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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS MEMBROS DO CORPO DIPLOMÁTICO ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ
PARA AS FELICITAÇÕES DE ANO NOVO

Sala das Bênçãos
Segunda-feira,, 9 de janeiro de 2023

[Multimídia]

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Eminência, Excelências, Senhoras e Senhores!

Agradeço a vossa presença no nosso habitual encontro, que este ano deseja ser uma invocação de paz para o mundo que vê crescer divisões e guerras.

Sinto-me particularmente agradecido ao Decano do Corpo Diplomático, Senhor Georges Poulides, pelos bons votos que me formulou em nome de todos vós. A minha saudação estende-se a cada um de vós, às vossas famílias, aos colaboradores e aos povos e governos dos países que representais. A todos vós e às Autoridades da respetiva nação, desejo expressar a minha gratidão também pelas mensagens de condolências que me enviaram por ocasião da morte do Papa Emérito Bento XVI e pela solidariedade manifestada durante as exéquias.

Terminou há poucos dias o tempo de Natal, em que os cristãos comemoram o mistério do nascimento do Filho de Deus. O profeta Isaías preanunciara-o com estas palavras: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; tem a soberania sobre os seus ombros e o seu nome é Conselheiro-Admirável, Deus herói, Pai-Eterno, Príncipe da paz» (Is 9, 5).

A vossa presença atesta o valor da paz e da fraternidade humana, que o diálogo contribui para construir. Aliás, a tarefa da diplomacia é precisamente aplanar os contrastes para favorecer um clima de mútua colaboração e confiança em ordem à satisfação das necessidades de todos. Pode-se dizer que aquela é um exercício de humildade, pois exige sacrificar um pouco de amor-próprio para entrar em relação com o outro a fim de compreender as suas razões e pontos de vista, contrastando assim a soberba e a arrogância humanas que são a causa de toda a vontade beligerante.

Agradeço igualmente a solicitude que os vossos países dedicam à Santa Sé, expressa durante o ano passado nomeadamente na decisão da Suíça, República do Congo, Moçambique e Azerbaijão nomear Embaixadores residentes em Roma, bem como na assinatura de novos Acordos bilaterais com a República Democrática de São Tomé e Príncipe e com a República do Cazaquistão.

E faço questão ainda de recordar aqui o facto de a Santa Sé e a República Popular da China, no quadro dum diálogo respeitoso e construtivo, terem concordado em prorrogar por mais dois anos a validade do Acordo Provisório sobre a nomeação dos Bispos, estipulado em Pequim no ano de 2018. Espero que esta relação de colaboração se possa desenvolver em prol da vida da Igreja Católica e do bem do povo chinês.

Ao mesmo tempo, renovo-vos a garantia da plena colaboração da Secretaria de Estado e dos Dicastérios da Cúria Romana, a qual foi reformada em algumas estruturas, com a promulgação da nova Constituição apostólica Prædicate Evangelium, para melhor cumprir «com espírito evangélico a sua função, trabalhando em benefício e ao serviço da comunhão, da unidade e da edificação da Igreja universal e atendendo às solicitações do mundo onde a Igreja é chamada a cumprir a sua missão» [1].

Prezados Embaixadores,

Este ano terá lugar o sexagésimo aniversário da Encíclica Pacem in terris de São João XXIII, publicada cerca de dois meses antes da sua morte [2].

Aos olhos do «Papa bom», continuava vivo ainda o perigo duma guerra nuclear, que vira desenhar-se em outubro de 1962 com a chamada crise dos mísseis de Cuba. A humanidade estivera a um passo do próprio aniquilamento, caso não se tivesse conseguido fazer prevalecer o diálogo, conscientes dos efeitos destruidores das armas atómicas.

Ainda hoje, infelizmente, se evoca a ameaça nuclear, fazendo precipitar o mundo no medo e na angústia. Não posso deixar de reiterar, aqui, que a posse de armas atómicas é imoral, porque – como observava João XXIII –, «se parece difícil que haja pessoas capazes de assumir a responsabilidade das mortes e incomensuráveis destruições que a guerra provocaria, não é impossível que um facto imprevisível e incontrolável possa inesperadamente atear esse incêndio» [3], pondo em movimento o aparato bélico. Sob a ameaça de armas nucleares, todos somos sempre perdedores… todos!

