AS NORMAS DO MOTU PROPRIO INTRODUÇÃO HISTÓRICA Poucos anos depois da promulgação do Código de 1917, o Santo Ofício emanou uma Instrução, a Crimen sollicitationis (1922), que dava instruções pormenorizadas a cada uma das Dioceses e aos tribunais sobre os procedimentos a serem adoptados quando se deviam tratar o delito canónico de solicitação. Este gravíssimo delito referia-se ao abuso da santidade e da dignidade do sacramento da penitência por parte de um sacerdote católico, que solicitasse o penitente a pecar contra o sexto mandamento, com o confessor ou com outra pessoa. A normativa de 1922 tinha a finalidade de actualizar à luz do novo Codex iuris canonici as indicações da Constituição Apostólica Sacramentorum poenitentiae promulgada pelo Papa Bento XIV em 1741. Deviam-se considerar diversos elementos que ressaltam a especificidade dos casos (com aspectos menos relevantes sob o ponto de vista do direito penal civil): o respeito da dignidade do sacramento, a inviolabilidade do sigilo sacramental, a dignidade do penitente e o facto de que em muitos casos o sacerdote acusado não podia ser interrogado sobre tudo o que tinha acontecido sem pôr em perigo o sigilo sacramental. Portanto, este procedimento especial baseava-se num método indirecto de alcançar a certeza moral necessária para chegar a uma decisão definitiva sobre o caso. Este método indirecto incluía que se investigasse sobre a credibilidade da pessoa que acusava o sacerdote e a vida e o comportamento do sacerdote acusado. A própria acusação era considerada como uma das acusações mais graves que se podiam mover contra um sacerdote católico. Portanto, o procedimento teve o cuidado de garantir que o sacerdote que podia ser vítima de uma acusação falsa ou caluniosa fosse protegido da infâmia enquanto não se provasse a sua culpabilidade. Isto foi garantido pela estreita confidencialidade do próprio procedimento, orientada para proteger de uma indevida publicidade todas as pessoas envolvidas, até à decisão definitiva do tribunal eclesiástico. A Instrução de 1922 incluía uma breve secção dedicada a outro delito canónico: o crimen pessimum, que tratava o comportamento homossexual por parte de um clérigo. Esta ulterior secção determinava que os procedimentos especiais para os casos de solicitação fossem aplicados também para este caso; com as necessárias adaptações devidas à natureza do caso. As normas relativas ao crimen pessimum eram alargadas ao odioso crime do abuso sexual de crianças pré-puberais e à bestialidade. Portanto, a Instrução Crimen sollicitationis nunca pretendeu representar a inteira policy da Igreja católica acerca de comportamentos sexuais impróprios por parte do clero, mas unicamente instituir um procedimento que permitisse responder àquela situação totalmente singular e particularmente delicada que é a confissão, na qual à completa abertura da intimidade da alma por parte do penitente corresponde, por lei divina, o dever de absoluta confidencialidade por parte do sacerdote. Só progressivamente e por analogia ela foi alargada a alguns casos de comportamento imoral de sacerdotes. A ideia de que é necessária uma normativa orgânica sobre o comportamento sexual de pessoas com responsabilidade educativa é bastante recente, por isso representa um grave anacronismo pretender julgar nesta perspectiva os textos normativos canónicos de grande parte do século passado. A Instrução de 1922 foi enviada aos Bispos que tivessem a necessidade de tratar casos particulares relativos à solicitação, à homossexualidade de um clérigo, ao abuso sexual de crianças e à bestialidade. Em 1962, o Papa João XXIII autorizou uma reimpressão da Instrução de 1922 com um breve acréscimo sobre os procedimentos administrativos nos casos que envolvessem clérigos religiosos. As cópias da reimpressão de 1962 deveriam ter sido distribuídas aos Bispos reunidos no Concílio Vaticano II (1962-1965). Algumas cópias da reimpressão foram entregues aos Bispos que, entretanto, precisavam de tratar casos reservados ao Santo Ofício; contudo, a maior parte das cópias nunca foi distribuída. As reformas propostas pelo Concílio Vaticano II obrigavam também a uma reforma do Codex iuris canonici de 1917 e da Cúria romana. O período entre 1965 e 1983 (o ano em que foi publicado o novo Codex iuris canonici para a Igreja latina) foi marcado por diferentes tendências entre os estudiosos de direito canónico em relação à finalidade da lei penal canónica e à necessidade de uma abordagem descentralizada dos casos, valorizando a autoridade e o discernimento dos Bispos locais. Foi preferida uma "atitude pastoral" em relação aos comportamentos inoportunos; os processos canónicos eram por alguns considerados anacronistas. Com frequência prevaleceu o "modelo terapêutico" no tratamento dos casos de comportamentos inoportunos dos clérigos. Esperava-se que o Bispo fosse mais capaz de "curar" do que de "punir". Uma ideia demasiado optimista em relação aos benefícios das terapias psicológicas determinou muitas decisões que se referiam ao pessoal das dioceses e dos institutos religiosos, por vezes sem considerar adequadamente as possibilidades de