Ele (cfr. Sacrosanctum Conciliam, 5; Rom 4, 23-25). Mistério Pascal significa a passagem (a palavra Páscoa significa Phase, isto é, trânsito, passagem do Senhor; cfr. Êx 12, 11) da morte à vida, do estado presente da existência ao estado sobrenatural, escatológico, consumado por Cristo, por meio da Sua Paixão, através do vau da Sua Morte, e celebrado, depois, mediante a Sua Ressurreição e a Sua Ascensão à direita do Pai. Esta passagem tornou-se-nos possível, e até nos foi oferecida, por meio da fé, dos sacramentos e da imitação de Cristo.
A Cruz, portanto, não nos descreve toda a realidade da salvação. Esta também compreende a vida nova, que vem depois da tragédia do Calvário, constitui a glória de Cristo (cfr. Jo 13, 1) e nos é dada, de maneira e em medida inicial (a graça), com a promessa da futura participação na própria glória de Nosso Senhor.
É este o Mistério Pascal, sempre mencionado quando se fala da religião cristã. A Cruz é apenas o seu lado visível e decisivo, que nos é dado conhecer e meditar melhor. É o encontro da culpa com a inocência, a luta entre a crueldade e a bondade, o duelo entre a morte e a vida. E, também, a composição da justiça com a misericórdia, o resgate do sofrimento na esperança, o triunfo do amor no sacrifício. O povo fiel pode contemplar todas estas realidades, e ainda outras, na Sexta-feira Santa, quando faz a Via-Sacra. Para representar adequadamente o Mistério Pascal, só falta a este piedoso exercício a última estação, a da Ressurreição.
Nesta altura é muito oportuna a segunda consideração. Apresenta-se como um exame de consciência sobre o reflexo existencial da Cruz de Cristo, isto é, vivido no pensamento e na acção, no cenário da nossa experiência moderna.
A Cruz não desapareceu completamente das nossas paisagens campestres. Não desapareceu das repartições públicas, onde ainda ocupa um lugar digno. Não desapareceu das paredes das nossas casas. Cristo está ali, suspenso no madeiro, moribundo, com a Sua linguagem tácita de sofrimento redentor, de esperança imorredoura, de amor que vence e vive. Esta é uma realidade consoladora e potente. Pelo menos com este sinal, ainda somos cristãos. Mas podemos perguntar se, na nossa consciência pessoal, esta árvore da Cruz, trágica e ao mesmo tempo luminosa, ocupa um lugar importante. Cristo crucificado, porventura, não se tornou, para nós, « escândalo e loucura », como era para os judeus e para os gregos, segundo a pregação de São Paulo (cfr. 1 Cor 1, 23-25; Gál 5, 11; Ef 2, 14-16)?
Todos nós sabemos, com certeza, que, se realmente somos cristãos, devemos participar na Paixão do Senhor (cfr. Col 1, 24), seguindo todos os dias os passos de Cristo, com a nossa cruz (cfr. Lc 9, 23). Jesus crucificado é o nosso exemplo (cfr. Gál 6, 14). Mas vemos hoje, em toda a parte, mesmo nos ambientes cristãos, que se procura abolir a Cruz, exactamente onde ela é necessária, ou seja, na consciência do pecado, de que é o único remédio, Actualmente, o remédio é outro: a indiferença moral, a falta de escrúpulos. O pecado, diz-se, não existe, é tabu, é imaginação de pessoas psiquicamente fracas. Para o eliminar, basta extinguir completamente a sensibilidade moral, basta abolir o escrúpulo e sufocar o remorso. O que resta do homem, que, agindo deste modo, se engana e degrada a si mesmo?
E que havemos de dizer de todo o nosso esforço para reconciliar o homem com o mundo, até quando se trata de um mundo inteiramente penetrado pelo mal (cfr. Jo 5, 19)? Não é também uma tentativa hipócrita de abolir a cruz e de eliminar, de qualquer modo, o fosso que ela cavou para separar o Reino de Deus do reino do demónio? Com o pretexto de nos tornarmos homens, tornamo-nos mundanos, escorregando pelas sendas equívocas da secularização, na fácil ilusão de salvar o mundo, por meio da assimilação dos seus gostos, dos seus hábitos e dos seus costumes. Com este artifício, não existe o perigo de se desvirtuar a Cruz de Cristo (cfr. 1 Cor 1, 17)?
Reflictamos sobre isto, se quisermos ser autênticos, como hoje se diz. Não tenhamos receio de que a Cruz tome a nossa vida imbele e triste, pelo facto de trazer amorosamente consigo os seus estigmas dolorosos e gloriosos: Cristo crucificado é virtude e sabedoria de Deus.
Damos, a todos vós, com o sinal da Cruz, a nossa Bênção Apostólica.
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