Deste ponto de vista, é particularmente preocupante o impasse nas negociações sobre o reinício do Plano de Ação Integral Conjunto, mais conhecido como Acordo Nuclear do Irão. Espero que se possa chegar, o mais rápido possível, a uma solução concreta para garantir um futuro mais seguro.

Hoje está em curso a III guerra mundial, nos moldes típicos dum mundo globalizado onde os conflitos diretamente afetam apenas algumas regiões da terra, mas substancialmente envolvem-nos a todos. O exemplo mais próximo e recente é precisamente a guerra na Ucrânia e o seu rasto de morte e destruição: com os ataques a infraestruturas civis, as pessoas acabam por perder a vida devido não só às bombas e violências, mas também à fome e ao frio. A propósito, afirma a Constituição conciliar Gaudium et spes: «toda a ação bélica que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem hesitação» (nº 80). Além disso não devemos esquecer que a guerra atinge particularmente os seres humanos mais frágeis – crianças, idosos, pessoas deficientes – e dilacera indelevelmente as famílias. Não posso hoje deixar de renovar o meu apelo para que se faça cessar imediatamente este conflito insensato, cujos efeitos afetam regiões inteiras, mesmo fora da Europa pelas repercussões que tem no campo energético e no domínio da produção alimentar, sobretudo na África e no Médio Oriente.

A III guerra mundial em pedaços, que estamos a viver, leva-nos a olhar para outros cenários de tensões e conflitos. Também neste ano, com tanta amargura, devemos olhar para a Síria como uma terra martirizada. O renascimento daquele país deve passar pelas necessárias reformas, inclusive constitucionais, na tentativa de dar esperança ao povo sírio, afligido por uma pobreza cada vez maior, evitando que as sanções internacionais impostas se repercutam sobre a vida diária duma população que já sofreu tanto.

A Santa Sé acompanha também com preocupação o aumento da violência entre palestinianos e israelitas com o resultado dramático de muitas vítimas e uma difidência recíproca total. Particularmente afetada é Jerusalém, cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos. Inscrita no seu nome, está a vocação de ser Cidade da Paz, mas, infelizmente, encontra-se reduzida a um palco de confrontos. Confio que ela possa reencontrar a citada vocação como lugar e símbolo de encontro e coexistência pacífica, e que o acesso e a liberdade de culto nos Lugares Santos continuem a ser garantidos e respeitados segundo o status quo. Ao mesmo tempo, espero que as autoridades quer do Estado de Israel quer do Estado da Palestina possam reencontrar a coragem e a determinação de dialogar diretamente, a fim de implementarem a solução dos dois Estados em todos os seus aspetos, de acordo com o direito internacional e as várias resoluções atinentes das Nações Unidas.

Como sabeis, no final do mês, poderei finalmente ir como peregrino de paz à República Democrática do Congo, com a esperança de que cessem as violências no leste do país e prevaleçam o caminho do diálogo e a vontade de trabalhar em prol da segurança e do bem comum. A peregrinação continuará no Sudão do Sul, onde estarei acompanhado pelo Arcebispo de Cantuária e pelo Moderador Geral da Igreja Presbiteriana da Escócia. Juntos, desejamos unir-nos ao grito de paz da população e contribuir para o processo de reconciliação nacional.

E não devemos esquecer também outras situações onde continuam a pesar as consequências de conflitos ainda não resolvidos. Penso de modo particular na situação meridional do Cáucaso. Exorto as partes a respeitarem o cessar-fogo, reiterando aqui que a libertação dos prisioneiros militares e civis seria um passo importante para o almejado acordo de paz.

Penso igualmente no Iémen, onde vigora a trégua alcançada em outubro passado, mas continuam a morrer muitos civis por causa das minas, e na Etiópia, onde espero que continue o processo de paz e se reforce o empenho da Comunidade Internacional para enfrentar a crise humanitária que afeta o país.

