DISCURSO DO PAPA PAULO VI
AOS MEMBROS DO SECRETARIADO
PARA OS NÃO-CRENTES
18 de Março de 1971
Caríssimos Irmãos e dilectos Filhos:
Sentimo-nos feliz por este encontro com todos os membros do organismo designado até agora com o nome de « Secretariado para os Não-Crentes ». Estais encarregados, de modo muito especial, de promover, na Igreja, o diálogo com todos os homens que vivem num ateísmo ideológico ou prático, e, antes de tudo, de estudar objectivamente as múltiplas formas, as causas e as consequências deste ateísmo. É, certamente, uma tarefa imensa, complexa e difícil, mas que deve ser realizada urgentemente, segundo a justa observação do Padre Henri de Lubac: « Não há outro assunto mais grave e mais actual, e, ao mesmo tempo, mais complexo. Nenhum outro requer tanta atenção daqueles que, na Igreja, possuem uma parte da responsabilidade comum. Nenhum outro se impõe com mais vigor à consciência cristã do nosso tempo » (Prefácio de Des chrétiens interrogent l'athéisme, t. 1, vol. 1, L'athéisme dans la vie et la culture contemporaine, Paris, Desclée et Cie. 1967, p. 7).
Acabais de fazer o balanço destes cinco anos de actividade: primeiras experiências e tentativas, que já produziram frutos inegáveis, suscitaram numerosas iniciativas e também muitas questões. Examinaremos com atenção o relatório desta Congregação Plenária, tanto no que se refere aos objectivos que devem ser atingidos e às tarefas que devem ser realizadas, como no que diz respeito às estruturas deste Secretariado, que pretendemos transformar num instrumento cada vez mais apto à investigação, ao estudo e ao diálogo.
Nos nossos dias, uma realidade do mundo moderno, muito complexa e diversamente apreciada, atrai a nossa atenção. Referimo-nos ao fenómeno da secularização na sua relação com o ateísmo.
O processo de secularização que afecta as nossas sociedades de um modo radical pode parecer irreversível. Não se trata apenas do facto de instituições, bens e pessoas se libertarem do poder ou da vigilância da hierarquia da Igreja, o que é perfeitamente normal, se pensamos nas actividades humanas de suplência que a Igreja foi levada a assumir no passado. O fenómeno, porém, como sabeis, vai muito mais longe, estende-se ao plano cultural e sociológico. Não só as ciências, inclusive as ciências humanas e as artes, mas também a história, a filosofia e a moral registram uma tendência a considerar, como única fonte de referência, o homem, a sua razão, a sua liberdade e os seus projectos terrestres, independentemente da perspectiva religiosa, que, aliás, já não é compartilhada por todos. E a própria sociedade, desejando permanecer neutra perante o pluralismo ideológico, prescinde da religião para se organizar, relegando o sagrado à subjectividade das consciências individuais.
Esta secularização, que comporta uma autonomia progressiva do profano, é um facto característico das nossas civilizações ocidentais. Foi nesta situação que surgiu o secularismo como sistema ideológico. Não só justifica o que faz, mas também o toma como objectivo, como fonte e como norma do progresso humano, chegando a reivindicar para o homem uma autonomia absoluta perante o seu destino. Trata-se, pois, poder-se-ia dizer, de « uma ideologia, de uma nova concepção do mundo, sem abertura, que funciona simplesmente como uma nova religião » (Harvey Cox, La cité séculière, tradução francesa de S. de Trooz, Cahiers de actualité religieuse 23, Paris, Casterman 1968, p. 50).
Esta forma de naturalismo é uma visão da realidade que exclui qualquer referência a Deus e à transcendência, tendendo desde o princípio a identificar-se com o ateísmo e a mostrar-se como um inimigo mortal do cristianismo, o que uma consciência cristã não pode aceitar sem se negar a si própria, dado que « o verdadeiro ateísmo está situado, por definição, no plano de uma imanência, fechada dentro de si mesma, do homem e do mundo » (G. M. M. Cottier O.P., Horizons de l'athéisme em: Cogitatio Fidei 40, Paris, Cerf 1969, p. 180). Tudo isto é muito claro. Mas os espíritos que se mantêm fiéis à própria fé manifestam muita perplexidade perante as possibilidades e os perigos da secularização.
