EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
QUINQUE IAM ANNI
DE SUA SANTIDADE
PAPA PAULO VI
POR OCASIÃO DO V ANIVERSÁRIO
DO ENCERRAMENTO
DO II CONCÍLIO ECUMÉNICO DO VATICANO
Amadíssimos Irmãos
Cinco anos se passaram já, desde que, após as intensas sessões de trabalho, vividas na oração, no estudo e na comunicação fraterna, os Bispos do mundo inteiro reentravam nas próprias dioceses, decididos «a envidar todos os esforços para que nada venha a deter este grande caudal de graças celestiais que, hoje, alegra a Cidade de Deus [1] e para que não venha a ser refreado este impulso vital que a Igreja conhece neste momento » [2].
Dando graças a Deus, pela obra levada a cabo, cada um partia do Concílio enriquecido com a experiência vivida da colegialidade, tendo em mão os textos doutrinais e pastorais, laboriosamente coordenados e actualizados, e, ainda, com riquezas espirituais para compartilhar com os padres, nossos colaboradores no sacerdócio, com os religiosos e com todos os membros do Povo de Deus; e, enfim, com os referidos textos, de posse de guias seguros, para o anúncio da Palavra de Deus no nosso tempo e para a renovação interior das comunidades eclesiais.
E este fervor não decresceu ainda. Cada um, no lugar em que o « Espírito Santo o colocou, para pastorear a Igreja de Deus », [3] e todos em conjunto, de múltiplas maneiras, mas particularmente nas Conferências Episcopais e nos Sínodos de Bispos, os sucessores dos Apóstolos têm-se prodigalizado, sem reservas, para traduzir na vida da Igreja os ensinamentos e as directivas conciliares. Conforme o voto que exprimíamos na Nossa primeira Encíclica Ecclesiam Suam [4] o Concílio aprofundou de facto a consciência que a Igreja tinha de si mesma. Ele assestou sob uma luz mais viva as exigências da missão apostólica, no mundo dos nossos dias. Ele ajudou-a a comprometer-se no diálogo da salvação, com um espírito autênticamente ecuménico e missionário.
I
Entretanto, não é Nossa intenção, hoje, tentar fazer um balanço daquilo que se procurou ensaiar, das iniciativas e das reformas que se multiplicaram, a partir do fim do Concílio para cá. Com ânimo atento para descobrir os sinais dos tempos, quereríamos, em espírito fraterno e simultâneamente convosco, fazer um exame de consciência acerca da nossa fidelidade ao compromisso que tomávamos à entrada no Concílio, na nossa Mensagem a todos os homens: «Procuraremos apresentar aos homens do nosso tempo, íntegra e pura, a verdade de Deus, de tal maneira que eles a possam entender e a ela aderir de boa-vontade ».[5]
Este mesmo compromisso era ainda precisado, mais tarde, sem margem para equívocos, pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes, verdadeira carta magna conciliar acerca da presença da Igreja no mundo: «Partilhando das angústias do nosso tempo, a Igreja de Cristo... não deixa de esperar firmemente. O que ela quer é apresentar, uma e muitas vezes, oportuna e importunamente, ao nosso tempo, a mensagem que lhe vem dos Apóstolos... ». [6]
É certo que os Pastores tiveram sempre este dever, o de transmitir a fé, na sua plenitude e de maneira adaptada, aos seus contemporâneos. Ou seja: o dever de se esforçarem por empregar uma linguagem que lhes fosse fàcilmente acessível; de responderem aos seus problemas; de suscitarem o seu interesse; e, enfim, de os ajudarem a descobrir, através das pobres palavras humanas, toda a mensagem da salvação que Jesus Cristo nos veio trazer. E realmente o Colégio Episcopal que, juntamente com Pedro e sob a sua autoridade, garante a transmissão autêntica do depósito revelado e que recebeu, precisamente para isso, segundo a expressão de S. Irineu, « um carisma certo de verdade ».[7] Depois, é a fidelidade do seu testemunho, arraigado na Santa Tradição e na Sagrada Escritura e alimentado na vida eclesial de todo o Povo de Deus, aquilo que, com a assistência indefectível do Espírito Santo, permite à Igreja ensinar sem desfalecimento a Palavra de Deus e explicitá-la progressivamente.
