VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO CANADÁ
(24-30 DE JULHO DE 2022)
ENTREVISTA COLETIVA
DURANTE O VOO DE REGRESSO A ROMA
Sexta-feira, 29 de julho de 2022
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Matteo Bruni:
Boa noite a todos! Santidade, foram dias de peregrinação e penitência em várias etapas com muitos encontros, gestos – o último, comovente, em Iqaluit. Estes dias – como disse Vossa Santidade – não terminam com a partida desta terra; e, também neste sentido, chegamos a este encontro com os jornalistas. Mas o Santo Padre talvez queira dizer-nos algumas palavras antes mesmo de o iniciar...
Papa Francisco:
Boa noite e obrigado pelo vosso acompanhamento, pelo vosso trabalho aqui. Sei que trabalhastes imenso; disseram-me como vos empenhastes! E obrigado também pela companhia. Obrigado!
Matteo Bruni:
Nesta noite, a primeira pergunta é de Jéssica Ka'Nhehsíio Deer, jornalista canadense de origem Inuít.
Jéssica Ka'Nhehsíio DEER (CBC Radio – Canada Indigenous)
Como descendente de um sobrevivente duma escola residencial, sei que os sobreviventes e as suas famílias querem ver ações concretas que deem seguimento ao seu pedido de desculpas, incluindo a rejeição da «doutrina da descoberta». Considerando que a mesma ainda está inserida na Constituição e nos sistemas jurídicos do Canadá e dos Estados Unidos, onde as populações indígenas continuam a ser defraudadas das suas terras e desprovidas de poder, não terá sido uma oportunidade perdida para se fazer uma declaração neste sentido durante a sua viagem ao Canadá?
Papa Francisco:
A respeito da última coisa, não compreendo onde está o problema.
Jéssica Ka'Nhehsíio DEER
Está no facto de as populações indígenas estarem ainda hoje privadas de terras e poder, em virtude daquelas Bulas papais e deste conceito da doutrina da descoberta.
Quando falo com pessoas indígenas, estas dizem que, ao colonizar as Américas, havia esta «doutrina da descoberta» que de algum modo dava força à ideia de que os povos indígenas dos novos países eram inferiores relativamente aos católicos. Foi assim que o Canadá e os Estados Unidos se tornaram «países».
Papa Francisco:
Obrigado pela pergunta. Creio que isso seja um problema de todo o colonialismo. Mesmo hoje! As colonizações ideológicas atuais têm o mesmo esquema. Quem não entra no seu caminho, é inferior. Mas, sobre isso, quero ir mais longe: não eram apenas considerados inferiores, mas havia qualquer teólogo um pouco tresvariado que se interrogava se eles teriam uma alma. Quando João Paulo II foi à África e se deteve na porta onde os escravos eram embarcados [Ilha de Gorée, a porta de não regresso], deu um sinal para que chegássemos a compreender o drama, o drama criminoso: aquelas pessoas eram lançadas no navio, em condições terríveis, e depois eram escravos na América. É verdade que havia vozes que falavam claramente, como por exemplo Bartolomeu de las Casas, Pedro Claver, mas eram a minoria. A consciência da igualdade humana chegou lentamente. E digo a consciência, porque ainda há algo no inconsciente... Sempre tivemos – ouso dizer – uma espécie de comportamento colonialista de reduzir a cultura deles à nossa. É algo que deriva do nosso modo «desenvolvido» de viver, e às vezes perdemos valores que eles têm.
Por exemplo: os povos indígenas têm um grande valor que é a harmonia com a criação e, pelo menos alguns que conheço, expressam-no com a palavra viver bem [bien vivir]. Esta palavra não significa - como a entendemos nós ocidentais – divertir-se ou dar-se à dolce vita, não! Viver bem é preservar a harmonia. E isto, a meu ver, é o grande valor dos povos originários: a harmonia. Estamos habituados a reduzir tudo à cabeça; ao contrário, os povos originários (falo em geral) sabem expressar-se em três linguagens – a da cabeça, a do coração e a das mãos –, mas usando-as conjuntamente. E sabem ter esta linguagem com a criação.
Além disso, que dizer deste progressismo acelerado do desenvolvimento um pouco exagerado, um pouco nevrótico que temos? Não falo contra o desenvolvimento: o desenvolvimento é bom. Mas não é bom com esta ânsia de desenvolvimento… desenvolvimento… desenvolvimento! Olha! Uma das coisas que perdeu a nossa civilização comercial «superdesenvolvida» é a capacidade da poesia: os povos indígenas têm esta capacidade poética. Não é a minha fantasia!