Acompanho com apreensão também a situação na África Ocidental, cada vez mais assolada pelas violências do terrorismo. Penso, especialmente, nas tragédias vividas pelas populações do Burkina Faso, do Mali e da Nigéria e faço votos de que os processos de transição em curso no Sudão, Mali, Chade, Guiné e Burkina Faso decorram no respeito das legítimas aspirações das populações envolvidas.

Sigo também com particular atenção a situação do Myanmar, que já há dois anos sofre violência, tribulação e morte. Convido a Comunidade Internacional a empenhar-se na concretização dos processos de reconciliação e exorto todas as partes envolvidas a retomar o caminho do diálogo para devolverem a esperança à população daquela amada terra.

Penso, enfim, na península coreana, fazendo votos de que não esmoreça lá a boa vontade e o empenho pela concórdia, a fim de construir a tão almejada paz e a prosperidade para todo o povo coreano.

Seja como for, todos os conflitos põem em evidência as consequências letais dum contínuo recurso à produção de novas armas cada vez mais sofisticadas; recurso por vezes justificado com «o motivo de que, nas circunstâncias atuais, não se assegura a paz senão com o equilíbrio de forças» [4]. É preciso extirpar esta lógica e avançar pelo caminho dum desarmamento integral, porque nenhuma paz é possível onde alastram instrumentos de morte.

Prezados Embaixadores,

Num tempo assim conflituoso, não podemos eludir a questão de saber como se possa reatar os fios da paz. Donde começar?

Para esboçar uma resposta, quero retomar convosco alguns elementos da Pacem in terris, texto que se mantém extremamente atual apesar de se ter alterado grande parte do contexto internacional. Para São João XXIII, a paz é possível à luz de quatro bens fundamentais: a verdade, a justiça, a solidariedade e a liberdade. Tais são as colunas angulares que sustentam as relações quer entre os indivíduos quer entre as comunidades políticas [5].

As referidas dimensões entrelaçam-se à volta da premissa fundamental de que «cada ser humano é pessoa, isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente da sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, inalienáveis» [6].

Paz na verdade

Construir a paz na verdade significa, antes de tudo, respeitar a pessoa humana, com o seu «direito à existência e à integridade física» [7], devendo-lhe ser garantida «a liberdade na pesquisa da verdade (…) e na manifestação e difusão do pensamento» [8]. Isto exige que «os poderes públicos operem positivamente no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de todos os cidadãos» [9].

Apesar dos compromissos assumidos por todos os Estados de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais de cada pessoa, ainda hoje, em muitos países, as mulheres são consideradas cidadãos de segunda classe. Objeto de violências e abusos, é-lhes negada a possibilidade de estudar, trabalhar, expressar os seus talentos, ter acesso aos cuidados médicos e até mesmo à alimentação. Ao contrário, quando os direitos humanos são plenamente reconhecidos a todos, as mulheres podem oferecer a sua contribuição insubstituível para a vida social e ser as primeiras aliadas da paz.

A paz requer, antes de mais nada, que se defenda a vida, um bem que hoje é posto em causa não só por conflitos, fome e doenças, mas muitas vezes até mesmo pelo ventre materno, afirmando um pretenso «direito ao aborto». Ora ninguém pode reivindicar direitos sobre a vida doutro ser humano, especialmente se inerme e desprovido de qualquer possibilidade de defesa. Assim, faço apelo às consciências dos homens e mulheres de boa vontade, especialmente de quantos têm responsabilidades políticas, para que se empenhem na tutela dos direitos dos mais frágeis e seja debelada a cultura do descarte, que atinge nomeadamente os doentes, as pessoas com deficiência e os idosos. É responsabilidade primária dos Estados garantir a assistência aos cidadãos em todas as fases da vida humana, até à morte natural, possibilitando a cada um sentir-se acompanhado e cuidado inclusive nos momentos mais delicados da sua existência.