Entretanto, as presentes condições da fé exigem, da parte de todos nós, um esforço maior do que noutra épocas, para que esta Palavra chegue aos nossos contemporâneos na sua plenitude, e para que as obras realizadas por Deus lhes sejam apresentadas sem adulteração e com toda a intensidade do amor da verdade que os salva.[8] Com efeito, precisamente numa altura em que a proclamação da Palavra de Deus na Liturgia, graças ao Concílio, está a ter uma renovação admirável; em que a familiaridade com a Bíblia é uso que se difunde cada vez mais entre o povo cristão; em que os progressos da catequese, quando eles são procurados em continuidade com as orientações conciliares, permitem uma evangelização em profundidade; em que a investigação bíblica, patrística e teológica, traz com frequência uma contribuição preciosa para a expressão viva dos dados revelados: nesta altura, exactamente, eis que muitos fiéis se sentem perturbados na sua fé, por um acúmulo de ambiguidades, de incertezas e de dúvidas, que atingem essa mesma fé no que ela tem de essencial. Estão neste caso os dogmas trinitário e cristológico, o mistério da Eucaristia e da presença real, a Igreja como instituição de salvação, o ministério sacerdotal no seio do Povo de Deus, o valor da oração e dos sacramentos, as exigências morais que dimanam, por exemplo, da indissolubilidade do matrimónio ou do respeito pela vida. Mais: até a própria autoridade divina da Escritura chega a ser posta em dúvida, em nome de uma « desmitização » radical.
Assim, ao mesmo tempo que o silêncio cai, pouco a pouco, sobre certos mistérios fundamentais do Cristianismo, nós vemos manifestar-se uma tendência para reconstruir, a partir de dados psicológicos e sociológicos, um cristianismo truncado da Tradição ininterrupta que o liga à fé dos Apóstolos; e, além disso, para fautorizar uma vida cristã destituída de elementos religiosos.
Diante disto, todos nós, os que recebemos, pela imposição das mãos, a responsabilidade de guardar puro e intacto o depósito da fé e a missão de anunciar o Evangelho sem desleixo, somos chamados a testemunhar a nossa comum obediência ao Senhor. Subsiste para o povo confiado aos nossos cuidados o direito imprescindível e sagrado a receber a Palavra de Deus, toda a Palavra de Deus, da qual a Igreja não cessou ainda de alcançar uma compreensão mais profunda. Para nós, portanto, existe o dever, grave e urgente, de a anunciar infatigàvelmente, a fim de que esse mesmo povo cresça na fé e na inteligência da mensagem cristã, e testemunhe, com toda a sua vida, a salvação de Jesus Cristo.
O Concílio quis recordar-no-lo, de modo veemente: « De entre os deveres principais dos Bispos, sobressai a pregação do Evangelho. Os Bispos são, efectivamente, os arautos da fé, que conduzem a Cristo novos discípulos, e os doutores autênticos, isto é, investidos na autoridade do mesmo Cristo, que ao povo a eles confiado pregam uma fé para ser crida e aplicada na vida prática; eles ilustram-na, à luz do Espírito Santo, tirando do tesouro da Revelação coisas antigas e novas [9] e fazem-na frutificar, ao mesmo tempo que afastam com cuidado os erros que ameaçam a sua grei. [10] Quando ensinam em comunhão com o Romano Pontífice, os Bispos devem ser considerados por todos como testemunhas da verdade divina e católica; e os fiéis devem conformar-se com o juízo que o seu Bispo dá, em nome de Cristo, nas coisas de fé e de costumes, e aderir a ele com religioso acatamento ». [11]
É certo que a fé permanece sempre um assentimento dado por causa da autoridade do próprio Deus. Mas, entretanto, o magistério dos Bispos constitui para o crente o indicativo e o canal que lhe permite receber e reconhecer a Palavra de Deus. Cada Bispo, na sua diocese, é solidário com todo o Colégio Episcopal, ao qual foi confiado, em continuação do Colégio Apostólico, o encargo de vigiar pela pureza da fé e pela unidade da Igreja.