Depois, é verdade que esta doutrina da colonização é má, é injusta! Ainda hoje é aplicada de igual modo; talvez com luvas de seda, mas é aplicada hoje. Por exemplo, alguns bispos de certo país disseram-me: «O nosso país, quando pede um empréstimo a uma organização internacional, vê colocar-lhe condições, mesmo legislativas, colonialistas. Para te dar o empréstimo, fazem-te mudar um pouco o teu modo de viver». Voltando à nossa colonização da América, a dos ingleses, dos franceses, dos espanhóis, dos portugueses, quatro [potências coloniais] sempre a braços com este perigo, melhor, com esta mentalidade: «somos superiores, estes indígenas não contam». E isto é grave... Por isso devemos trabalhar naquilo que dizias: ir lá atrás e, por assim dizer, sanificar o que se fez mal, com a consciência de que existe ainda hoje o mesmo colonialismo. Pensa, por exemplo, num caso que é universal e tomo a liberdade de o citar: o caso dos rohingya, em Myanmar. Não têm direito à cidadania, são considerados de nível inferior; ainda hoje. Muito obrigado!
Matteo Bruni:
A segunda pergunta, Santidade, vem doutra jornalista canadense, Brittany Hobson.
Brittany HOBSON (The canadian Press)
Boa noite, Papa Francisco. O meu nome é Brittany Hobson, da Canadian Press. O Santo Padre diz, frequentemente, que é necessário falar de forma clara, honesta, direta e com ousadia. Como sabe, a Comissão Canadense para a Verdade e a Reconciliação descreveu o sistema das escolas residenciais como genocídio cultural, acabando a expressão corrigida simplesmente para genocídio. As pessoas que escutaram as suas palavras de desculpa, na semana passada, lamentaram o facto de não ter sido usado o termo genocídio. O Santo Padre usaria este termo e reconheceria que membros da Igreja participaram neste genocídio?
Papa Francisco:
É verdade! Não usei a palavra, porque não me veio à cabeça, mas descrevi o genocídio e pedi desculpa, pedi perdão por este trabalho que é genocida. Por exemplo, condenei isto: tirar as crianças, mudar a cultura, mudar as mentes, mudar as tradições, mudar uma raça e, por assim dizer, toda uma cultura. Sim, embora genocídio seja uma palavra técnica, não a usei porque não me veio à mente. Mas descrevi a verdade, que era um genocídio. Sim, sem dúvida. Fiquem tranquilos. Comunica que o Papa disse sim, foi genocídio. Obrigado!
Matteo Bruni:
A outra pergunta vem de Valentina Alazraki – já a conhece bem! –, de Televisa.
Maria Valentina ALAZRAKI (Televisa)
Papa Francisco, boa noite. Suponhamos que esta viagem ao Canadá tenha sido também um teste, uma prova para ver a sua saúde, aquilo que esta manhã designou como «limitações físicas». Então queríamos saber: depois desta semana, que nos pode dizer sobre as suas futuras viagens? Dizer-nos se quer continuar a viajar assim; se haverá viagens que não pode fazer devido a tais limitações, ou se porventura depois duma semana pensa que a operação ao joelho poderia resolver melhor a situação e viajar de maneira parecida como fazia antes?
Papa Francisco:
Obrigado. Não sei! Não creio que possa continuar com o mesmo ritmo anterior de viagens. Creio que, na minha idade e com esta limitação, devo poupar-me um pouco para poder servir a Igreja ou, ao contrário, pensar na possibilidade de me afastar. Isto – com toda a honestidade o digo – não é uma catástrofe; pode-se mudar de Papa, pode-se mudar, sem problemas! Mas creio que devo limitar um pouco estes esforços. A operação ao joelho não é possível; não é possível no meu caso. Os técnicos dizem que sim, mas temos o problema da anestesia: há dez meses, suportei mais de seis horas de anestesia e ainda sinto os vestígios. Não se joga, não se brinca com a anestesia. E por isso pensa-se que a operação não seja conveniente. Mas procurarei continuar a fazer viagens e estar perto das pessoas, pois creio que a proximidade seja um modo de servir. Mais do que isto, não sinto vontade de avançar. Esperemos... Viagem ao México: não está prevista... ainda!