O direito à vida é ameaçado também onde se continua a praticar a pena de morte, como está a acontecer nestes dias no Irão, na sequência das recentes manifestações que pedem maior respeito pela dignidade das mulheres. A pena de morte não pode ser utilizada por uma pretensa justiça de Estado, pois não constitui uma dissuasão, nem oferece justiça às vítimas, mas alimenta apenas a sede de vingança. Por isso, apelo para que a pena de morte – sempre inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa – seja abolida nas legislações de todos os países da terra. Nunca se esqueça que uma pessoa pode, até ao último momento, converter-se e mudar.

Infelizmente, parece aumentar cada vez mais o «medo» da vida, que se traduz, em muitos lugares, no temor do futuro e na indisponibilidade para formar família e trazer filhos ao mundo. Nalguns contextos – penso, por exemplo, na Itália –, verifica-se uma perigosa queda da natalidade, um verdadeiro inverno demográfico, que põe em perigo o próprio futuro da sociedade. Ao querido povo italiano, desejo renovar o meu encorajamento a enfrentar, com tenacidade e esperança, os desafios do tempo presente, buscando força nas suas próprias raízes religiosas e culturais.

Os medos encontram alimento na ignorância e no preconceito para depois degenerarem facilmente em conflitos. A educação é o seu antídoto. A Santa Sé promove uma visão integral da educação, na qual «o conhecimento da religião e a formação do critério moral progridam gradualmente com a assimilação contínua e cada vez mais rica de elementos técnico-científicos» [10]. Educar exige sempre o respeito integral da pessoa e da sua fisionomia natural, evitando a imposição duma visão nova e confusa do ser humano. Isto implica integrar os percursos de crescimento humano, espiritual, intelectual e profissional, permitindo à pessoa libertar-se das múltiplas formas de escravidão e afirmar-se na sociedade de forma livre e responsável. Neste sentido, é inaceitável que parte da população possa ser excluída da educação, como está a acontecer às mulheres afegãs.

A educação está à mercê duma crise agravada pelas consequências devastadoras da pandemia e pelo preocupante cenário geopolítico. Neste sentido, a Cimeira sobre a transformação da educação, convocada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas e realizada no passado mês de setembro em Nova Iorque, constituiu uma oportunidade única para os governos empreenderem políticas corajosas destinadas a enfrentar a «catástrofe educacional» existente e realizar opções concretas para se alcançar uma instrução de qualidade para todos até 2030. Que os Estados tenham a coragem de inverter a embaraçosa e assimétrica relação entre a despesa pública reservada à educação e as verbas destinadas ao armamento.

A paz exige também que se reconheça universalmente a liberdade religiosa. É preocupante que haja pessoas perseguidas apenas porque professam publicamente a sua fé; e são muitos os países onde a liberdade religiosa é limitada. Cerca de um terço da população mundial vive nesta condição. Juntamente com a falta de liberdade religiosa, há também a perseguição por motivos religiosos. Não posso deixar de mencionar, como mostram algumas estatísticas, que, em cada sete cristãos, um é perseguido. A este respeito, espero que o novo Enviado Especial da União Europeia para a promoção da liberdade de religião ou de credo fora da União Europeia possa dispor dos recursos e meios necessários para desempenhar adequadamente o seu mandato.

Ao mesmo tempo, é bom não esquecer que a violência e as discriminações contra os cristãos aumentam também em países onde eles não são uma minoria. A liberdade religiosa é ameaçada também onde os crentes veem reduzida a possibilidade de expressar as próprias convicções no âmbito da vida social, em nome duma equivocada noção de inclusão. A liberdade religiosa, que não se pode reduzir à mera liberdade de culto, é um dos requisitos mínimos necessários para se viver dignamente, e os governos têm o dever de a proteger e de garantir a toda a pessoa, de modo compatível com o bem comum, a oportunidade de agir segundo a própria consciência inclusive no âmbito da vida pública e no exercício da própria profissão.

