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VIAGEM APOSTÓLICA À COSTA RICA, NICARÁGUA, PANAMÁ,
 EL SALVADOR, GUATEMALA, HONDURAS, BELIZE E HAITI
[2 - 10 DE MARÇO DE 1983]

CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA EM EL SALVADOR

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

 "Metro Centro" de San Salvador
Domingo, 6 de Março de 1983

 

Amados Irmãos no Episcopado
queridos irmãos e irmãs:

1. Estamos reunidos neste Metro Centro, para celebrar a Eucaristia do dia do Senhor, no terceiro domingo da Quaresma. Saúdo com afecto todos vós e toda a Igreja de Cristo que caminha para o Pai em El Salvador, de modo particular o Pastor desta querida arquidiocese e os outros irmãos Bispos.

Esta Igreja que, unida a todos os irmãos na fé da América Central e do mundo, se congrega com o Papa junto do Altar do Senhor, vem buscar n'Ele a raiz da sua união, da sua vida e esperança, a fonte da paz e da reconciliação.

Porque o cristão crê no triunfo da vida sobre a morte. Por isso, a Igreja, comunidade pascal do Ressuscitado, proclama sempre ao mundo: "Porque buscais entre os mortos Aquele que vive?" (Lc. 24, 5). Por isso encontra n'Ele, em Cristo, o segredo da sua energia e esperança. N'Ele, que é "Príncipe da Paz" (Is. 9, 5), que destruiu o muro de inimizade e reconciliou mediante a sua cruz os povos separados (cf. Ef. 2, 16).

2. Ferida a humanidade pelo pecado, a nossa unidade interior foi despedaçada. Afastando-se da amizade de Deus, o coração do homem tornou-se lugar de tormentos, campo de tensões e batalhas. Desse coração dividido vêm os males à sociedade e ao mundo. Este mundo, cenário para o desenvolvimento do homem no amor, padece o contágio do "mistério da iniquidade" (cf. Gaudium et spes, 103; 2 Tes. 2, 7).

O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, com definida vocação de transcendência, de busca de Deus e de fraterna relação com os outros, atormentado e dividido em si mesmo, afasta-se dos seus semelhantes.

No entanto, o plano original de Deus não é que o homem seja inimigo, lobo para o homem, mas seu irmão. O desígnio de Deus não revela a dialéctica da oposição, mas a do amor que o faz todo novo. Amor haurido desse rochedo espiritual que é Cristo, como nos indica o texto da epístola desta Missa (cf. 1 Cor. 10, 4).

3. Se Deus nos tivesse abandonado às nossas próprias forças, tão limitadas e volúveis, não teríamos razão alguma para esperar que a humanidade vivesse como família, como filhos de um mesmo Pai. Mas Deus veio a nós definitivamente em Jesus; na sua cruz experimentamos a vitória da vida sobre a morte, do amor sobre o ódio. A cruz, antes símbolo de afronta e de amarga derrota, torna-se manancial de vida.

Desde a cruz emana em abundância o amor de Deus que perdoa e reconcilia. Com o sangue de Cristo podemos vencer o mal com o bem. O mal que penetra nos corações, e nas estruturas sociais. O mal da divisão entre os homens, que semeou o mundo de sepulcros, com as guerras, com essa terrível espiral do ódio que arrasa, aniquila, em forma tétrica e insensata.

Quantos lares destruídos! Quantos refugiados, exilados e expatriados! Quantas crianças órfãs! Quantas vidas nobres, inocentes, ceifadas cruel e brutalmente!Também de sacerdotes, religiosos, religiosas, de fiéis servidores da Igreja, inclusivamente de um Pastor zeloso e venerado, Arcebispo desta grei, D. Óscar Arnulfo Romero, que procurou, assim como os outros irmãos no Episcopado, fazer cessar a violência e restabelecer a Paz. Ao recordá-lo, peço que a sua memória seja sempre respeitada e que nenhum interesse ideológico pretenda instrumentalizar o seu sacrifício de Pastor que se entregou à sua grei.

A cruz destrói o muro de separação: o ódio. O homem procura com frequência argumentos para tranquilizar a sua consciência, que o acusa se procede mal. E chega às vezes a elevar o ódio a um nível tal, que o confunde com a nobreza de uma causa; a identificá-lo até com um acto restaurador de amor. Cristo torna são na sua raiz o coração do homem. O seu amor purifica-nos e abre-nos os olhos a fim de distinguirmos entre o que vem de Deus e o que procede das nossas paixões.

4. O perdão de Cristo desponta como uma nova alvorada, como um novo amanhecer. É a nova terra, "fértil e espaçosa" para a qual Deus nos chama, como lemos antes no livro do Êxodo (Êx. 3,8). Essa terra em que deve desaparecer a opressão do ódio e deixar lugar aos sentimentos cristãos: "Revesti-vos de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão e longanimidade, suportando-vos uns aos outros, perdoando-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim deveis perdoar também vós"(Col. 3, 12-14).

O amor redentor de Cristo não permite que nos fechemos na prisão do egoísmo que se nega ao autêntico diálogo, desconhece os direitos dos outros e os classifica na categoria de inimigos que devem ser combatidos.