Maria Valentina ALAZRAKI
E ao Cazaquistão? E, se vai ao Cazaquistão, não deveria porventura ir também à Ucrânia?
Papa Francisco:
Disse que quero ir à Ucrânia. Vejamos o que encontro sobre a mesa ao chegar a casa. Agora gostaria de ir ao Cazaquistão: é uma viagem tranquila, sem muito movimento; trata-se dum congresso de religiões. Mas, por agora, permanece o que está. Também devo ir ao Sudão do Sul antes do Congo, porque é uma viagem com o Arcebispo de Cantuária e com o Bispo da Igreja da Escócia, os três juntos, como nós três demos o retiro há dois anos. Depois o Congo, mas terá de ser no próximo ano, porque agora é a estação das chuvas... Vamos ver. Vontade, não me falta, mas vejamos o que diz a perna.
Matteo Bruni:
A próxima pergunta, Santidade, é de Caroline Pigozzi, de Paris Match.
Caroline Pigozzi
Boa noite, Santo Padre. Esta manhã, encontrou no paço episcopal – como sempre faz quando vai a um país – os membros locais da Companhia de Jesus, a sua família. Há nove anos, no regresso da JMJ no Brasil, tinha-lhe perguntado em 28 de julho de 2013 se ainda se sentia jesuíta. A resposta foi positiva. No passado dia 4 de dezembro, depois de ter visto os jesuítas da Grécia em Atenas, Vossa Santidade explicou: «Quando se inicia um processo, é preciso deixá-lo desenvolver-se, deixar que uma obra cresça e depois retirar-se. Assim deve fazer todo o jesuíta, nenhuma obra lhe pertence, porque pertence ao Senhor». Santo Padre, esta declaração poderia ser válida também um dia para um Papa jesuíta?
Papa Francisco:
Creio que sim. Sim!
Caroline Pigozzi
Quer dizer que poderia retirar-se como os jesuítas?
Papa Francisco:
Sim! É uma vocação.
Caroline Pigozzi
A de ser Papa ou a de ser jesuíta?
Papa Francisco:
Que o Senhor Se pronuncie. O jesuíta procura (procura, nem sempre o consegue, mas procura) fazer a vontade do Senhor. E o Papa jesuíta deve fazer o mesmo. Quando fala o Senhor, se Ele te diz «continua», tu continua. Se o Senhor te diz «põe-te de lado», tu retira-te. Mas é o Senhor que decide.
Caroline Pigozzi
Mas o que está a dizer significa que espera a morte naquele ponto!
Papa Francisco:
Mas, todos esperamos a morte.
Caroline Pigozzi
Não é isso! O que eu queria dizer: não se retira antes?
Papa Francisco:
Será aquilo que o Senhor disser. O Senhor pode dizer: «demite-te»! É o Senhor quem manda. Uma coisa sobre Santo Inácio (isto é importante): quando alguém estava cansado, doente, dizia a Santo Inácio: «Não posso fazer a oração», e ele dispensava da oração. Mas nunca dispensava do exame de consciência: ver duas vezes por dia o que aconteceu... Não é questão de pecados ou não pecados! Mas: «hoje que espírito me moveu?» Dizia ele que a nossa vocação era procurar ver o que sucedeu hoje. Se vejo, por hipótese, que o Senhor me diz alguma coisa, me dá uma inspiração disto ou daquilo, devo fazer um discernimento para ver o que me pede o Senhor. E pode suceder que o Senhor queira mandar-me retirar. Cabe-Lhe a Ele. É Ele que manda. Creio que este é o modo religioso de viver dum jesuíta: permanecer no discernimento espiritual para tomar decisões, escolher vias de trabalho e escolher também os compromissos. O discernimento é um ponto chave na vocação do jesuíta. Isto é importante. Nisto, Santo Inácio era muito firme, porque foi a própria experiência do discernimento espiritual que o levou à conversão. E os Exercícios Espirituais são verdadeiramente uma escola de discernimento. Assim, por vocação, o jesuíta deve ser um homem de discernimento: discernir as situações, discernir a própria consciência, discernir as decisões a tomar. E por isso deve estar aberto a tudo o que o Senhor lhe pedir. Isto é um pouco a nossa espiritualidade.