II
Importa que reconheçamos, sem hesitações, o seguinte: nas circunstâncias actuais, o desempenho necessário e urgente desta tarefa primordial encontra mais dificuldades do que aquelas que se terão verificado no decorrer dos séculos passados.
Com efeito, se em tempos mais recuados o exercício do magistério episcopal estava relativamente facilitado, numa altura em que a Igreja vivia em estreita simbiose com a sociedade do seu tempo, inspirava a sua cultura e adoptava os seus modos de exprimir-se, hoje, ao invés, é-nos exigido um esforço sério para que a doutrina da fé conserve a plenitude do seu sentido e do seu alcance, ao expressar-se sob uma forma capaz de atingir o espírito e o coração de todos os homens, aos quais ela se dirige.
Ninguém melhor do que o Nosso Predecessor João XXIII frisou o dever que sobre nós incumbe, a respeito disto mesmo, quando, no Discurso de Abertura das assembleias conciliares, dizia: « Impõe-se que, correspondendo ao vivo anseio daqueles que se acham em atitude de sincera adesão a tudo o que é cristão, católico e apostólico, esta doutrina seja mais ampla e profundamente conhecida e que as almas sejam por ela impregnadas e transformadas. É necessário que esta doutrina, certa e imutável e que tem de ser respeitada fielmente, seja aprofundada e apresentada de maneira a satisfazer as exigências da nossa época. Uma coisa é, efectivamente, o depósito da fé — depositum fidei — em si mesmo, quer dizer, o conjunto das verdades contidas na nossa venerável doutrina, outra coisa é a forma sob a qual tais verdades são enunciadas, conservando-lhes sempre o mesmo sentido e o mesmo alcance. É forçoso, pois, dar muita importância a esta formulação da doutrina e trabalhar, pacientemente se for necessário, na sua elaboração: deve recorrer-se a uma maneira de a apresentar que corresponda melhor a um ensinamento de carácter prevalentemente pastoral». [12]
Perante a crise actual da linguagem e do pensamento, incumbe a cada um dos Bispos na sua diocese, a cada um dos Sínodos e a cada uma das Conferências Episcopais, estarem atentos, para que um tal esforço necessário não venha a atraiçoar nunca a verdade e a continuidade da doutrina da fé. Precisamos de estar vigilantes, principalmente, para que uma escolha arbitrária não restrinja, à limitação das nossas vistas humanas, os desígnios de Deus e não circunscreva àquilo que os nossos ouvidos gostam de escutar o anúncio da sua Palavra, excluindo, deste modo, segundo critérios puramente naturais, o que porventura não se coaduna com o gosto da moda: « Se alguém, previne-nos o Apóstolo S. Paulo, vos anunciasse um Evangelho diferente daquele que vos anunciamos — ainda que fôssemos nós próprio ou um anjo do céu — que ele seja rejeitado ». [13]
Não somos nós, com efeito, que julgamos a Palavra de Deus: é ela que nos julga e que põe em evidência os nossos conformismos mundanos. « A fraqueza e a possível defecção dos cristãos, ou mesmo a daqueles que têm a função de pregar, não será jamais, na Igreja, um motivo para edulcorar o carácter absoluto da Palavra. O gume da espada [14] não poderá nunca embotar-se por isso. Ela, a Igreja, nunca poderá falar de modo diverso do de Cristo, da santidade, da virgindade, da pobreza e da obediência ». [15]
Recordemos, sòmente de passagem, isto: os inquéritos sociológicos são-nos úteis, para descobrirmos melhor a mentalidade ambiente, as preocupações e as necessidades daqueles aos quais nós anunciamos a Palavra de Deus e, de igual modo, as resistências que a razão moderna lhe opõe, com o sentimento largamente difundido de que, fora da ciência, não existiria nenhuma outra forma legítima de saber. Mas as conclusões de tais inquéritos não poderiam constituir por si mesmas um critério determinante de verdade.
Não podemos, entretanto, ignorar os problemas que, por outro lado, encontra hoje um crente, legitimamente preocupado em progredir na inteligência da sua fé. Precisamos de atender a estes problemas, não para suspeitar do seu verdadeiro fundamento, nem para negar as exigências que eles podem comportar; mas sim, para reconhecer o direito das justas insistências que eles fazem, naquele plano que é o nosso próprio: o da fé.