uma recaída. Contudo, casos relativos à dignidade do Sacramento da Penitência, depois do Concílio permaneceram na Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício; o nome foi mudado em 1965), e a Instrução Crimen sollicitationis ainda foi usada para estes casos até às novas normas estabelecidas pelo motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, de 2001. No período sucessivo ao Concílio Vaticano II, foram apresentados à Congregação para a Doutrina da Fé poucos casos relativos a comportamentos sexuais inoportunos do clero relativos a menores: alguns destes casos estavam relacionados com o abuso do Sacramento da penitência; outros podem ter sido enviados entre os pedidos de dispensa das obrigações da ordenação sacerdotal e do celibato (prática por vezes definida "laicização"), que foram tratadas pela Congregação para a Doutrina da Fé até 1989 (de 1989 a 2005 a competência para tais dispensas passou à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; de 2005 até hoje, os mesmos casos são tratados pela Congregação para o Clero). O Codex iuris canonici promulgado pelo Papa João Paulo II em 1983 renovou a disciplina relativa ao cân. 1395, §2: "O clérigo que tenha cometido outros delitos contra o sexto preceito do Decálogo, se o delito foi feito com violência, ou ameaças, ou publicamente, ou com um menor com menos de 16 anos, seja punido com penas justas, não excluída a demissão do estado clerical, se a situação o exigir". Segundo o CDC de 1983 os processos são celebrados nas Dioceses. Os apelos das sentenças judiciárias podem ser apresentadas à Rota Romana, enquanto os recursos administrativos contra os decretos penais são propostos à Congregação para o Clero. Em 1994, a Santa Sé concedeu um indulto aos Bispos dos Estados Unidos: a idade para definir o delito canónico de abuso sexual de um menor foi elevada a 18 anos. Além disso, o tempo para a prescrição foi alargado a um período de 10 anos calculado a partir do completamento do 18º ano de idade da vítima. Foi indicado explicitamente aos Bispos que realizassem os processos canónicos nas Dioceses. Os apelos foram reservados à Rota Romana, os recursos administrativos à Congregação para o Clero. Durante este período (1994-2001) não foi feita referencia alguma à antiga competência do Santo Ofício para estes casos. O indulto de 1994 para os Estados Unidos foi alargado à Irlanda em 1996. Entretanto, a questão de procedimentos especiais para casos de abuso sexual foi debatida na Cúria Romana. No final, o Papa João Paulo II decidiu incluir o abuso sexual de um menor de 18 anos cometido por um clérigo no novo elenco dos delitos canónicos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé. A prescrição para estes casos foi estabelecida em 10 anos a partir do completamento do 18º ano de idade da vítima. A nova lei, um motu proprio com o título Sacramentorum sanctitatis tutela, foi promulgada a 30 de Abril de 2001. Uma carta assinada pelo Cardeal Joseph Ratzinger e pelo Arcebispo Tarcisio Bertone, respectivamente Prefeito e Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, foi enviada a todos os Bispos católicos a 18 de Maio de 2001. A carta informava os Bispos acerca da nova lei e dos novos procedimentos que substituíam a Instrução Crimen sollicitationis. Nela eram antes de tudo indicados quais fossem os delitos mais graves, quer contra a moral quer na celebração dos sacramentos, reservados à Congregação; além disso, eram indicadas as normas processuais especiais a serem observadas nos casos relativos a tais graves delitos, incluídas as normas relativas à determinação das sanções canónicas e à sua imposição. Os delicta graviora reservados à Congregação para a Doutrina da Fé eram enumerados do seguinte modo: no âmbito dos delitos contra a santidade do augustíssimo sacramento e sacrifício da Eucaristia:
no âmbito dois delitos contra a santidade do sacramento da penitência:
por fim, no âmbito dos delitos contra a moral:
As normas processuais a serem seguidas nestes casos eram assim indicadas:
Além disso, estabelecia-se também que todos os Tribunais da Igreja latina e das Igrejas orientais católicas fossem obrigados a observar os cânones sobre os delitos e as penas sobre o processo penal de ambos os Códigos, juntamente com as normas especiais, emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé. À distância de nove anos da promulgação do Motu Proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, a Congregação para a Doutrina da Fé, com a intenção de melhorar a aplicação da lei, considerou necessário introduzir algumas mudanças a estas normas, sem modificar o texto na sua inteireza, mas só em algumas das suas partes. Depois de um atento e cuidadoso estudo das mudanças propostas, os membros da Congregação para a Doutrina da Fé submeteram ao Romano Pontífice o resultado das próprias determinações que, o mesmo Sumo Pontífice, com decisão de 21 de Maio de 2010, aprovou, ordenando a sua promulgação. O texto das Normas sobre os delicta graviora actualmente em vigor é o aprovado pelo Santo Padre Bento XVI a 21 de maio de 2010. |
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