Caroline Pigozzi
Mas agora, Santidade, sente-se mais Papa ou mais jesuíta?
Papa Francisco:
Nunca fiz tal medição; nunca a fiz. Sinto-me um servidor do Senhor, com o hábito jesuíta, porque não existe uma espiritualidade papal. Esta não existe. Cada Papa continua com a própria espiritualidade. Pensa em São João Paulo II, com aquela estupenda espiritualidade mariana que possuía: tinha-a antes e manteve-a como Papa. Pensa em tantos Papas que continuaram com a própria espiritualidade. O papado não é uma espiritualidade; é um trabalho, uma função, um serviço, mas cada qual realiza-o segundo a própria espiritualidade, a graça própria, com a própria fidelidade e mesmo com os seus próprios pecados. Mas não há uma espiritualidade papal. Por isso não é possível a comparação entre a espiritualidade jesuíta e a espiritualidade papal, porque esta última não existe. Entendeste? Obrigado, Obrigado!
Matteo Bruni:
A seguinte pergunta, Santidade, provem duma jornalista alemã, Severina Bartonitschek, da Agência de Imprensa Católica Alemã.
Severina Elisabeth BARTONITSCHEK (CIC)
Boa noite, Santo Padre! Ontem falou também da fraternidade da Igreja, duma comunidade que sabe escutar e estabelecer diálogo, que promove uma boa qualidade das relações. Há poucos dias, porém, apareceu sem assinatura uma declaração da Santa Sé sobre o Caminho Sinodal da Alemanha. Santidade, pensa que um tal modo de comunicar contribua ou seja de obstáculo para o diálogo?
Papa Francisco:
Primeiro, aquele Comunicado fê-lo a Secretaria de Estado; foi um erro não o explicitar ao fim... Creio que se dizia «Comunicado da Secretaria de Estado», mas não tenho a certeza. Foi um erro, porém, não assinar como Secretaria de Estado, um erro do departamento, não má vontade. Isto, a propósito da última coisa. Quanto ao sogenannter sinodaler Weg, ao caminho sinodal, escrevi uma carta (fi-la sozinho, gastou-me um mês de oração, reflexão, investigação) e disse tudo o que devia dizer sobre o Caminho Sinodal… Mais do que aquilo, não vou dizer. Aquela carta que escrevi há dois [três] anos, é o magistério papal sobre o Caminho Sinodal. Contornei a Cúria, porque não fiz qualquer consulta. Fi-la como um caminho pessoal e também como pastor a bem duma Igreja que procura um caminho, como irmão, como pai, como crente. Assim a fiz. E esta é a minha mensagem. Sei que não é fácil, mas está tudo lá, naquela carta. Obrigado.
Matteo Bruni:
A próxima pergunta é de Ignazio Ingrao, de Raiuno.
Ignazio Ingrao (RAI - TG1)
A Itália está a atravessar um momento difícil que suscita preocupação mesmo a nível internacional. Temos a crise económica, a pandemia, a guerra e agora encontramo-nos também sem um governo. O Santo Padre é o Primaz da Itália: no telegrama que dirigiu ao Presidente Mattarella pelo aniversário natalício dele, falava dum país marcado por diversas dificuldades e chamado a fazer escolhas cruciais. Como sentiu a queda de Draghi?
Papa Francisco:
Em primeiro lugar, não quero envolver-me na política interna italiana. Segundo: Ninguém pode dizer que o presidente Draghi não fosse um homem de alta qualidade internacional. Foi presidente do Banco Central Europeu, digamos, com uma boa carreira. Depois fiz uma pergunta apenas a um dos meus colaboradores: «Diz-me! Quantos governos teve a Itália neste século?» Respondeu-me: «20». Esta é a minha resposta.
Ignazio Ingrao
Entretanto, Santo Padre, tendo presente estas difíceis eleições, que apelo faria às forças políticas?
Papa Francisco:
Responsabilidade. Responsabilidade cívica.
Matteo Bruni:
Obrigado, Santidade! Obrigado, Ignazio. E a próxima pergunta é duma jornalista do Religion News Service, Claire Giangravè.
Claire Giangravè (Religion News Service)
Viva, Santo Padre! Boa noite. Muitos católicos, mas também muitos teólogos, creem que há necessidade dum desenvolvimento na doutrina da Igreja relativa aos anticoncetivos. Parece que o seu antecessor João Paulo I pensava que talvez necessitasse duma reavaliação a proibição total. Santidade, que pensa disto, ou seja – resumindo – está aberto a uma reavaliação neste sentido? É possível um casal tomar em consideração os anticoncetivos?