Isto tem cabimento pelo que respeita às grandes questões que se põem ao homem moderno, acerca das suas próprias origens, acerca do sentido da vida, acerca da felicidade a que ele aspira e, ainda, acerca do destino da família humana. Mas não tem menor cabimento também, pelo que se refere às questões levantadas hoje em dia pelos homens de ciência, pelos historiadores, pelos psicólogos e pelos sociólogos, e que constituem para nós um estímulo, para passarmos a anunciar melhor ainda, na sua transcendência incarnada, a Boa-Nova de Cristo Salvador — uma Nova que não contradiz minimamente as descobertas do espírito humano, mas que antes o eleva ao plano das realidades divinas, até ao ponto de o fazer participar, embora de uma maneira ainda balbuciante e incoativa, mas não obstante muito real, daquele mistério de amor, de que o Apóstolo diz que «ultrapassa qualquer conhecimento». [16]
Aqueles que, na Igreja, assumem a tarefa delicada de aprofundar as insondáveis riquezas deste mistério — teólogos e exegetas, em particular — nós exprimiremos o nosso encorajamento e daremos o nosso apoio, que os ajudarão a prosseguir o seu trabalho na fidelidade à grande corrente da Tradição cristã. [17] Disse-se ainda há pouco e com muita justeza: «A Teologia, como ciência da fé, não pode encontrar a sua norma senão na Igreja, comunidade dos crentes. Quando a Teologia renega os seus pressupostos e entende de outro modo a sua própria norma, perde o seu fundamento e o seu objecto. A liberdade religiosa, afirmada pelo Concílio, que se apoia na liberdade de consciência, serve para a decisão pessoal perante a fé; mas ela não tem nada que intervir quando se trata de determinar o conteúdo e o alcance da Revelação».[18] De modo semelhante, a utilização das ciências humanas nos trabalhos de hermenêutica é um modo de investigação dos dados revelados; estes, porém, não podem ser reduzidos aos resultados das suas análises, por isso mesmo que os transcendem, tanto pela sua origem como pelo seu conteúdo. Depois de um Concílio que foi preparado com as melhores aquisições do saber bíblico e teológico, resta ainda por fazer um trabalho considerável, particularmente no que diz respeito ao aprofundamento da Teologia da Igreja e à elaboração duma Antropologia Cristã, que estejam ao nível do desenvolvimento das ciências humanas e dos problemas que elas põem à inteligência do crente. Quem de entre nós não reconhece ao mesmo tempo a importância deste trabalho e as suas exigências próprias e não compreende o seu inevitável tactear ? No entanto, em face dos danos que causa hoje, entre o povo cristão, a divulgação de hipóteses aventurosas ou de opiniões perturbadoras da fé, nós temos o dever de recordar, ainda com o Concílio, que a verdadeira Teologia « se apoia sobre a Palavra de Deus escrita, inseparável da Sagrada Tradição, como sobre um fundamento perene ». [19]
Não nos deixemos, pois, reduzir ao silêncio, amadíssimos Irmãos, pelo receio de críticas, sempre possíveis e, algumas vezes, fundadas. Por mais necessária que se apresente a função da Teologia, não foi aos sábios que Deus confiou a missão de interpretar autênticamente a fé da Igreja: ela está inserida e marca a vida de um Povo, cujos responsáveis, diante de Deus, são os Bispos. A eles compete dizer a este Povo o que Deus lhe exige que ele acredite.