A religião é uma oportunidade efetiva de diálogo e encontro entre povos e culturas diferentes, como atesta a decisão do Parlamento de Timor-Leste que aprovou por unanimidade o Documento sobre a Fraternidade Humana, que assinei com o Grande Imã de Al-Azhar em 2019, incluindo-o nos programas das instituições académicas e culturais nacionais, e como pude experimentar pessoalmente na viagem que fiz ao Cazaquistão, em setembro passado, por ocasião do VII Encontro dos Líderes Religiosos Mundiais, com quem partilhei algumas preocupações do nosso tempo e senti palpavelmente como as religiões «não são problema, mas parte da solução para uma convivência mais harmoniosa» [11]. Igualmente significativa foi a visita ao Bahrein, onde pude cumprir um novo passo no caminho entre crentes cristãos e muçulmanos.

É frequente ouvir atribuir-se à religião os vários conflitos que acompanham a humanidade, não faltando, infelizmente, deploráveis tentativas de fazer uso instrumental da religião para fins meramente políticos. Mas isto é contrário à perspetiva cristã, que indica a raiz de todo o conflito no desequilíbrio do coração humano, como nos recorda o Evangelho: «É do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos» (Mc 7, 21). O cristianismo incita à paz, porque estimula à conversão e ao exercício da virtude.

Paz na justiça

Construir a paz requer a busca da justiça. A crise de 1962 resolveu-se pela contribuição de homens de boa vontade que souberam encontrar soluções adequadas para evitar que a tensão política degenerasse numa verdadeira guerra. Isto foi possível graças também à convicção de que se poderiam resolver as disputas no âmbito do direito internacional e através de organizações, principalmente as Nações Unidas, surgidas depois da II Guerra Mundial, que desenvolveram a diplomacia multilateral. São João XXIII recorda que «as Nações Unidas propuseram-se como fim primordial manter e consolidar a paz entre os povos, desenvolvendo entre eles relações amistosas, fundadas nos princípios de igualdade, de respeito mútuo, de cooperação multiforme em todos os setores da atividade humana» [12].

O conflito atual na Ucrânia tornou mais evidente a crise que, há muito, afeta o sistema multilateral, carecido duma profunda reconsideração para poder responder de forma adequada aos desafios do nosso tempo. Isto exige uma reforma dos órgãos que possibilitam o seu funcionamento, a fim de serem verdadeiramente representativos das necessidades e sensibilidades de todos os povos, evitando mecanismos que deem maior peso a uns em detrimento de outros. Não se trata, pois, de construir blocos de alianças, mas de criar oportunidades para que todos possam dialogar.

Juntos, pode-se fazer muito bem! Basta pensar nas louváveis iniciativas destinadas a reduzir a pobreza, ajudar os migrantes, contrastar as alterações climáticas, favorecer o desarmamento nuclear e prestar ajuda humanitária. Contudo, nos últimos tempos, os vários fóruns internacionais têm-se caraterizado por crescentes polarizações e tentativas de impor um pensamento único, que impede o diálogo e marginaliza aqueles que pensam de modo diferente. Corre-se o risco duma deriva, que assume cada vez mais a fisionomia dum totalitarismo ideológico, que promove a intolerância contra quem não adere a pretensas posições de «progresso», que na realidade parecem antes conduzir a uma regressão geral da humanidade, com violação da liberdade de pensamento e de consciência.

Além disso, têm sido empregues recursos cada vez maiores para impor, especialmente aos países mais pobres, formas de colonização ideológica, chegando-se aliás a criar um nexo direto entre a atribuição de ajuda económica e a aceitação de tais ideologias. Isto tem molestado o debate interno nas Organizações Internacionais, impedindo frutuosos intercâmbios e, muitas vezes, abrindo à tentação de abordar as questões de forma autónoma e, consequentemente, na base de relações de força.

Com efeito, durante a minha viagem ao Canadá em julho passado, pude sentir palpavelmente as consequências da colonização, sobretudo ao encontrar as populações indígenas, que sofreram com as políticas de assimilação do passado. Sempre que se procura impor a outras culturas formas de pensamento que não lhes pertencem, abre-se caminho para ásperos conflitos e às vezes até violência.