Indiquei na minha última mensagem para o Dia da Paz, ao convidar a superar os obstáculos que se opõem ao diálogo: "Com maior razão ainda, é necessário fazer menção da mentira táctica e deliberada, que abusa da linguagem e recorre às técnicas mais sofisticadas da propaganda, insidia o diálogo e exaspera a agressividade. Por fim, uma vez que algumas partes frente a frente são sustentadas por ideologias que, malgrado as próprias declarações, se opõem à dignidade da pessoa humana e às suas justas aspirações em conformidade com os sãos princípios da razão e da lei natural e eterna, por ideologias que vêem na luta o motor da história, na força a fonte do direito e na discriminação do inimigo o 'abc' da política, o diálogo torna-se frio e estéril" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz 1983: "O diálogo para a paz, um desafio para o nosso tempo").

O diálogo que nos pede a Igreja não é uma trégua táctica para fortalecer posições em ordem à prossecução da luta, mas o esforço sincero de responder com a busca de oportunas soluções à angústia, à dor, à canseira, à fadiga de tantos e tantos que anelam a paz. Tantos e tantos que querem viver, renascer das cinzas, encontrar o calor do sorriso das crianças, longe do terror e num clima de convivência democrática.

5. A corrente terrível de reacções, própria da dialética amigo/inimigo, ilumina-se com a palavra de Deus que exige que amemos até mesmo os inimigos e os perdoemos. Urge passar da desconfiança e agressividade, ao respeito, à concórdia, num clima que permita a ponderação leal e objectiva das situações e a busca prudente dos remédios. O remédio é a reconciliação, à qual exortei na minha carta dirigida ao episcopado deste país (6 de Agosto de 1982).

O amor de Deus nunca deixa sem esperança enquanto se peregrina na história. Só a dureza do homem acossado pela luta sem tréguas se reveste de determinismo e fatalismo: pensa-se então erroneamente que ninguém pode mudar, converter-se, e que as situações deveriam aliás conduzir-se programaticamente para um irremediável deterioramento.

É então o momento de escutar o convite do Evangelho deste domingo: "se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo" (Lc. 13, 5). Sim, converter-se e mudar de conduta, porque — como escutámos no salmo responsorial — Javé "é obreiro da justiça, defende o direito a todos os oprimidos" (Sl 103/102, 6). Por isso o cristão sabe que todos os pecadores podem ser resgatados; que o rico — despreocupado, injusto, satisfeito da posse egoísta dos seus bens —pode e deve mudar de atitude, que quem recorre ao terrorismo, pode e deve mudar; que quem cultiva rancores e ódios, pode e deve livrar-se desta escravidão; que os conflitos têm modos para serem superados; que onde domina a linguagem das armas em combate, pode e deve reinar o amor, factor insubstituível de paz.

6. Ao falar de conversão como caminho para a paz, não me refiro a uma paz artificiosa que oculta os problemas e ignora os mecanismos desgastados que é preciso reparar. Trata-se de uma paz na verdade, na justiça, no reconhecimento integral dos direitos da pessoa humana. É uma paz para todos, de todas as idades, condições, grupos, procedências e opções políticas. Ninguém deve ser excluído do esforço para a paz.

Todos e cada um na América Central, nesta nobre nação que ostenta orgulhosa o nome de El Salvador; todos e cada um na Guatemala e na Nicarágua, nas Honduras, na Costa Rica, no Panamá, em Belize e Haiti; todos e cada um, governantes e governados, habitantes da cidade, povoações ou casarios; todos e cada um, empresários e operários, professores e alunos, todos têm o dever de ser artífices da paz. Deus queira que haja paz entre os vossos povos. Que as fronteiras não sejam zonas de tensão, mas braços abertos de reconciliação.

7. É urgente sepultar a violência que tantas vítimas provocou nesta e noutras nações. Como? Com uma verdadeira conversão a Jesus Cristo. Com uma reconciliação capaz de unir todos aqueles que hoje estão separados por muros políticos, sociais, económicos e ideológicos. Com mecanismos e instrumentos de autêntica participação no campo económico e social, com o acesso aos bens da terra para todos, com a possibilidade da realização para o trabalho; numa palavra, cora a aplicação da doutrina social da Igreja. Neste conjunto insere-se um valioso e generoso esforço em favor da justiça, da qual jamais se pode prescindir.

E isto num clima de renúncia à violência. O Sermão da Montanha é a Carta Magna do cristão: "Bem-aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus"(Mt. 5, 9). Assim deveis ser todos vós: Artífices da paz e da reconciliação, pedindo-a a Deus e trabalhando por ela. Sejam um estimulo para isso o Ano Santo Extraordinário da Redenção, que estamos para iniciar, e o próximo Sínodo dos Bispos.

8. Queridos irmãos e irmãs:

Contemplo nesta multidão, de fiéis e nos de toda a América Central unidos a nós, um imenso caudal de energias para a reconciliação e a paz. Estais, com todo o direito, sedentos de paz. Surge dos vossos peitos e gargantas um clamor de esperança. Queremos a paz!

Cristo que se oferece pelo mundo, para cujo mistério de reconciliação na Cruz deve conduzir-nos o tempo da Quaresma em que nos encontramos, é o Cordeiro de Deus que dá a paz. Implorai-a com todas as vossas forças a Cristo, Príncipe da Paz, para a vossa querida pátria, para toda a América Central, para toda a América Latina, para o mundo. A paz vem de Cristo e é autêntico abraço de irmãos na reconciliação.

Que Maria, Rainha da paz e Mãe comum, reúna todos os seus filhos num abraço de concórdia e de esperança. Amém. 

 



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