Papa Francisco:
Compreendi! Trata-se duma coisa muito concreta. Sabei que o dogma, a moral, se encontra sempre num caminho de desenvolvimento, mas desenvolvimento na mesma direção. Acho que já falei disto aqui outras vezes: no desenvolvimento duma questão moral, dum desenvolvimento teológico – digamos assim – ou dogmático, há uma regra que é muito clara e esclarecedora, que explicitou no século V um francês, Vicente de Lérins. Diz ele que a verdadeira doutrina, não deve ficar estagnada, mas avançar, desenvolver-se ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Ou seja, consolida-se com o tempo: dilata-se, consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo. Por isso o dever dos teólogos é a pesquisa, a reflexão teológica. Não se pode fazer teologia com um «não» à frente. Será depois o Magistério que poderá dizer: «Não! Foste demasiado longe, volta atrás». Mas o desenvolvimento teológico deve ser aberto; para isso servem os teólogos. E o Magistério deve ajudar a compreender os limites. Sobre o problema dos anticoncetivos, sei que saiu uma publicação sobre esse e outros temas matrimoniais. São as atas dum congresso e, no congresso, temos os estudos, depois discutem entre eles e fazem as propostas. Devemos ser claros: aqueles que realizaram este congresso fizeram o seu dever, porque procuraram avançar na doutrina, mas no sentido da Igreja, não fora, como disse com aquela regra de Vicente de Lérins. Depois o Magistério dirá: «Sim, está bem» ou «não está bem».
Mas, há tantas coisas postas em questão. Pensa, por exemplo, nas armas atómicas: hoje declarei oficialmente que é imoral o uso e a posse das armas atómicas. Pensa na pena de morte: primeiro dizia-se sim à pena de morte; agora posso dizer que estamos perto de defender a sua imoralidade, porque se desenvolveu bem a consciência moral...
Assim quando o dogma ou a moral se desenvolve, deve seguir na mesma direção, atendo-se às três regras de Vicente de Lérins. Creio que isto seja claro: uma Igreja que não desenvolve em sentido eclesial o seu pensamento, é uma Igreja que vai para trás. E este é o problema atual de muitos que se dizem «tradicionais». Não! Não são tradicionais, são «retrógradas», vão para trás. Não têm raízes, limitam-se a dizer que sempre se fez assim, no século passado fez-se assim. E o «retrogradismo» é um pecado, porque não avança com a Igreja. Ao contrário, a tradição – dizia alguém; creio que o referi num dos discursos – é a fé viva dos mortos enquanto que, para esses retrógradas que se dizem tradicionais, é a fé morta dos vivos. A tradição é precisamente a raiz de inspiração para avançar na Igreja. E isto é sempre vertical. O «retrogradismo» é andar para trás, é sempre fechado. É importante compreender bem o papel da tradição, que está sempre aberta, como as raízes da árvore, e a árvore cresce assim... Um músico, Gustav Mahler, costumava dizer uma frase muito bela: a tradição neste sentido é a garantia do futuro; é a garantia, não é uma peça de museu. Se tu imaginas fechada a tradição, esta não é a tradição cristã. É sempre a seiva das raízes que te leva para a frente, que faz avançar... Assim, a propósito do que dizias, ou seja, que é preciso pensar e levar para diante a fé e a moral: enquanto segue na direção das raízes, da seiva, está bem. Com estas três regras de Vicente de Lérins que mencionei.
Matteo Bruni:
Há ainda uma pergunta por parte de Eva Fernandez, da Cope.
Eva Fernandez (Cadeia Cope)
Santo Padre, temos um Consistório no final de agosto. Muitos lhe têm perguntado ultimamente se já pensou em demitir-se… Não se preocupe! Desta vez não lho perguntaremos, mas estamos curiosos de saber, Santo Padre, se já alguma vez pensou nas caraterísticas que gostaria que tivesse o seu sucessor?