É necessário voltar ao diálogo, à escuta recíproca e à negociação, promovendo responsabilidades compartilhadas e a cooperação na busca do bem comum, em nome daquela solidariedade que «deriva do facto de nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros na procura dum destino comum» [13]. Os impedimentos e os vetos recíprocos servem apenas para alimentar mais divisões.

Paz na solidariedade

Na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, pus em evidência como a pandemia covid-19 nos deixa em herança «a consciência de que todos precisamos uns dos outros» [14]. As sendas da paz são sendas de solidariedade, porque ninguém pode salvar-se sozinho. Vivemos num mundo tão interligado que a ação de um acaba por ter repercussões sobre todos.

Quero destacar, aqui, três âmbitos onde emerge, com uma força particular, a interligação que une atualmente a humanidade e para os quais é particularmente urgente maior solidariedade.

O primeiro âmbito é o das migrações, que toca inteiras regiões da terra. Muitas vezes trata-se de pessoas que fogem de guerras e perseguições, enfrentando perigos imensos. Mas «deve-se deixar a cada um o pleno direito de se estabelecer ou mudar domicílio dentro da comunidade política de que é cidadão, e mesmo (…) deve ser-lhe permitido transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se» [15] e ter a possibilidade de regressar à própria terra de origem.

A migração tornou-se um problema tal que não se pode admitir deixar cada um a «proceder à sua vontade». Para perceber isto, basta olhar para o Mediterrâneo, que se transformou num grande túmulo. Aquelas vidas destruídas são o emblema do naufrágio da nossa civilização, como pude recordar durante a minha viagem a Malta na primavera passada. Na Europa, é urgente reforçar o quadro legislativo, através da aprovação do Novo Pacto sobre Migração e Asilo, para que se possam implementar políticas adequadas para acolher, acompanhar, promover e integrar os migrantes. Ao mesmo tempo, a solidariedade exige que as necessárias operações de assistência e cuidado dos náufragos não gravem inteiramente sobre as populações dos pontos principais de desembarque.

O segundo âmbito diz respeito à economia e ao trabalho. As crises dos últimos anos colocaram em evidência os limites dum sistema económico tendente mais a criar lucros para uns poucos do que ser oportunidade para o bem-estar de muitos; uma economia mais centrada no dinheiro do que na produção de bens úteis. Isto gerou empresas mais frágeis e mercados de trabalho altamente iníquos. É preciso voltar a dar dignidade à empresa e ao trabalho, combatendo toda a forma de exploração que acaba por tratar os trabalhadores como uma mercadoria, porque, «sem trabalho digno e bem remunerado, os jovens não se tornam realmente adultos [e] as desigualdades aumentam» [16].

O terceiro âmbito é o cuidado da nossa casa comum. Diante de nós vemos aparecer constantemente os efeitos das alterações climáticas e as graves consequências que os mesmos têm na vida de populações inteiras, quer pelas devastações produzidas, como aconteceu no Paquistão nas zonas afetadas pelas inundações onde continuam a aumentar os surtos de doenças transmitidas pelas águas estagnadas; quer em vastas áreas do Oceano Pacífico, onde o aquecimento global provoca inúmeros prejuízos à pesca, base da vida quotidiana de populações inteiras; quer na Somália e em todo o Corno de África, onde a seca está a causar uma grave carestia; quer ultimamente nos Estados Unidos, onde os repentinos e intensos nevões provocaram vários mortos.

No verão passado, a Santa Sé decidiu aderir à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, com a intenção de dar o seu apoio moral aos esforços de todos os Estados para cooperar, de acordo com as próprias responsabilidades e respetivas capacidades, numa resposta eficaz e adequada aos desafios colocados pela alteração climática. Espera-se que os passos – ainda que limitados – dados na COP27 com a adoção do Plano de Implementação de Sharm el-Sheikh possam fazer crescer a consciência de toda a humanidade face a uma questão urgente que não pode mais ser eludida. Entretanto, foram concordados objetivos encorajadores durante a recente Conferência das Nações Unidas sobre a Biodiversidade (COP15), realizada em Montreal no mês passado.