Embora não seja necessário apelar para a legitimidade de uma certa autonomia das realidades terrestres e até das sociedades, que possuem as suas leis e os seus valores próprios, e, por conseguinte, se distinguem do Reino de Deus (cfr. Gaudium et Spes, 36), é preciso, contudo, respeitar sem equívocos duas confusões desastrosas destes dois domínios.
A primeira é funesta. Propõe uma apresentação secular do cristianismo, englobando toda a fé cristã num certo humanismo, em que o termo « divino », se ainda é usado, constitui apenas um modo de designar algumas qualidades imanentes ao homem. Deste modo, priva-se a mensagem cristã de todo o seu alcance teocêntrico e promove-se, sem receio de uma contradição de termos, aquilo a que só se poderia chamar « um ateísmo cristão ». Uma certa teologia da morte de Deus, infelizmente, não fugiu a este estranho absurdo.
Opõem-se a esta posição alguns fiéis que são tentados a negar qualquer possibilidade de se elaborar uma filosofia humana, de se dar qualquer solução humana aos problemas deste mundo, fora da fé da Igreja e das aplicações dos princípios cristãos. Mas, afinal, isto não seria negar a responsabilidade humana, que, precisamente, faz parte da grandeza do homem criado à imagem de Deus, e recusar toda a colaboração sincera com os homens de boa-vontade que não compartilham a nossa fé? Este monolitismo confunde demasiadamente o Reino de Deus com o nosso mundo.
Manter uma distinção entre os dois não é pô-los em completa oposição, como se as realidades temporais não tivessem qualquer relação com o Reino de Deus, como se as obras deste mundo tivessem pouca importância para a fé que espera a salvação de Jesus Cristo. Esta incompatibilidade seduziu algumas almas nobres e fiéis, porque dava a impressão de salvaguardar a transcendência de Deus. Na realidade, porém, levou frequentemente algumas pessoas e expulsá-la da vida humana. A doutrina católica não desconfiou sempre destes excessos, dado que o mesmo Deus é Criador, Redentor e Santificador?
No entanto, apresenta-se-nos com insistência uma dupla questão: é possível fundar um humanismo autêntico partindo de perspectivas pràticamente ateias, ou seja, de um mundo dessacralizado e secularizado, sem relação com Deus, deixando a possibilidade de reconhecer, aos que podem ou querem, um Deus transcendente e pessoal? É para se desejar que se chegue a esse ponto, através do processo da secularização, para purificar e valorizar, como algumas vezes se diz, a fé dos crentes?
No plano prático, a resposta à primeira questão certamente não é muito fácil. É preciso, sem dúvida, desconfiar de uma apologia simplista, que expõe a tese segundo a qual, como alguém disse em termos lapidares, « um povo desumaniza-se na medida em que se descristianiza» (François Mauriac, numa conferência durante a Semana dos Intelectuais Católicos da França, em Novembro de 1954, cfr. Le chrétien Mauriac, em: Recherches et Débats 70, Paris, Desclée de Brouwer 1971, p. 65), e, sem Deus, tudo anda à deriva, no plano humano: o que é verdadeiro, o que é bom, o respeito pelas pessoas, pela sua felicidade e pela sua esperança. E, no entanto, depois de se ter assistido, há já um século, aos esforços comoventes dos diversos humanismos ateus, não se começa a compreender, efectivamente, que agora é o sentido do homem que parece pouco assegurado, de modo que algumas pessoas já não ousam falar de humanismo? Em todo o caso, para nós, que temos fé, esta convicção é certa: um humanismo fechado que exclui Deus revelar-se-á, mais cedo ou mais tarde, desumano (cfr. Populorum Progressio, 42). Porquê? Porque Deus permanece como a fonte e o termo dos valores supremos, sem os quais o homem não pode viver; porque as realidades do pecado e da morte, com os problemas que suscitam, não só para cada homem mas também para a história, não podem receber uma solução radical e definitiva fora da fé (cfr. Gaudium et Spes, 21).