Papa Francisco:
Isso é um trabalho do Espírito Santo, sabes? Não ousaria jamais pensá-lo. Isso, o Espírito Santo sabe-o fazer melhor do que eu, melhor do que todos nós. Pois inspira as decisões do Papa; sempre as inspira. Porque Ele está vivo na Igreja; não se pode conceber a Igreja sem o Espírito Santo. É Ele que faz as diferenças, cria também a barafunda (pensa na manhã de Pentecostes), mas depois faz a harmonia. É mais importante falar de «harmonia» do que de «unidade». Unidade, mas como harmonia, não como uma coisa fixa. O Espírito Santo dá-te uma harmonia que é progressiva, que avança. Gosto do que diz São Basílio a propósito do Espírito Santo: «Ipse harmonia est – Ele é harmonia». É harmonia porque, primeiro, faz a barafunda com a diferença dos carismas. Deixemos, pois, esse trabalho para o Espírito Santo. Acerca das minhas demissões, quero agradecer um lindo artigo feito por uma de vós sobre todos os sinais que poderiam levar a uma demissão e todos os sinais que estão a aparecer. É um bom trabalho jornalístico, de um jornalista que no final dá a sua opinião. Importa ver também os sinais, não apenas as declarações; aquela linguagem subterrânea que também dá sinais. Saber ler os sinais ou pelo menos fazer um esforço de interpretação acrescentando que pode ser isto ou pode ser aquilo: trata-se dum bom trabalho vosso e muito o agradeço.
Matteo Bruni:
Então, talvez uma última pergunta de Phoebe Natanson, de ABC.
Phoebe Natanson (ABC News)
Desculpe, Santo Padre! Sei que já teve muitas perguntas deste tipo, mas eu queria pedir-lhe: neste período, com as dificuldades da saúde e tudo o mais, alguma vez lhe passou pela ideia que esta poderia ser a hora de se retirar? Teve problemas que lhe fizeram pensar nisso? Houve momentos difíceis que lhe fizeram pensar nisso?
Papa Francisco:
A porta permanece aberta; é uma das opções normais. Mas até ao dia de hoje não bati àquela porta, não disse: «Irei por este corredor…». Não me veio a vontade de pensar nessa possibilidade. Isto não quer dizer que depois de amanhã não o comece a pensar, não é verdade? Mas, neste momento, sinceramente não. Mesmo esta viagem serviu um pouco de teste... É verdade que não se podem fazer viagens neste estado; talvez se deva mudar um pouco o estilo, diminuir, saldar as viagens em dívida que ainda faltam fazer, reorganizar... Mas, caberá ao Senhor dizê-lo. A porta permanece aberta, isso é verdade.
Antes de vos deixar, porém, gostava de falar duma coisa que considero importante. A viagem aqui no Canadá estava muito ligada à figura de Santa Ana. Disse algumas coisas sobre as mulheres, sobretudo idosas: as mães e as avós. E sublinhei algo que é claro: a fé deve ser transmitida «no dialeto», e – disse-o claramente – no dialeto materno, o dialeto das avós. Recebemos a fé nesta forma dialetal feminina, e isto é muito importante: o papel da mulher na transmissão da fé e no desenvolvimento da fé. São a mãe ou a avó que ensinam a rezar; são a mãe ou a avó que explicam as primeiras coisas da fé que a criança não compreende. E atrevo-me a dizer que esta transmissão «dialetal» da fé é feminina. Alguém poderá dizer-me: mas, teologicamente, como o explica? Responderia: porque quem transmite a fé é a Igreja, e a Igreja é mulher, a Igreja é esposa; a Igreja não é masculina, a Igreja é mulher. E devemos entrar nesta noção da Igreja mulher, da Igreja mãe, que é mais importante do que qualquer fantasia ministerial machista ou qualquer poder machista. A Igreja mater, a maternidade da Igreja. Aquela que é a figura da Mãe do Senhor. Neste sentido, há que sublinhar a importância na transmissão da fé deste dialeto materno. Descobri isto ao ler, por exemplo, o martírio dos Macabeus (cf. 2 Mac 7): lá se diz por duas ou três vezes que a mãe os encorajava em dialeto materno. A fé deve ser transmitida em dialeto. E tal dialeto é falado pelas mulheres. Esta é a grande alegria da Igreja, porque a Igreja é mulher, a Igreja é esposa. Quis deixar isto claro, pensando em Santa Ana. Obrigado! Obrigado pela paciência! Obrigado pela atenção! Descansai e boa viagem. Obrigado!
Matteo Bruni:
Nós é que agradecemos ao Santo Padre. Obrigado, Santidade!
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