Isto, òbviamente, requer de todos e de cada um de nós muita coragem, porque, se bem que ajudados pelo exercício comunitário desta responsabilidade — o que se verifica nos Sínodos de Bispos e nas Conferências Episcopais, principalmente — trata-se, contudo, também de uma responsabilidade pessoal, absolutamente inalienável, para corresponder às necessidades imediatas e quotidianas do Povo de Deus. Não é o momento de nos limitarmos a interrogar-nos, como alguns quereriam insinuar, se é verdadeiramente útil, oportuno e necessário falar; a hora é, ao invés, de procurarmos lançar mão dos meios para nos fazermos entender. E para nós, Bispos, efectivamente, aquela exortação dirigida por S. Paulo a Timóteo: «Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo, que há-de julgar os vivos e os mortos, e em nome da Sua aparição e do Seu reino: prega a Palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, ameaça, exorta, mas sempre com paciência, e não cesses de instruir. Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Tendo nos ouvidos o prurido de ouvir novidades, escolherão para si, ao capricho das suas paixões, uma multidão de mestres. Apartarão os ouvidos da verdade e voltar-se-ão para as fábulas. Tu, porém, sê vigilante em tudo e sempre e mostra-te paciente nos sofrimentos. Faze obra de um pregador do Evangelho e consagra-te ao teu ministério » [20]
III
Que cada um de nós se examine, portanto, amadíssimos Irmãos, acerca da maneira como tem cumprido este dever sagrado: ele exige de nós um recurso frequente e assíduo à Palavra revelada e uma atenção constante à vida dos homens.
E, como poderíamos nós, na realidade, anunciar com fruto a Palavra de Deus, se ela não nos fosse familiar, porque quotidianamente meditada e objecto de oração? E, por outro lado, como poderia ela ser recebida, se não fosse acompanhada de uma vida de fé profunda, de caridade efectiva, de total obediência, de oração fervorosa e de humilde penitência? Sim: depois de termos insistido, até agora, como se Nos impunha, sobre o ensino da doutrina da fé, é forçoso que acrescentemos: aquilo que, muitas vezes, é mais necessário, não é tanto uma multiplicação de palavras, mas sim acompanhar a Palavra de uma vida mais em consonância com o Evangelho. É de facto assim: o mundo tem necessidade do testemunho dos santos, porque, recorda-nos ainda o Concílio, « neles é Deus quem nos fala e nos mostra um sinal do seu Reino, para o qual somos fortemente atraídos...» [21]
Estejamos atentos aos problemas que, através da vida dos homens, principalmente dos jovens, vêm ao de cima: «Se um filho pedir um pão, qual o pai de entre vós que lhe dará uma pedra ? ». [22] Saibamos acolher de bom grado as interpelações que vêm perturbar a nossa pacífica quietude. Procuremos ser pacientes, perante as perplexidades daqueles que procuram a luz, como às apalpadelas. Esforcemo-nos por caminhar fraternalmente com todos aqueles que, privados daquela luz de que nós podemos beneficiar, através da nebulosidade da dúvida tendem, não obstante, a alcançar a casa paterna. E, se nós próprios comungamos as suas ansiedades, que isso seja para fazer tudo o que está na nossa mão para as curar. Se lhe apresentamos Cristo Jesus, que este seja sempre o Filho de Deus feito homem, para nos salvar e nos fazer participar da Sua vida; e nunca uma figura simplesmente humana, por mais maravilhosa e atraente que ela nos possa parecer. [23]
Nesta fidelidade a Deus e aos homens, a quem Ele nos envia, nós poderemos então operar, com prudência e delicadeza, e também com clarividência e firmeza, os indispensáveis discernimentos. Está nisto, sem dúvida, uma das tarefas mais difíceis, mas, ao mesmo tempo, também das mais necessárias nos dias de hoje, para o Episcopado. Com efeito, no choque das ideias que se contrapõem, a maior generosidade corre o risco de ser acompanhada das afirmações mais contestáveis: «Do meio de nós mesmos, como já sucedia nos tempos de S. Paulo, surgirão homens a ensinar coisas perversas para arrebatarem os discípulos atrás de si »; [24] e os que falam assim estão por vezes persuadidos de o fazerem em nome de Deus, iludindo-se a si próprios acerca do espírito que os anima.