Aqui encontramos a segunda questão que tínhamos proposto: uma secularização radical da sociedade tem a possibilidade de tornar a fé mais pura, mais consciente e mais responsável, dado que é menos sociológica e garante, de um modo mais perfeito, o serviço do homem? Estamos convencido de que não é assim. Que uma secularização deste género se desenvolve em oposição ao cristianismo é um facto histórico. Mas acrescentemos ainda que a secularização, em si mesma, não se limita a afirmar a distinção, aliás legítima e necessária, entre as realidades terrestres e o Reino de Deus, mas orienta-se inteiramente para o imanentismo e o antropocentrismo, a que a fé cristã não pode ser reduzida. Uma secularização radical, privando a cidade humana da sua referência a Deus e dos sinais da Sua presença, excluindo dos projectos humanos qualquer investigação de Deus e suprimindo as instituições pròpriamente religiosas, cria, na realidade, um clima de ausência de Deus. Se, por um lado, isto constitui uma oportunidade para a maturação de uma certa elite, por outro é um terreno fértil para o ateísmo, para todos aqueles que — e serão sempre a maior parte — possuem uma fé vacilante e que não podem resistir por muito tempo sem um apoio exterior. Admirar-se disto seria desprezar a natureza do homem e da sua necessária expressão social.
Com a nossa responsabilidade de pastor, sentimo-nos, portanto, no dever de vos alertar contra este grave risco. Como declarou, com razão, o Cardeal François Marty, «se o mundo se está a secularizar, não é por isso que os cristãos devem fazer o mesmo... Secularização não significa ir ao encontro de uma vida cristã sem elementos religiosos... A contestação dos ídolos e de tudo o que era falsamente considerado sagrado só pode ser feita no nome de Jesus Cristo... Os cristãos não podem configurar-se a Cristo sem estruturas e actos próprios da religião. O catolicismo, por causa da sua instituição hierárquica e sacramental, não pode admitir qualquer secularização. A Igreja não se deve ocultar ao mundo, mas ser sempre o que realmente é (Encontro europeu do Secretariado para os Não-Crentes, Viena, 9 de Setembro de 1968, em: Documentation Catholique, Paris, Bonne Presse, t. LXVI 1969, p. 799).
Digamo-lo claramente: diante de uma certa secularização de facto deste mundo, os fiéis têm uma missão profética a cumprir, a de contestar a tendência do homem secularizado a fechar-se em si mesmo, a procurar nas suas próprias forças a salvação e a libertação de todos os seus males, inclusive do pecado e da morte (cfr. De Rosa SJ., La secolarizzazione dei cristianesimo em: La Civiltà Cattolica, Roma 1970, n. 2878, pp. 338-339).
Isto não impede que os cristãos reconheçam lealmente o que há de válido — e, muitas vezes, de um modo notável — nos esforços envidados pelos nossos irmãos que não têm fé, para a construção de um mundo mais humano, dado que não podemos ficar indiferentes diante daquilo que é verdadeiramente humano: « Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Mas não devem esquecer, embora não consigam que os ateus compartilhem esta convicção de fé de que eles dão testemunho ao respeitá-los, que o Filho do Homem veio a este mundo para salvar os homens e os tornar filhos de Deus.
Este é o campo imenso que se abre aos católicos deste século secularizado, no seu diálogo com o mundo ateu: « Crer em Deus deve significar viver como se a vida não pudesse ser vivida se Deus não existisse » (J. Maritain, La signification de l'athéisme contemporain, Paris, Desclée de Brouwer 1969, p. 42).
Vedes, desde já, caríssimos Irmãos e dilectos Filhos, a importância da missão do vosso Secretariado, a de promover um diálogo deste género, com lealdade e tenacidade, de ajudar os pastores e os fiéis a porem-no em prática, com rectidão e sinceridade. Ê para tanto que imploramos, de todo o coração, a luz e a força do Espírito Santo, em penhor das quais vos damos a Bênção Apostólica.
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