Paz na liberdade

Por fim, construir a paz exige que não «sejam lesadas a liberdade, a integridade e segurança das outras nações, sejam quais forem a sua extensão territorial e capacidade de defesa» [17]. Isto é possível se em cada comunidade não prevalecer a cultura da opressão e da agressão, que leva a olhar o próximo como um inimigo a combater e não como um irmão a acolher e abraçar [18].

Preocupa o enfraquecimento, em muitas partes do mundo, da democracia e da possibilidade de liberdade que ela consente, mesmo com todos os limites dum sistema humano. A pagá-lo, são muitas vezes as mulheres ou as minorias étnicas, bem como os equilíbrios de sociedades inteiras onde o mal-estar desemboca em tensões sociais e até em confrontos armados.

Em muitas áreas, um sinal de debilitação da democracia é registado pelas crescentes polarizações políticas e sociais, que não ajudam a resolver os problemas urgentes dos cidadãos. Penso nas várias crises políticas em diversos países do continente americano, com a sua carga de tensões e formas de violência que exacerbam os conflitos sociais. De modo especial, penso no que aconteceu recentemente no Perú bem como, nestas últimas horas, no Brasil e na situação preocupante do Haiti, onde estão finalmente a ser dados alguns passos para enfrentar a crise política que se arrasta já há tempos. Sempre é preciso superar as lógicas parciais e trabalhar pela construção do bem comum.

Além disso, acompanho com atenção a situação no Líbano, onde se aguarda ainda pela eleição do novo Presidente da República, e espero que todos os atores políticos se empenhem para consentir ao país de recuperar da dramática situação económica e social em que se encontra.

Excelências, Senhoras e Senhores!

Seria maravilhoso que, ao menos uma vez, pudéssemos encontrar-nos apenas para agradecer ao Senhor Todo-Poderoso pelos benefícios que sempre nos concede, sem nos vermos constrangidos a enumerar as situações dramáticas que afligem a humanidade. Entretanto, como dizia João XXIII, «é lícito esperar que os homens, por meio de encontros e negociações, venham a conhecer melhor os laços comuns da natureza que os unem e assim possam compreender a beleza de uma das mais profundas exigências da natureza humana, a de que reine entre eles e seus respetivos povos não o temor, mas o amor, um amor que antes de tudo leve os homens a uma colaboração leal, multiforme, portadora de inúmeros bens» [19]. Com estes anseios, renovo a vós e aos países que representais os mais calorosos votos para o novo ano.

Obrigado!

 


[1] Francisco, Const. ap. Prædicate evangelium (19/III/2022), artº 1.

[2] No dia 11 de abril de 1963. Cf. AAS 55 (1963), 257-304.

[3] João XXXIII, Carta enc. Pacem in terris (11/IV/1963), 60 [111].

[4] Ibid., 59 [110].

[5] Cf. ibid., 47 [80].

[6] Ibid., 5 [9].

[7] Ibid., 6 [11].

[8] Ibid., 7 [12].

[9] Ibid., 38 [63].

[10] Ibid., 80 [152].

[11] Francisco, Discurso na Sessão Plenária do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais (Nur-Sultan, agora Astana, 14/IX/2022).

[12] Carta enc. Pacem in terris, 75 [141].

[13] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (Assis, 03/X/2020), 115.

[14] Francisco, Mensagem para o LVI Dia Mundial da Paz (08/XII/2022), 3.

[15] Carta enc. Pacem in terris, 12 [25].

[16] Francisco, Discurso aos participantes no evento “Economia de Francisco” (Assis, 24/IX/2022).

[17] Carta enc. Pacem in terris, 66 [123]; cf. Pio XII, Radiomensagem natalícia (24/XII/1941).

[18] Cf. Francisco, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (22/III/2013).

[19] Carta enc. Pacem in terris, 67 [128].



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