Estamos nós suficientemente atentos, para fazer este discernimento da palavra da fé, em base aos frutos que ela produz? Poderia acaso vir de Deus essa palavra, quando ela fizesse perder aos cristãos o sentido da renúncia evangélica, ou quando ela proclamasse a justiça, esquecendo-se de anunciar a bondade, a misericórdia e a pureza, uma palavra, enfim, que levantasse irmãos contra irmãos ? Jesus mesmo nos advertiu: « E pelos seus frutos que os conhecereis ». [25]
Que a nossa exigência seja idêntica para com os colaboradores que, a nós associados, têm connosco o encargo de anunciar a Palavra de Deus. Que o seu testemunho seja sempre o do Evangelho e a sua palavra a do Verbo que suscita a fé, e, com esta, o amor dos nossos irmãos, que leve todos os discípulos de Cristo a impregnarem do seu espírito a mentalidade, os costumes e a vida da cidade terrestre. [26] É assim que, segundo a palavra admirável de Santo Agostinho, «mesmo pelo ministério de homens tímidos, Deus fala com toda a liberdade». [27]
São estes, amadíssimos Irmãos, alguns dos pensamentos que Nos sugere o aniversário do Concílio, esse «providencial instrumento da verdadeira renovação da Igreja ». [28]
Ao examinarmo-Nos, assim, juntamente convosco, com a máxima simplicidade fraterna, acerca da Nossa fidelidade a esta missão primordial de anunciar a Palavra de Deus, Nós tivemos a consciência de estar a cumprir um dever imperioso. Talvez não vá faltar quem demonstre espanto por isso, ou mesmo quem conteste tal atitude. Na serenidade da Nossa alma, tomamo-vos como testemunhas desta necessidade que Nos obriga a ser fiel ao Nosso múnus de Pastor e deste desejo que Nos anima a lançar mão, juntamente convosco, daqueles meios que se Nos afiguram, a um tempo, os mais adaptados à nossa época e os mais conformes com os ensinamentos do Concílio, para melhor assegurar a fecundidade desse mesmo múnus.
Confiando-Nos, em união convosco, à doce Maternidade da Virgem Maria, imploramos, de todo o coração, sobre as vossas pessoas e sobre o vosso ministério pastoral, a abundância das graças d'Aquele que « pode fazer infinitamente mais do que tudo aquilo que pedimos ou entendemos, pela virtude que opera em nós: a Ele seja dada glória na Igreja e em Cristo Jesus. Amen! ». [29] Com a Nossa afectuosa Bênção Apostólica.
Dada em Roma, junto de S. Pedro, no dia 8 de Dezembro, solenidade da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria, no ano de 1970, oitavo do Nosso Pontificado.
PAULUS PP. VI
Notas
[1] Sl 45, 5.
[2] Exortação Apostólica Postrema Sessio, de 4 de Novembro de 1965, em: A.A.S. 57, 1965, p. 867.
[3] Act 20, 28
[4] A.A.S. 56, 1964, pp. 609-659.
[5] Mensagem dos Padres Conciliares, de 20 de outubro de 1962, em: A.A.S. 54, 1962, p. 822
[6] N. 82, § 4.
[7] Adversus Haereses, IV, 26, 2.
[8] Cfr. 2 Tes 2, 10.
[9] Cfr. Mt 13, 52.
[10] Cfr. 2 Tim 4, 1-4.
[11] Const. Lumen Gentium, n. 25.
[12] Discurso na Inauguração do Concilio em 11 de Outubro de 1962, em: A.A.S. 54. 1962» pp. 785-795.
[13] Gál 1, 8.
[14] Cfr. Hebr 4, 12; Apoc 1, 16; 2, 16.
[15] Hans urs von Balthasar, Das Ganze im Fragment, Verlag Benziger, Einsiedeln 1963, p. 296.
[16] Ef 3, 19.
[17] Cfr. Relatio Commissionis in Synodo Episcoporum constitutae, Roma, Outubro de 1967, pp. 10-11.
[18] Declaração dos Bispos Alemães, Fulda, 27 de Dezembro de 1968, reproduzida em: Herder Correspondenz, Friburgo de Bresgóia, Janeiro de 1969, p. 75.
[19] Const. Dei Verbum, n. 24.
[20] 2 Tim 4, 1-5.
[21] Const. Lumen Gentium, n. 50.
[22] Lc 11, 11.[23] Cfr. 2 Jo 7-9.
[24] Act 20, 30.
[25] Cfr. Mt 7, 15-20.
[26] Cfr. Decr. Apostolicam Actuositatem, nn. 7, 13 e 24.
[27] Enarr. in Psalmos, 103; Sermo 1, 19, em: PL 37, 1351.
[28] Cfr. Exortação Apostólica Postrema Sessio, 4 de Novembro de 1965, em: A.A.S. 57, 1965, p. 865.
[29] Ef 3, 20-21.
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